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as contradições de um espaço público não vivido e um espaço privado não gozado

É importante expor que meus relatos demarcam uma trajetória a qual não pretendo dizer unânime – há outras mulheres homoafetivas e também negras que podem ter outros olhares a partir das minhas inquietações – no entanto, minhas narrativas servem como norte para evidenciar alguns comportamentos que podem ser recorrentes e que precisam ser complexificados e compreendidos.

Este trabalho, portanto, não tem o condão de estabelecer, frente às entrevistas que posteriormente serão colocadas, um panorama único sobre todas as mulheres homoafetivas; contrariamente a isso, visa-se promover uma linha mais intimista e, por isso, complexa, entre vivências específicas de mulheres homoafetivas na urbe e as negociações corporais e simbólicas que cada uma passa dentro de um espaço corriqueiramente opressivo, patriarcal, sexista e lgbtfóbico.

Frente ao dinamismo e subjetividades que mulheres têm, elenquei como base de minha pesquisa duas categorias principais, as quais percebi ser a tônica entre a homoafetividade e o espaço público – expressão esta que substituo por urbe/cidade, uma vez que identifico um ruído em suas determinações.

As categorias de armário e segredo estarão implicadas nos registros subjetivos de cada entrevistada, assim como também pontuei em meus relatos.

Dedicar um capítulo para explicar o que seria espaço público não é o mote dessa dissertação e, por isso, eu não o farei, mas sinto, no entanto, a necessidade de evidenciar que a cidade tem por premissa ser um espaço de convivência e usufruto equânime entre as pessoas, tal qual no excerto abaixo:

Todas as pessoas devem ter o direito a uma cidade sem discriminação de gênero, idade, raça, condições de saúde, renda, nacionalidade, etnia, condição migratória, orientação política, religiosa ou sexual (...) O Direito a Cidade é definido como o usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia, equidade e justiça social. É um direito coletivo dos habitantes das cidades, em especial dos grupos vulneráveis e desfavorecidos, que lhes confere legitimidade de ação e organização, baseado em seus usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito à livre autodeterminação e a um padrão de vida adequado (...) Inclui também o respeito às minorias e à pluralidade étnica, racial, sexual e cultural, e o respeito aos migrantes CARTA MUNDIAL DO DIREITO À CIDADE, 2006).

Diante do exposto, acredito ser conveniente explicar a necessidade do novo e complexo conceito de direito à cidade38, ao qual esta dissertação também se refere. Existem alguns estudos

acerca desse novo tema e alguns estudiosos/as e escritores/as já consolidam parte de suas ideias acerca.

A polis, dentro de uma conjuntura de construção e fruição social da vida humana, preconiza o que Henri Lefebvre convencionou ser o Direito à cidade; não há como analisar a cidade sem que se conjugue a ela a convivência de díspares ideologias, políticas, costumes e estilos de vida. Há, no entanto, o vigor de uma estrutura capitalista, a qual legitima um consumo desenfreado e que, por fim, rege a dispersão de pessoas menos abastadas para lugares mais longínquos e precarizados.

Para Lefebvre, o estudo sobre o direito à cidade permite a interlocução entre as agendas urbanas, ademais de um aporte maior no que tange a criatividade de como lidar com as diferentes demandas sociais.

Quando vemos este mesmo conceito com o viés jurídico, tem-se que tal direito seria uma expansão de outro maior – a coletividade – esbarrando, incidentalmente, na manutenção dos direitos coletivos e individuais, e, para tal ligação, espera-se uma cidade justa para com os seus cidadãos.

Mello, jurista, vê o direito à cidade como uma epistemes nova e, por isso, bastante enviesada em seus usos e destinações; para ele o direito à cidade deve partir da premissa de que é um direito de todos.

Em contrapartida, outros autores como Rolnik e Klink (2011), percebem a urbe como um espaço que é transversalmente provocado por intercorrências econômicas, as quais conformariam o crescimento urbano a partir de uma discursividade econômica, que opera na distinção sócio cultural e sócio espacial de seus integrantes.

