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Conversão do princípio da síntese regressiva em ideia regulativa

8 A RESOLUÇÃO KANTIANA DOS CONFLITOS DAS ANTINOMIAS

8.2 Conversão do princípio da síntese regressiva em ideia regulativa

Na sétima seção, Kant constata que o princípio da síntese regressiva da série

de condições, segundo o qual todo condicionado traz consigo também o

incondicionado, é a fonte das ilusões antinômicas, ou seja, dos inadvertidos raciocínios dialéticos cosmológicos. Em seguida, em função da descoberta da negatividade desse princípio, na oitava seção, Kant sugere que a razão deve passar a fazer uso metodológico dessa condição. Todavia, nos parece estranho o fato de Kant assinalar que essa habilidade de se esquivar da ilusão da aparência conduz o entendimento e suas categorias a uma espécie de avanço no campo da experiência. Ora, se o que caracteriza o esquematismo do entendimento é justamente aquela rigidez matemático-mecânica que demarca seu domínio sobre as ciências, como compreender que esse procedimento transcendental de extensão do uso de suas categorias para além dos domínios seguros da experiência, não implicaria justamente no equívoco de desrespeitar a autonomia das faculdades, cujas fronteiras foram tão bem delimitadas pelo próprio Kant 117?

117Na Seção II da Introdução à KU, (pp. 245-248), Kant postula a autonomia da faculdade do

entendimento sobre a natureza e, também, a autonomia da faculdade da razão sobre o domínio da liberdade. A faculdade do Juízo, por sua vez, é apresentada como uma faculdade que não possui um domínio próprio, cuja função é mediar os interesses das outras duas, as quais, segundo Kant, se encontram separadas por um suposto “abismo intransponível”. Nesse sentido, é digno de menção que essa separação introduzida por Kant entre as faculdades em questão, levou Hegel (1978, p. 141), em La positividade de la religión cristiana, a reconhecer uma salutar divisão engendrada por Kant entre os domínios da filosofia e da ciência. Nesse sentido, é curioso agora o fato de que Kant assinale que essa habilidade de se esquivar da ilusão da aparência conduz o uso das categorias do entendimento a uma espécie de avanço no campo da experiência. Ora, se o

esquematismo da aplicação das categorias do entendimento é caracterizado justamente por sua

Passando ao lado desta questão, o fato é que ao converter o princípio em ideia

regulativa, cuja finalidade parece conduzir à extensão, ou ao alargamento dos

conhecimentos empíricos, Kant argumenta em favor de uma “regra” que conduzirá a experiência ao seu máximo possível, de forma tal que seus limites reais não sejam tomados como limites absolutos. Isso significa que o princípio não antecipa nenhum conhecimento do objeto, pelo fato de não ser ele um princípio constitutivo. Enquanto princípio regulador, ele apenas indica como os raciocínios cosmológicos devem proceder na execução da regressão. Assim, através dessa revaloração conceitual, Kant antepõe a nova função regulativa do princípio de totalidade frente ao caráter

constitutivo da razão, o qual é meramente ilusório e dialético.

Essa revaloração conceitual, portanto, consiste em desvincular do princípio de regressão sucessiva da série o caráter constitutivo que a ilusão dialética lhe atribuía, sem, contudo, lhe suprimir sua função original, cujo fim é o incondicionado. Dessa forma, considerando-o doravante apenas como uma ideia reguladora, Kant esclarece, em B-537, que sua nova tarefa é possibilitar a extensão da “experiência” ao seu máximo possível, como se nenhum limite empírico fosse “limite absoluto”. Por isso, torna-se claro em B-538, que a função do princípio de síntese regressiva, convertido agora em ideia transcendental reguladora, passa a ser a de

(...) limitar-se a prescrever uma regra à síntese regressiva da série de condições; pela qual esta transitará do condicionado para o incondicionado mediante todas as condições subordinadas umas às outras, embora o incondicionado jamais se alcance.

Note-se que esse percurso que “transita do condicionado ao incondicionado” assume o significado de processo infinito. Embora a razão exija a síntese como a única forma possível para percorrê-lo, essa assume agora simplesmente a forma (ideia) de uma meta que, embora irrealizável de fato, continua, como antes, transcendentalmente pressuposta, ou seja, dada junto com o condicionado. Por isso Grier (2004, pp. 213- 214) afirma que “Kant está correto ao reinterpretá-lo [o princípio de síntese] como que desempenhando meramente um papel regulador (embora indispensável) no interior das investigações teóricas da natureza”.

compreender que esse procedimento transcendental de extensão das categorias para além dos domínios seguros da experiência, não implicaria no equívoco de desrespeitar a autonomia das faculdades, cujas fronteiras foram tão bem delimitadas pelo próprio Kant?

