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Contrariedade à evidência dos autos

A Revisão Criminal interposta com base na contrariedade à evidência dos autos é pressuposto dos mais delicados, por envolver, basicamente, a interpretação dos julgadores acerca do conteúdo processual.

Usualmente nos deparamos com as seguintes observações acerca do pressuposto: a contrariedade dever ser “clara”; “frontal”; “grave”; “a sentença deve estar em total descompasso com o conjunto probatório”; quando “não amparada em prova alguma”; “condenação contrária a todas as provas dos autos”194.

193 Na doutrina e legislação brasileiras predomina a inadmissibilidade da prova ilícita por derivação, conhecida

como teoria dos frutos da árvore envenenada, identificada no direito norte-americano, segundo a qual o vício de uma planta se transmite a todos os seus frutos. Todavia, se a prova ilícita não foi determinante para o descobrimento das derivadas, ou se estas foram descobertas de outro modo não há contaminação. Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes, As nulidades no

processo penal, p. 163-168.

194 Paulo Rangel, Direito Processual Penal, p. 914. Edilson Mougenot Bonfim, Código de Processo Penal

Não obstante, o Supremo Tribunal Federal já se posicionou no sentido de que a Revisão Criminal, apesar de não ter a amplitude da apelação, quando ajuizada com fundamento no art. 621, I, do Código de Processo Penal, requer se proceda à reavaliação, e não apenas ao reexame, do contexto fático-probatório. Não fosse assim, seria impossível chegar-se à conclusão de que a condenação fora, ou não, proferida contrariamente “à evidência dos autos”195.

Essa acepção mais ampla da hipótese legal inclusive possibilita a rescisão da decisão condenatória se dúvidas surgirem no espírito do magistrado revisor. Não se olvida que a condenação pode amparar-se em alguma prova e assim mesmo ofender a evidência dos autos, demonstrando-se inidônea ou insuficiente para manter a sentença196.

Mister registrar, por oportuno, que o Tribunal de Justiça do estado de São Paulo já enfatizou a necessidade, no âmbito da Revisão Criminal, da análise da matéria fática, sob pena de obstar a identificação de decisão condenatória contrária à evidência dos autos197.

A importância de referido julgado merece destaque por demonstrar a necessária sensibilidade acerca da possibilidade de nova apreciação da prova direcionar à absolvição de um condenado, uma vez que sem tal reinterpretação, não haveria como vislumbrar se a condenação contrariou a evidência dos autos198.

195 STF, HC 92.341-1, Rel. Min. Eros Grau, 2ª Turma, DJE nº 031, 21.02.2008.

196 Nilo Batista. Decisões Criminais Comentadas. Rio de Janeiro: Líber Juris, 1976, p. 120 apud Maria Elizabeth

Queijo, op. cit., p. 211.

197 “Inicialmente, embora não se desconheça a existência de respeitáveis decisões em sentido contrário, entende a

Turma julgadora que é viável, no âmbito da Revisão Criminal, análise da matéria fática porque, muitas vezes, sem esse recurso não é possível saber se a decisão condenatória é, ou não, contrária à evidência dos autos, hipótese que autoriza o manejo do remédio jurídico processual, conforme a regra do artigo 621, I, do Código de Processo Penal.”. TJ/SP, Revisão Criminal nº 00974915.3/5-0000-000, 6º Grupo de Câmaras de Direito Criminal, Rel. Des. Xavier de Souza, data do julgamento 01.08.2007.

Convém, ainda, salientar que é inadequado sustentar que em sede revisional inexiste espaço para o reexame de prova. Vale dizer, sempre será indispensável reexaminar o complexo probatório para concluir se ausente ou presente determinada situação de antítese entre condenação e a certeza inicialmente obtida. Isso porque se se considerar que o reexame situa-se no plano inferior de verificação objetiva, sem maior esforço ponderativo, da existência de afinidade ou antagonismo entre condenação e certeza (= evidência) que dos autos irradia, este sempre ocorrerá tanto na hipótese de verificação, quanto na de reavaliação ou revaloração199.

Sobre tal aspecto, importante trazer à baila considerações acerca das características que envolvem o processo de interpretação, que historicamente influenciam a leitura de um texto200.

Percorrendo o âmbito processual, sobretudo considerando um contexto fático201 já interpretado, julgado e transitado em julgado, deve-se ater para a complexidade de interpretações nele contidas.