Entretanto,

(...) a cidade não é só um terreno físico, ela vive por meio das movimentações e das afetações entre os sujeitos − a cidade é cidade-corpo, isto é, o nosso corpo é atravessado pelo corpo da cidade, o qual se molda por instituições, práticas e (des) encontros (HISSA; NOGUEIRA, 2013, p. 56-58).

A partir dessa definição, há que se tensionar outras modulações de vivências e comportamentos; digo isso porque não temos de interpretar que o processo de segregação no espaço dito público ocorre apenas por razões materiais ou geográficas, ao contrário, há que se entender que as construções culturais e simbólicas operam conjuntamente. Aqui coloco que o direito à cidade deve ser interpretado em sua dimensão mais ampla para que se consiga destrinchar os meandros que sua falta causa, tendo em vista que a segregação se dá por diversas

maneiras e a falência desse direito permite o recrudescimento no afastamento de alguns corpos do espaço da urbe.

Deixar de utilizar a expressão espaço público não é apenas uma escolha política, é também um tensionamento acerca da apatia estrutural admitida pela falta de linguagem que peca por não ser específica em seu termo e deixa de ser entoada como manifesto de “possível a todos” os corpos. Quando a linguagem promove significados que se modificam em consonância aos estímulos culturais e mudanças de uma sociedade, há que se por atenção em quais novos significados simbólicos aquela nova conjuntura propõe. Hoje, espaço público não tem o valor de significância ao qual se havia preconizado – que serve para o uso de todos – contrariamente, existem engrenagens suficientes para se estabelecer assertivas condições de marginalização aos espaços e,

(...) sobre isso, as mulheres constroem sua resistência pela solidariedade: puxadinhos, improvisos, coabitação, diversidade, laços fortes de vizinhança que são fundamentais - apesar de alguns desses aspectos serem vistos pelo senso comum, basicamente, como problemas. Nesse sentido, valorizar esse ponto de vista da segregação, tenciona inclusive o debate clássico do feminismo sobre o antagonismo entre espaço público (masculino) e espaço privado (feminino) (FRANCO, 2016, p. 11).

Até mesmo para não me aprofundar no caráter entre público versus privado, embora que, de antemão, coloco como premissa que o espaço público sempre foi possível ao homem e o privado, por se observar doméstico, sempre foi atribuído às mulheres, preferi atribuir ao espaço público à expressão urbe e destinar ao privado a expressão, espaço seguro. Particularmente, notei, nesse tempo de pesquisa, que as falsas delimitações do que é público e do que é privado dependem de quem é o possuidor/frequentador daquele espaço. Analogamente à construção de um gosto a qual Bourdieu propõe ser moldada a partir da categoria habitus, o espaço também sofre variações e estigmatizações a partir do grupo que o está utilizando ou vivenciando. Ora, quero dizer que assim como um grupo marginalizado determina marginalização a um estilo de música, vestimenta e condutas que assumam, assim também o é se este mesmo grupo marginalizado frequenta determinado espaço; logo, depois de ver que a orientação sexual influencia na conduta que as demais pessoas terão frente aquele espaço considerado privado39, a partir da decodificação de seus usuários serem ou não homoafetivos, não consigo achar plausível a utilização de termos que são tão herméticos e condizentes apenas com a vivência da heteronorma.

39 Casal gay tem sua fechadura de casa trocada por vizinhos que não aceitavam que eles estivessem na mesma vizinhança. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/rio/casal-gay-nao-consegue-voltar-para-casa-apos- espancamento-na-tijuca-21277056>.

(...) é plausível dizer que os cidadãos brasileiros aceitaram um padrão de dominação cultural tal que esteriotifica pessoas pelo seu habitus. Daí que não somente a cor da pele estará no rumo das suspeições penais, mas tudo o que lembrar um status quo que imprima a subjetividade do hip hop, do candomblé, das músicas de funk, dos cabelos revolucionários dos The Black Panters, bem como outros tantos trejeitos que lembrem e retratem a negritude (OLIVEIRA, 2016, p. 34).

VII. ARMÁRIO E SEGREDO – FACETAS DE UMA PERFORMIDADE