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O contraluz difuso

No documento 50 anos luz, câmera e ação - edgar moura (páginas 132-137)

Dois pós-neo-hippies estavam pescando num rio, fumando unzinho (assscende, puxa, prende, passa).

– Ih, cara, olha um xjacaré. – Asscende, puxa, prende, passa.

– Ih, que barato, o xjacaré tá vindo pra cá. – Ascende, puxa, prende, passa. – Ih, ó só, cara, o xjacaré tá comendo a minha perna.

– Liga não, cara, xjacaré é assim mesmo.

O contraluz difuso existe e é bonito. Quando usar um contraluz difuso, porém, já que ele é normalmente duro e direto? Em dois casos: primeiro, quando ele for tocar no rosto da atriz. Segundo, quando essa for a única fonte de luz a iluminar a cena. Em qualquer um dos dois casos, as cenas serão noturnas. Nas diurnas, o contraluz será sempre o sol, ou estará fazendo o seu papel. Então é normal que ele seja duro. É o sol.

Nas noturnas, nada é obrigatório, e o contraluz pode ser usado como bem nos der na telha. Pode ser forte ou fraco, duro ou difuso, branco ou colorido. Embora seja uma direção de luz que existe de verdade, mal o vemos no dia-a-dia, e seu uso é liberal, um pouco artístico, um pouco técnico. É artístico, porque, como não tem nenhum pé na realidade, fica ao gosto do fotógrafo a sua dosagem. É técnico, porque, em geral, se usa o contraluz para separar as pessoas de um fundo escuro (por isso o fazemos forte e branco). Mesmo no caso de uma atriz que já tenha o cabelo claro, louro, faz-se uso do contraluz. É um hábito e uma tradição na fotografia de cenas noturnas. Quase um código visual. Alguns fotógrafos já se rebelaram contra isso e se recusam a fazer as suas noturnas usando o método tradicional de deixar o fundo escuro e colocar um contraluz forte para dar contorno às cabeças. Se fizermos isso e adicionarmos um pouco de compensação, já teremos uma luz de noite. É fácil, é eficaz e realmente já foi usada um pouco demais. Virou uma espécie de convenção: noturna = contraluz. Por ter sido tão usada, caiu na banalidade e no mecanicismo. Não se pensa mais na natureza da luz que está sendo usada; coloca-se um contraluz, duro e direto, para fazer qualquer noturna. Pior, isso é feito sem que se preste a menor atenção ao efeito que vai causar. E o efeito que causa é o de uma luz direta e dura: relevos e sombras.

Quando esse contraluz, direto e duro, toca a face das atrizes, é uma catástrofe. Se essa luz tocar a bochecha de uma atriz, vinda assim, por trás e frisante, estará na sua pior direção e revelará volumes e relevos até então insuspeitados. Qualquer imperfeição na pele aparecerá como um caso para o dermatologista. Fotógrafos e diretores se conformam pensando que não tem solução, que o jacaré é assim mesmo. Mas não é. Existem soluções, várias. A solução mais simples é advogada pelos inimigos do contraluz e é radical: não usar contraluz. ("Uso tão pouco contraluz quanto é possível",

diz Philippe Rousselot.) Mas isso é um exagero e um erro. Um exagero porque perde-se uma posição possível de luz. Um erro porque bastaria mudar a natureza dessa luz, torná- la difusa, e já teríamos resolvido o problema. É o

contraluz difuso. Seu uso é mais necessário do que parece à primeira vista. Em muitos mais casos do que se pensa, é preciso sacrificar a força necessária ao contraluz em favor da beleza, indispensável à atriz. O caso mais evidente, e também o mais recorrente, são as cenas de cama. Nelas, as atrizes, qual súcubos solapados, estão de papo para o ar, esperando o que de melhor a vida tem para lhes dar. Nessa posição, ficam vulneráveis e sofrem as conseqüências: rugas, espinhas, cicatrizes, tudo aflora sob essa luz inclemente, e fica por isso mesmo. Ataca-se com um contraluz duro e pronto. Mas, mesmo pela lógica, isso não deveria ser assim, pois nesse caso o contraluz nem está sendo usado como contraluz, mas como ataque. Quando a atriz se encontra com o rosto virado para cima, basta analisar a sua posição para ver que todas as condições para se descrever uma luz como de ataque estão preenchidas. Vejamos: a luz vai pra lá do nariz da atriz, toca nos dois olhos, a câmera está de um lado e a luz do outro. É, portanto, um ataque, e nunca se ataca com luz dura.

