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A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 129 inciso III somente teria atribuído legitimidade para o Ministério Público atuar em defesa dos interesses difusos e coletivos estrito senso, não comtemplando os interesses individuais homogêneos. Dessa forma, a atuação do Parquet em defesa destes últimos dependeria de expressa previsão legal. Baseados nesta tese, seus defensores afirmam que o Ministério Público só pode propor ação civil pública ou coletiva em defesa de interesses individuais homogêneos derivados diretamente de uma relação de consumo, posto ser uma hipótese expressamente autorizada pelo sistema do Código de Defesa do Consumidor.

Justamente após a própria Constituição Federal de 1988 ter garantido o direito ao acesso coletivo à Justiça, mormente através do instrumento da ação civil pública, para salvaguardar todo e qualquer interesse transindividual, surgiu o malsinado posicionamento defendido por alguns juristas, seja na doutrina, seja na jurisprudência, que as violações a direitos e interesses dos contribuintes não poderiam ser objeto de ação civil pública ou coletiva, já que não envolvem pretensões de consumidores.

Para ilustrar esse entendimento, colacionamos um julgado paradigmático na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o Recurso Extraordinário n° 195.056/PR, de lavra do Ministro Carlos Velloso:

CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPOSTOS: IPTU. MINISTÉRIO PÚBLICO: LEGITIMIDADE. Lei 7.374, de 1985, art. 1º, II, e art. 21, com a redação do art. 117 da Lei 8.078, de 1990 (Código do Consumidor); Lei 8.625, de 1993, art. 25. C.F., artigos 127 e 129, III. I. - A ação civil pública presta-se a defesa de direitos individuais homogêneos, legitimado o Ministério Público para aforá-la, quando os titulares daqueles

interesses ou direitos estiverem na situação ou na condição de consumidores, ou quando houver uma relação de consumo. Lei 7.374/85, art. 1º, II, e art. 21, com a redação do art. 117 da Lei 8.078/90 (Código do Consumidor); Lei 8.625, de 1993, art. 25. II. - Certos direitos individuais homogêneos podem ser classificados como interesses ou direitos coletivos, ou identificar-se com interesses sociais e individuais indisponíveis. Nesses casos, a ação civil pública presta-se a defesa dos mesmos, legitimado o Ministério Público para a causa. C.F., art. 127, caput, e art. 129, III. III. - O Ministério Público não tem legitimidade para aforar ação civil pública para o fim de impugnar a cobrança e pleitear a restituição de imposto - no caso o IPTU - pago indevidamente, nem essa ação seria cabível, dado que, tratando-se de tributos, não há, entre o sujeito ativo (poder público) e o sujeito passivo (contribuinte) uma relação de consumo (Lei 7.374/85, art. 1º, II, art. 21, redação do art. 117 da Lei 8.078/90 (Código do Consumidor); Lei 8.625/93, art. 25, IV; C.F., art. 129, III), nem seria possível identificar o direito do contribuinte com "interesses sociais e individuais indisponíveis." (C.F., art. 127, caput). IV. - R.E. não conhecido. (STF - RE: 195056 PR , Relator: CARLOS VELLOSO, Data de Julgamento: 08/12/1999, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 30-05-2003)

João Batista de Almeida (2001 apud MANCUSO, 2012, p.467) considera esse aresto o leading case na matéria, e deplora a linha argumentativa ali adotada. Afirma que a Suprema Corte, surpreendentemente contrariando a doutrina majoritária simplesmente deixou de prestigiar a tendência mundial do uso da ação coletiva para demandas desse tipo, determinando que cada contribuinte, a título individual, ajuíze a sua própria ação, com isso ocasionando sérios transtornos aos interessados e ao Poder Judiciário que já trabalha no limite de sua capacidade.