É sabido que várias são as leituras possíveis acerca de um mesmo texto e, da mesma forma que existem as válidas, algumas são indubitavelmente equivocadas. De outro lado, a revelação de um aspecto, muitas vezes, implica em deixar à sombra vários outros. Assim, algumas interpretações captam com mais profundidade do que outras a “realidade” de um texto202.

199 Maria Alice Silva Moraes, Âmbito cognitivo da Revisão Criminal, quando fundada no art. 621, I, segunda

hipótese, do CPP, p. 125-126.

200 “Mais que parâmetro utilizável para validar a interpretação, o texto é um objeto que a interpretação constrói

na tentativa circular de validar-se com base naquilo que constitui. Círculo hermenêutico por excelência, não há dúvida.”. Umberto Eco, Os limites da interpretação, p. 15.

201 “(...) os fatos são descritos mediante uma linguagem e comportam, portanto, distinções decorrentes de

conceitos incorporados pelo aparato lingüístico do observador e isto implica: observar determinados fatos depende de conceitos implícitos na linguagem;”. Márcio Pugliesi, Por uma teoria do direito, p. 63.

202 O termo aqui foi utilizado em remissão à “verdade” buscada no decorrer da persecução penal. Contudo, em se

tratando de textos diversos, pode-se considerar como a intentio operis. Nos dizeres de Umberto Eco, “(...) uma interpretação, caso pareça plausível em determinado ponto de um texto, só poderá ser aceita se for

O terreno processual, nesse passo, é absolutamente fértil no que se refere às interpretações203, uma vez que uma série de decisões interlocutórias e de mérito são proferidas durante o procedimento, havendo a possibilidade de revisões perante instâncias diversas.

Mister convir, assim, conforme elucida Umberto Eco, que um texto deve servir de parâmetro de suas interpretações, embora cada nova interpretação enriqueça a compreensão daquele texto. Vale dizer, o texto é a soma de sua manifestação linear mais as interpretações que dela foram dadas204.

A complexidade do tema, todavia, vai além. O racionalismo ocidental, assentado em princípios gregos de Aristóteles e Platão, baseia-se em definições, em uma ordem fixa do mundo, em um contrato social com forte sentido jurídico. Há uma relevante busca por limites, nitidamente vislumbrada no impensável205 cultivo do famoso ditado que preceitua que os direitos de um indivíduo cessam quando os de outrem iniciam206.

Contudo, o pensamento moderno tende a enveredar-se no caminho atribuído, pela História, ao deus grego Hermes, que simboliza a idéia de

reconfirmada – ou pelo menos se não for questionada – em outro ponto do texto. É isso que entendo por

intentio operis.”. Os limites da interpretação, p. 14.

203 Não se pode perder de vista que cada interpretação traz consigo interpretações precedentes que foram

consignadas pela tradição no leitor.

“(...) todo ato de leitura é uma transação difícil entre a competência do leitor (o conhecimento do mundo compartilhado pelo leitor) e o tipo de competência que um dado texto postula para ser lido de maneira econômica”. Umberto Eco, op. cit., p. 84.

204 Umberto Eco, Os limites da interpretação, p. 16.

205 Revela-se, neste ponto, severa crítica à transmissão desta “herança”, uma vez que a sociedade se baseia em

interações.

206 “(...) Também no tempo existem confins. O que foi feito não pode ser cancelado. O tempo não é reversível.

Esse princípio regerá a sintaxe latina. A direção e a ordem do tempo, que são linearidades cosmológicas, fazem-se sistema de subordinações lógicas na consecutio temporum. O pensamento só pode reconhecer, alinhar e conservar os fatos se antes tiver encontrado uma ordem que os uma. Não nos esqueçamos, por fim, daquela obra-prima de realismo fatual que é o ablativo absoluto, onde se estabelece que algo, uma vez feito e pressuposto, não mais pode ser questionado. (...) Alea iacta est. É esse o modelo de racionalismo que ainda domina as matemáticas, a lógica, a ciência e a programação dos computadores.”. Umberto Eco, op. cit., p. 22.

metamorfose contínua transformando o mundo em fenômeno linguístico, subtraindo da linguagem todo e qualquer poder comunicativo207.

Nesse passo, seria incongruente confinar a hipótese prevista no art. 361, I, do Código de Processo Penal, à “evidência” trazida nos autos, uma vez que se evidenciando uma leitura inaceitável, surge a problemática de identificar o parâmetro que permite discernir entre as leituras diferentes.