Nessa situação, o erro é evidente, mas existem outras mais sutis. Um casal de atores, face a face, sussurrante, quase aos beijos, é uma dessas situações. É uma das cenas mais corriqueiras e recorrentes no cinema, na televisão, no teatro, em qualquer arte cênica. De tão corriqueira, já tem até sua fórmula de iluminação. Errada. Usam-se dois contraluzes duros. Um ataca o ator pelas costas e, ao mesmo tempo, a atriz pela frente. Do lado oposto, o mesmo esquema. Um contraluz funciona de ataque para o ator, fazendo, ao mesmo tempo, o contraluz da atriz. Essa luz, vinda de uma posição ligeiramente mais distante dos atores, mal lhes toca a face. Faz uma aura em volta das cabeças e desenha a silhueta dos rostos, mas toca a testa e a bochecha que estão viradas para a câmera, fazendo uma horrível sombra dura. É a tal luz da lua minguante, com todas as suas crateras e montanhas. Se isso é bonito no céu, na tela é um desastre facilmente evitável. Se estivéssemos usando a mesma luz, na mesma direção, com a mesma intensidade, porém difusa, ela seria uma das luzes mais delicadas e bonitas que

se pode fazer para uma mulher. De novo, é o contraluz difuso. E não é só para elas que essa luz é lisonjeira: noventa por cento das fotografias de produtos de publicidade, os

pack shot, são feitos com essa luz. Quanto maior for a área de luz do contraluz difuso,

mais delicado será seu efeito.

Alguns problemas, porém, se transferem para a câmera. Uma tal fonte de luz difusa, enorme, virada na direção da câmera, entrará pela lente se não for controlada. Há que se lutar por e contra ela. Contra, protegendo a lente como for possível. Por, porque não há outra solução: ou o contraluz difuso ou a má fotografia.

Existem duas soluções para usar o contraluz difuso sem ser ofuscado por ele. Uma é proteger a lente. A outra é um artifício que permite usar diferentes tipos de contraluz, em diferentes situações. Usa-se primeiro um contraluz duro, enquanto o plano estiver aberto, ponto em que o rosto dos atores não passa de um detalhe no cenário. Como aí não se vêem as imperfeições da pele, pode-se deixar o contraluz na sua natureza mais prática, que é a de luz dura. Quando nos aproximamos para fazer os closes, trocamos a natureza da luz. Na realidade, trocamos até as fontes de luz e colocamos uma fonte soft. Ninguém nota que as fontes foram mudadas entre uma tomada e outra e que trocamos as duras pelas doces. Aliás, até agradeceriam se notassem, pois os closes que, se iluminados com luz dura, seriam ruins, tornam-se ótimos com essa nova luz proveniente de um contraluz difuso.

Existe também um artifício para evitar que a lente da câmera seja atingida pelo contraluz difuso. Uma chapa de isopor com um furo no meio é a solução. É como uma seteira de castelo medieval, só que na horizontal. Por aí, a câmera, afastada da sua seteira, é capaz de enxergar o assunto sem ser atingida pela luz. Assim se resolve o pro- blema e ainda se ganha um brinde: o isopor que ficou virado para a cena fornece uma compensação por reflexão. Se não se quer ter essa luz voltando a rebater no isopor, basta pintar de preto a parede de fora da seteira. Isso não é nenhuma novidade, e toda câmera profissional

já vem com várias máscaras. Uma para cada lente. Assim, quando se coloca uma lente, coloca-se uma máscara preta que só deixa passar os raios de luz que interessam. A única diferença é que a máscara para defender a lente do contraluz difuso é enorme. Também, pudera. Ele também o é.

Para manter viva a idéia de que não há regra sem exceção, existe um caso em que um contraluz duro toca a face de uma atriz e o resultado é muito bom. É o caso do dose do Blade Runner ou o efeito kicker. O kicker, como já defini antes, é um contraluz baixinho. Em vez de vir por trás e por cima, vem rasante, pelo lado da atriz, e ao nível da câmera. Vem de trás, como todo contraluz que se preze, mas sua intenção é outra. Se o contraluz está sempre ajudando a separar o cabelo preto da noite profunda, o kicker não tem essa preocupação. Sua intenção é artística e seu efeito não é, digamos, realista. É o caso do close da atriz Sean Young no Blade Runner. É uma imagem tão boa que serviu de cartaz para o filme e rodou o mundo. Nela, a atriz tem a face iluminada por uma fraca compensação e um duríssimo, fortíssimo kicker. Onde essa luz toca, fica tudo branco, estourado. É, de novo, a luz da lua minguante, só que com tal força que não se vê mais nada, só uma aura branca em volta da lua/atriz. Esse mesmo contraluz ainda acerta a fumaça de um cigarro. A fumaça explode numa silhueta branca. Para completar a imagem perfeita, os olhos da atriz estão muito visíveis, lacrimejantes. Estão iluminados por uma fraca compensação, vinda de baixo; brilham. É tudo muito bonito e impactante, e se encaixa muito bem no conceito strong back light, low angIe fill.

Bom, isso tudo é só uma curiosidade e uma bela imagem. Nesse caso, o contraluz não é nem difuso (é um kicker) nem é o nosso assunto. Essa imagem e essa técnica, a de se colocar um contraluz duro, fortíssimo, iluminando a face da atriz, é no entanto útil para demonstrar que todas as regras e todos os ensinamentos podem ser desrespeitados, desde que o resultado seja bom e a alma, generosa. Vale tudo, só não vale não dar certo.

No documento 50 anos luz, câmera e ação - edgar moura (páginas 132-137)