Realmente, o entendimento consubstanciado no RE 195.056 não tem razão de ser. A perfeita interação entre os sistemas da Lei 7347/85 e do Código de Defesa do Consumidor, além da própria Constituição da República, já deixou bem claro que o sistema de tutela coletiva abrange a proteção de quaisquer interesses transindividuais, e não somente aqueles ligados à relação de consumo. Desse modo, os que assim se posicionam parecem ignorar a aplicabilidade concorrente entre os sistemas da Lei da Ação Civil Pública e do CDC, que permite a defesa de direitos e interesses coletivos lato sensu ainda que não decorrentes de uma relação de consumo.

Ademais, o artigo 129 inciso III da Constituição somente se refere aos interesses difusos e coletivos porque a expressão “interesses individuais homogêneos” só veio a ser introduzida no ordenamento jurídico brasileiro

posteriormente, a partir do texto legal do Código de Defesa do Consumidor. Desse modo, quando a Constituição se refere a “interesses difusos e coletivos”, deve-se entender que está a tratar dos interesses coletivos em sentido amplo, abrangendo o conjunto formado pelos interesses difusos , coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos.

No mesmo sentido, ensina Grinover (2011, p. 140):

Ora, cumpre notar que a Constituição de 1988, anterior ao CDC, evidentemente não poderia aludir, art. 129, III, à categoria dos interesses individuais homogêneos, que só viria a ser criada pelo Código. Mas na dicção constitucional, a ser tomada em sentido amplo, segundo as regras da interpretação extensiva (quando o legislador diz menos de quanto quis), enquadra-se comodamente a categoria dos interesses individuais, quando coletivamente tratados.

Outro ponto que merece ser ressaltado é que o artigo 129 inciso III da Carta Magna qualifica com função institucional do Ministério Público o ato de instaurar inquérito civil e propor ação civil pública para a tutela do meio ambiente e outros interesses difusos e coletivos. Portanto, o Ministério Público á parte legítima para mover ação civil pública para a defesa de quaisquer interesses difusos ou coletivos, legitimação esta outorgada diretamente pelo texto constitucional, não dependendo, assim, de previsão expressa em diploma infraconstitucional para ser considerado parte legítima para a tutela, via ação civil pública, dos interesses transindividuais dos contribuintes.

Ressalte-se, ainda, que, o artigo 110 da Lei 8.078/90 acrescentou o inciso IV ao art.1° da Lei 7.347/85, explicitando que suas disposições também se aplicam “a qualquer outro interesse difuso ou coletivo”. Portanto, depreende-se pela nova redação do art.1° da LACP, conferida pelo art. 110 do CDC, que o âmbito de abrangência dos direitos e interesses suscetíveis de tutela pelo instrumento da ação civil pública foi consideravelmente ampliado, alcançando muito além dos interesses dos consumidores (NERY, 2011, p. 220).

E não é só isso. O artigo 117 do Código consumerista introduziu o artigo 21 na Lei da Ação Civil Pública, que prevê a aplicação, no que for cabível, dos dispositivos contidos no Título III da lei 8.078/90 à defesa dos direitos e interesses

difusos, coletivos e individuais. Desse modo, todo o conteúdo do Título III da lei 8.078/90 pode ser utilizado nas ações de que trata a lei 7.347/85, disciplinando o processo civil dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.

No mesmo sentido é a lição de Watanabe (2011, p.124):

Agora, toda a disciplina contida no Título III do Código, inclusive a pertinente à ação coletiva para a defesa de interesses individuais homogêneos, é invocável para a tutela de outros direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, e não apenas os respeitantes aos consumidores.

O artigo 81 inciso III contido no Título III da lei 8.078/90 define os interesses individuais homogêneos simplesmente como sendo aqueles decorrentes de origem comum. Logo, o referido artigo contempla quaisquer interesses individuais de origem comum, e não só os interesses individuais homogêneos dos consumidores.