A Revisão Criminal, assim, liberta do receio em alterar o imutável, o irrecorrível, é o procedimento que viabiliza tal busca. É o meio pelo qual o cidadão recorre, em último grau, em busca de referido parâmetro, desmoronando a inatingível imparcialidade208 que se busca no Poder Judiciário.

Em adição, verifica-se que para o alcance da almejada verdade, é preciso conceber que a relação entre sujeito e objeto é conjugada num movimento dialético formado pela linguagem e que só ocorre no interior da mesma linguagem.

Vale dizer, a verdade não está no sujeito que a obtém pelo pensamento como instrumento de alcance de essências. Ao contrário, desloca-se para o discurso intersubjetivo e é distribuída na validade do discurso, remetendo a busca do ser ao sentido, o qual, por sua vez, é linguisticamente articulado209.

207“No mito de Hermes são negados os princípios de identidade, de não-contradição e de meio excluído, as

cadeias causais enrolam-se sobre si mesmas em espiral, o depois precede o antes, o deus não conhece confins espaciais e pode estar, sob formas diferentes, em diferentes lugares ao mesmo tempo”. Umberto Eco, Os

limites da interpretação, p. 23-25.

208 “(...) há alguns ainda que acreditam no pesquisador "ideal" ou "puro", aquele que pode, por meio de métodos

objetivos, alcançar a "verdade" dos fenômenos.”.João Ibaixe Jr., Enfoques zetético e dogmático: exemplos práticos in: http://ultimainstancia.uol.com.br/colunas_ver.php?idConteudo=63823; em 24.09.2010

209 João Ibaixe Jr., O direito e a questão da linguagem: parte I in:

Custoso crer que uma sentença penal sancionatória transitada em julgado – que, via de regra, alcançou a “verdade” – somente surge contrária à evidência dos autos, possibilitando sua revisão, quando se detecta, induvidosamente, que ela se distanciou por completo da questão penal solucionada ou quando não tenha fundamento em nenhuma prova colhida durante a instrução probatória.

Admitir tal hipótese equivaleria a abalar qualquer credibilidade do Poder Judiciário, uma vez que, em que pese a jurisdição tratar-se de uma atividade humana e, portanto, passível de falhas, equívocos deste jaez certamente não podem ser admitidos se os julgadores realizarem uma leitura acurada, e não simplesmente dogmática210 do conteúdo do processo.

Salienta Maria Alice Silva Moraes a respeito do axioma de que não cabe Revisão Criminal em face de sentenças condenatórias fundadas em prova que alguns juízes consideram suficiente e outros não, que nesse sentido limitado, a revisão resumir-se-ia numa operação lógico-jurídica de verificação, isto é, verificar se a sentença condenatória tem o apoio de alguma prova, ainda que única, ensejando a rejeição do pleito revisional, ou se, rigorosamente, nenhuma prova lhe confere suporte, hipótese em que o pedido seria procedente211.

Ao revés, prossegue mencionada autora, se admitir-se que a ideia de contrariedade à evidência dos autos engloba a de insuficiência probatória, a operação se torna lógico-axiológica-jurídica de reavaliação crítica das provas, mais ampla e profunda, para assim inferir ou a suficiência inibitória do

210 O enfoque dogmático estrutura o conhecimento a partir de axiomas que precisam se fechar num sistema

coeso, preservando as premissas do qual parte. Adota-se uma perspectiva afirmativa, na qual predominam a definição, o conceito, as opiniões. João Ibaixe Jr., Ensino jurídico: entre a pesquisa zetética e dogmática in: http://ultimainstancia.uol.com.br/colunas_ver.php?idConteudo=63816; em 17.09.2010.

211 Maria Alice Silva Moraes, Âmbito cognitivo da Revisão Criminal, quando fundada no art. 621, I, segunda

desfazimento da coisa julgada ou a insuficiência justificadora de sua desconstituição212.

Insta ressaltar que embora o Direito seja uma ciência cujo caráter prevalente seja dogmático, haja vista pressupor sistemas normativos que ordenam a decisão e a ação, destacando a função diretiva e axiomática, o caráter zetético213 é revelado quando o próprio sistema normativo é questionado em

suas bases, confrontado com as forças sociais, políticas e históricas que o fundamentam e sustentam, ou seja, quando evidencia a função especulativa e hipotética214.

Depreende-se, por conseguinte, que não há óbice para que se adote uma postura zetética, e portanto, baseada em evidências, em sede de revisão criminal.

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