Como se vê, agora a razão e seus impulsos metafísicos estão autorizados a ultrapassar os limites impostos pela experiência, único ponto seguro e confiável, graças à ressignificação kantiana do princípio transcendental. Ela doravante consciente dos perigos da ilusão e das aparências dialéticas, sente-se autorizada a aventurar-se para além dos limites da experiência e, com o máximo de segurança, se aproximar apoditicamente do incondicionado118.

Resta, por fim, observar que esse princípio, na verdade uma ideia pura da razão, segundo Kant sugere, está amparado no princípio da razão determinante, o qual faz pressupor que todas as coisas estão postas sob um correlato comum. Kant, ao que parece, deduz esse correlato comum entre todas as coisas por analogia com a categoria de comunidade (Gemeinschaft) do entendimento, chegando assim à ideia de unidade total, a qual, por sua vez, justifica em B-393 que “[...] a razão pura não possui nenhum outro objetivo que não seja a totalidade absoluta da síntese do lado

das condições [...]” rumo ao incondicionado.

Assim, a análise da problemática dos conflitos antinômicos demonstra suficientemente que Kant, após provar que eles são a fonte de todas as ilusões e sofísticas dialéticas, realiza metodologicamente a conversão do princípio

transcendental de regressão da razão em princípio regulador, cuja função passa a ser

a de simplesmente orientar a razão no âmbito de tais conflitos. No mais, o objetivo central de nossa pesquisa nos limita a indicar ainda que a “Dialética Transcendental” encontra seu termo no Apêndice, no qual a ideia de princípio regulador reaparece convertido, ou como diz Lebrun (1993, pp. 17-23), “remanejado” em conceito de Deus. Conceito esse que representa a síntese da unidade suprema, à qual Kant atribui não apenas o estatuto de simples ideia moral reguladora, mas também a função estratégica de fundamentar todo o seu sistema crítico transcendental. E é importante sublinhar que a ideia de Deus, conforme Lebrun (ibidem) chama a atenção, permanece no sistema de Kant como princípio teleológico e não teológico: princípio esse que reaparece também na “Segunda Parte” da terceira Crítica designado pelo termo de Fim-Terminal, ou seja, de princípio teleológico dos fins.

Finalmente, nos importa destacar aqui dois pontos centrais que giram em torno das antinomias, a saber: primeiro, que a natureza conflitante da própria razão é a

118Kant, na KrV, faz uso do adjetivo apodítico, um termo técnico da matemática, o qual descreve a

curva de uma trajetória que parte de um ponto a outro e deste se aproxima infinitamente sem, contudo, jamais tocá-lo.

causa, a origem e a fonte das antinomias e suas antitéticas falácias dialéticas; e, segundo, que a estratégia kantiana de revaloração do princípio de regressão revela o

caráter moral e a natureza teleológica deste princípio. Para nós, essas duas

observações revelam suficientemente que o conflito das antinomias não se restringe apenas ao âmbito epistemológico, pois a solução encontrada por Kant prova que a centralidade desse problema reside no âmbito antropológico. Ora, de fato, está demonstrado que tanto o caráter moral quanto a natureza teleológica delas, além de evidenciarem a problemática da autonomia epistemológica da razão, inauguram também a trilha teórica para a problemática da doutrina kantiana da autonomia moral, a qual, se sabe, em outras obras, é problematizada como pressuposto à liberdade política. Nesse sentido, o princípio regulador apresentado por Kant como solução ao conflito das antinomias parece sugerir que há uma certa relação teleológica, não apenas entre o condicionado e o incondicionado, mas também entre moral e política. E foi justamente através dessa problemática moral, teleológica e, também, cosmológica que Kant abriu as trilhas pelas quais se enveredou o Idealismo Alemão inaugurado por sua KrV.

Aproximando-nos definitivamente do fim desta pesquisa, já nos parece bem evidente a determinante importância desse princípio transcendental kantiano para a elaboração metodológica do teor moral-antropológico presente como conteúdo no conceito do belo schilleriano ou, noutras palavras, para o desenvolvimento da antropologia estética de Schiller. Nesse sentido, na última parte deste trabalho, a seguir, tentaremos demonstrar que a conversão schilleriana do belo em princípio regulador (ou imperativo moral), como também o fato do mesmo ser deduzido da própria noção ideal de humanidade, evidencia o seu caráter prático e o seu teor