O conceito abrangente de interesses individuais homogêneos, expresso no art. 81, III, da lei 8.078/90, como sendo, genericamente, aqueles decorrentes de origem comum, sem elencar um rol taxativo de bens jurídicos passivos de tutela, demonstra o intuito do legislador em alargar as hipóteses de cabimento da ação civil pública a quaisquer circunstâncias que se enquadrem no conceito amplo de interesses individuais homogêneos constante na lei 8.078/90.

É oportuno, neste momento, transcrevermos o ensinamento de Humberto Dalla Bernadino Pinho:

[...] a questão da existência de direitos individuais homogêneos em matéria tributária tem sido objeto de inúmeras controvérsias jurisprudenciais, dando azo, inclusive, data vênia, à prolação de decisões contraditórias. Parece-nos que tem havido certa dificuldade em conceber-se a existência concomitante de um direito individual homogêneo e de uma relação de natureza tributária [...] Ao que parece, entende-se também que a relação tributária exclui a relação de consumo. Temos para nós, que nenhuma dessas premissas é correta. Não há qualquer óbice legal ou mesmo lógico à existência de um direito individual homogêneo que ao mesmo tempo reflita uma relação de consumo e uma relação tributária, uma vez que o Código do Consumidor utiliza linguagem e terminologia extremamente abrangentes e de cunho claramente protetivo ao cidadão comum e à coletividade. Ademais, este Código, combinado com a Lei da Ação Civil Pública e as leis ordinárias do

Ministério Público, conferem claramente ao Parquet a legitimidade para a tutela desses direitos. 26

A referência expressa a tão somente os interesses difusos e coletivos, deixando de mencionar os interesses individuais homogêneos, no artigo 129 inciso III da Constituição, foi feita com o intuito de ampliar o rol de interesses que podem ser defendidos pelo Ministério Público por meio da ação civil pública, a fim de que tais interesses não se limitassem aos referidos no texto da Lei da Ação Civil Pública. A intepretação mais acertada da redação do texto constitucional, portanto, deve ser aquela que entende que o artigo 129 inciso III da Carta Magna tem por finalidade ampliar, e não restringir, o cabimento da ação civil pública (NERY, 2011, p. 229) .

Além do que, pelo disposto no inciso IV do artigo 1° da LACP, inserido pelo art. 110 do CDC, é possível concluir que o Ministério Público está legitimado à proteção dos interesses e direitos difusos e coletivos em juízo, tanto pelo CDC quanto pela LACP, podendo, portanto, agir na defesa de qualquer interesse difuso ou coletivo.

Com o mesmo entendimento, Mazzilli (2005, p. 122):

Inexiste taxatividade de objeto para a defesa judicial de interesses transindividuais. Por isso, além das hipóteses já expressamente previstas em diversas leis ( defesa de meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, crianças e adolescentes, pessoas portadoras de deficiência, investidores lesados no mercado de valores imobiliários, ordem econômica, economia popular, ordem urbanísticas) quaisquer outros interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos podem em tese ser defendidos em juízo por meio da tutela coletiva, tanto pelo Ministério Público como pelos demais co-legitimados do art. 5° da LACP e art. 82 do CDC.

Portanto, é um equívoco entender que a proteção dos interesses individuais homogêneos só possa ser feita em prol de consumidores, pelo simples fato de que a Lei da Ação Civil Pública nada dizer a respeito, e somente o Código de Defesa do Consumidor fazer alusão expressa a tal tutela. A verdade, porém, é que os diplomas do CDC e o da LACP interagem entre si e complementam-se reciprocamente, de maneira que cabe o uso de ação civil pública para a defesa de

quaisquer interesses individuais homogêneos, sejam ou não relacionados a

consumidores.27

Assim, não há razão para restringir a atuação do Ministério Público à defesa tão somente dos interesses individuais homogêneos dos consumidores, posto que é possível a tutela de quaisquer direitos individuais homogêneos, independentemente do direito material que fundamente a demanda. Mostra-se legítima, portanto, a atuação do Parquet na defesa de quaisquer direitos transindividuais, inclusive, claro, dos direitos individuais homogêneos dos contribuintes.

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