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Contribuições para repensar a construção e a gestão do cuidado especializado em rede

PRINCÍPIOS:

8. Contribuições para repensar a construção e a gestão do cuidado especializado em rede

Iniciei esta dissertação mencionando quanto era difícil encontrar publicações discutindo a atenção especializada. E também, interrogando os arranjos que perpetuam a distância colossal entre a atenção especializada e a atenção básica.

O mestrado, articulado com a experiência de São Bernardo, possibilitou dois anos de experimentação e reflexão completamente implicadas. Colocar-me em análise foi uma exigência tanto do mestrado (expressa na qualificação), como do processo (se eu quisesse mesmo que ele fosse interessante, coletivo, inventivo).

Coloquei-me, então, observando, agindo, agindo e me percebendo, questionando e colocando em análise, até compreender o não escrito, o não observado, o que foge à regra, aos protocolos: o cuidado especializado não precisa ser circunscrito às policlínicas, ambulatórios de especialidades, ou qualquer outro nome atribuído a um espaço estanque que concentra especialistas e equipamentos.

Uma rede de cuidados implica construção compartilhada de responsabilidades, implica que em momentos diferentes um ou outro ponto da rede ou profissional poderá ter maior protagonismo, mas isso não "localiza" os usuários permanentemente em um ponto específico. Assim, não se trata de elaborar critérios para localizar ou "devolver" usuários.

Além do mais, questão central, os usuários precisam ter voz ativa na construção de seus projetos terapêuticos, que precisam estar focados em suas necessidades e não nas conveniências de trabalhadores e serviços. Esse processo é mais intenso quando se trata de usuários vivendo processos crônicos de adoecimento, cujas necessidades variam ao longo do tempo.

Os processos de implantação da Rede de Atenção às Pessoas com Doença Respiratória Crônica, a discussão sobre o instrumento de “Manejo Compartilhado do Cuidado”, o processo de implantação do CER e a construção da Linha de Cuidado das DOC mostraram que usuários com processos crônicos de adoecimento não recebem alta e muito menos têm serviços como “donos”. O cuidado deve ser compartilhado e a aproximação dos trabalhadores da atenção especializada e da atenção básica pautada no respeito, na solidariedade, na corresponsabilização e na

educação permanente possibilita a fabricação de arranjos que façam sentido para todos: trabalhadores, usuários e gestores.

Também pudemos perceber que produzir a trama comunicativa é uma tarefa de todos – gestores, trabalhadores e usuários. Ao contrário do que frequentemente se vê: quando gestores definem fluxos formais, que não se efetivam magicamente e o usuário torna-se o único e principal responsável pelas informações que circulam entre os serviços.

Ou seja, para fazer uma rede inteligente, de fato preocupada em cuidar das pessoas, devem ser fabricados arranjos que possibilitem aproximações, diálogos, reconhecimentos mútuos e as trocas (de informação e de experiências) entre as unidades. E, antes que alguém pense nisso, não estou falando de prontuário eletrônico. Existem outras maneiras de garantir trocas entre os serviços mais vivas e que não dependem de tanta tecnologia.

A questão mais difícil para desmontar em mim, surpreendente diante de minha experiência prévia, e que só foi sendo remoída, desconstruída e reconstruída durante a escrita desta dissertação, foi o reconhecimento de que a atenção especializada não se faz exclusivamente nos espaços onde os especialistas estão.

Reconheço que existe um sentido de racionalização de recursos ao se reunir especialistas e tecnologias de diagnóstico num mesmo espaço. Reconheço também (e experimentamos isso) a possibilidade de organizar esses espaços especializados de outro modo - proporcionando a configuração de equipes, maior interação entre os especialistas, com reuniões de equipe, discussão de casos, fazendo interconsulta. Isso já é bem diferente do que se faz na maioria dos equipamentos especializados – organizados como máquinas de produção de consultas e procedimentos.

A experiência da implantação das linhas de cuidado de pneumologia e de dor crônica mostrou que a atenção especializada pode se dar na unidade básica e ser feita pelo generalista e especialista de forma compartilhada, o que não significa necessariamente atender junto, mas de forma solidaria e corresponsável.

Mostrou, também, que nem sempre o cuidado especializado tem o médico como centro. No caso das dores crônicas, o fisioterapeuta tem um papel fundamental, também não restrito ao ginásio de fisioterapia com toda sua

“parafernália”. Cuidado prestado no território, em rede e de forma compartilhada é possível, necessário e sustentável. E deve envolver outros trabalhadores - médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, agentes comunitários de saúde, todos contribuindo para avaliação oportuna e ampliação de ofertas para responder às necessidades mutantes dos usuários.

O que fomos inventando em São Bernardo não partiu do nada. Existem experiências e acúmulos produzidos na construção do SUS.

Diferente dos ambulatórios especializados, médico-centrados e isolados da rede, temos, por exemplo, o arranjo produzido na política de saúde mental. Existem equipamentos específicos (CAPS, CECCOs, RTs), com equipe multiprofissional, mas pensados e muitas vezes efetivamente produzidos em rede, em conexão com as UBS, com as equipes de consultório de/na rua, com os hospitais gerais, com o SAMU. Fazem parte do esforço de produzir o cuidado em saúde mental em rede as visitas domiciliares compartilhadas, as primeiras e bem-sucedidas experiências de matriciamento. Tentativas de rede com maior ou menor sucesso, mas sempre perseguidas. E dentro do CAPS: acolhimento como parte da construção do projeto terapêutico, valorização do vínculo na definição do profissional de referência, aposta na equipe e no compartilhamento do cuidado inclusive com o usuário...

Como destacam MERHY e FEUERWERKER (2008), também na atenção domiciliar, há importantes aprendizagens em relação ao trabalho em equipe multiprofissional, apesar das disputas, cuidado compartilhado com os usuários e cuidadores, foco nas necessidades, conexão em rede para mobilizar os recursos necessários ao cuidado. E também forte vínculo, profissional de referência a depender da situação.

Muitas destas ideias da saúde mental e da atenção domiciliar, não especificamente por trocas com esses lugares em São Bernardo (não aconteceram), mas por aprendizagens gerais que são patrimônio do SUS, foram fundamentais na experiência de organização do CER IV em rede e não como equipamento isolado. PTS, equipe de referência definida a partir do vínculo e das necessidades dos usuários (ao invés de obrigatoriamente ter a atenção básica como ordenadora do cuidado), dispositivos para produção de rede e continuidade do cuidado também são conceitos e dispositivos que já haviam sido experimentados.

Os especialistas podem participar dos cuidados em todo lugar da rede. Onde e quando vão se inserir depende das necessidades dos usuários, da necessidade de apoio das equipes e das especificidades de cada especialidade. Daí somente poucos casos ficam para acompanhamento direto pelos especialistas, no ambulatório ou no hospital, dependendo da intensidade do cuidado necessário e da estabilidade clínica em cada situação.

Nestas linhas que finalizam esta reflexão, não posso também deixar de destacar minhas aprendizagens em relação ao modo como construímos as relações na gestão dos serviços de saúde. Não ajuda classificar os trabalhadores entre parceiros - os que topam tudo - e difíceis e resistentes - os que questionam tudo e não topam.

Ao colocar em análise o modo como as coisas aconteciam, ou deixavam de acontecer e, principalmente, como os trabalhadores foram incluídos no processo, foi possível concluir que as pessoas agem ou reagem de forma diferente a depender do convite feito a elas (qual o convite e o modo como é feito).

Ou seja, é menos uma questão de classe, personalidade ou caráter, como é frequente avaliado, e mais de como construímos os processos COM trabalhadores e usuários. Ou as discussões e propostas fazem sentido, ou tendem a não dar certo só por que a “turma dos que elaboram” tiveram uma ideia brilhante para que a “turma dos que executam”. A possibilidade de fazer diferente trata-se, sobretudo, de construção coletiva e fabricação de sentido.

Para finalizar, pelo menos por enquanto, vou tomar emprestado de ROLNIK (1993) uma passagem da sua aula para aquisição do título de Professora Titular da PUC, que faz total sentido para mim, especialmente depois de ter me identificado e citado o poema de Manoel de Barros - RETRATO DO ARTISTA QUANDO COISA:

“Ao longo de nossa existência inteira e em cada uma das dimensões de que ela vai se compondo, vivemos mergulhados em toda espécie de ambiente, não só humano. Proponho que consideremos o que se passa em cada um destes ambientes, e não apenas no plano visível, o mais óbvio, mas também no invisível, igualmente real, embora menos óbvio. Pois bem, no visível há uma relação entre um eu e um ou vários outros (como disse,

não só humanos), unidades separáveis e independentes; mas no invisível, o que há é uma textura (ontológica) que vai se fazendo dos fluxos que constituem nossa composição atual, conectando-se com outros fluxos, somando-se e esboçando outras composições. Tais composições, a partir de certo limiar, geram em nós estados inéditos, inteiramente estranhos em relação àquilo de que é feita a consistência subjetiva de nossa atual figura. Rompe-se assim o equilíbrio desta nossa atual figura, tremem seus contornos. Podemos dizer que a cada vez que isto acontece, é uma violência vivida por nosso corpo em sua forma atual, pois nos desestabiliza e nos coloca a exigência de criarmos um novo corpo - em nossa existência, em nosso modo de sentir, de pensar, de agir etc. - que venha encarnar este estado inédito que se fez em nós. E a cada vez que respondemos à exigência imposta por um destes estados, nos tornamos outros.”