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CONVERSANDO COM MEU PAI (II)

No documento Um diálogo cultural: Tarsila do Amaral (páginas 160-163)

ÍNDICE DO ANEXO – Crônicas

C. CONVERSANDO COM MEU PAI (II)

Diário de S.Paulo, domingo, 20 de novembro de 1949.

“Treze de maio de 1945. Completava meu pai nesse dia 90 anos de idade. A esposa, os filhos, netos, bisnetos e amigos envolviam-no em palavras carinhosas, em demonstrações de regozijo. Irradiando a bondade que lhe enchia o coração, ele agradecia, sorridente, as felicitações de cada um dos convivas.

A fazenda era uma festa no vai-e-vem dos visitantes, na chegada de automóveis e troles que se postavam em frente à casa, enquanto os cavalos felizes, conduzindo às cocheiras, se fartavam de milho debulhado.

Na imensa cozinha patriarcal, as empregadas e ajudantes, laboriosas como formiga, corriam de um lado para outro nos preparativos do almoço fazendeiro. Frangos, patos, leitoas, perus e cabritos, sacrificados de véspera, ostentam-se agora na mesa entre o verde das alfaces, o amarelo das abóboras, na fusão cheirosa de pratos bem brasileiros ao lado da maionese e do bom vinho francês, armazenado por meu pai com os cuidados de autêntico enófilo; pois, sendo conservador nos seus hábitos cotidianos, ele via, no entanto, com olhos inteligentes, a contribuição estrangeira, quer na comida, quer no vestuário ou qualquer outra manifestação da vida moderna.

À hora dos brindes o dr. Juca (assim o chamavam) ouve sorrindo a saudação dos netos, enquanto se despejava o champanhe nas taças alegres. Minha mãe, que além de compositora possuía veia poética, também o saúda com palavras comovidas. Expansiva, como sempre o fora, abraça-o carinhosamente e o deixa um tanto encabulado.

Após o café, meu pai se dirige para a rede e conversa com os amigos, mas seus olhos sonolentos estão dizendo que a hora da sesta chegou. Vai repousar. As crianças brincam no pomar, alguns amigos se despedem e o coral dissonante, que ainda há pouco enchia a casa de alegria, lentamente se acalma.

Passam as horas. Meu pai se levanta então e, na intimidade da família, convida meus irmãos para um passeio a cavalo. Chega o alazão estimado e ele monta sem auxílio de ninguém. Causa admiração. Sentiria ele uma vaidadezinha? Quem sabe? Isso é tão humano... No fundo está contente com os comentários elogiosos que circulam ao seu redor.

De volta, vai novamente para a rede. E nós, os filhos e alguns amigos, assediamo-lo com perguntas. Ele gosta de recordar o passado.

- Lembra-se, papai, daquele 13 de maio de 1888?

Sim. Ele se lembra. Já uns dois meses antes dessa data, passavam pelas fazendas bandos de cativos que fugiam em direção às cidades. Os mais ousados incorporavam-se a eles, certos de que estavam da abolição próximos; outros, entretanto, não ousavam segui-los. No sertão, a fazenda principal de meu avô paterno, no município de Jundiaí, entre os escravos em debandada, naquele 13 de maio, ficaram muitos deles, ligados pela amizade aos senhores que sempre os trataram bem. Um parente da família, ajudante na fiscalização do serviço, punha as mãos na cabeça, perplexo, e dizia: “Que será das donzelas soltas por esse mundo afora?”. Com suas trouxas de roupa, fugiram as crioulas do casarão de taipa com janelas de rótulas, onde viviam bordando ou costurando sob a vigilância carinhosa da Sinhá, que era toda bondade cristã. E meu pai recorda a infância vivida ao lado dos escravos que sempre lhe inspiraram compaixão e dos quais se tornaria mais tarde fervoroso defensor. Mas, em criança, aos 4 ou 5 anos, ficava profundamente ressentido e mesmo rancoroso contra os negrinhos quando cantavam em coro:

Anum branco, anum preto, Anum preto já chego,

Eu não gosto de anum branco, Anum preto é meu amo.

Pena ele não ter guardado também a parte musical. Meu pai dizia que o seu epitáfio deveria ser: “Aqui jaz o homem que jamais cantou”. De fato, gostava de ouvir boa música, executada ao piano por minha mãe, mas nunca em sua vida cantarolou nem assobiou qualquer melodia. Um caso raro.

Na capital de São Paulo as comemorações de 13 de maio se fizeram com festas, discursos, alegria, felicitações mútuas entre os abolicionistas. O ator Vasques, baiano inteligente, querido pelos estudantes e pela platéia paulistana, improvisou no Teatro São José as seguintes quadras:

No calendário da Igreja, Eu não devo estar errôneo O dia 13 de junho

É dia de Santo Antônio. No calendário da Pátria,

Da abolição a contento, O dia 13 de maio

É dia de Antônio Bento.

Esses versos ecoaram no coração do povo. O Brasil já estava maduro nos seus ideais de fraternidade: a libertação dos escravos foi recebida com entusiasmo e alegria.

No aconchego familiar, meu pai recordava o escritório de Vieira de Carvalho de alguns anos antes da abolição, à Rua do Imperador, onde tinha sua mesa de trabalho, ao lado do padre e advogado Adelino Montenegro, “baixote, muito alegre”. Davam-se intimamente, tratando-se por você, e moravam juntos na Rua Senador Feijó, em frente à casa do dr. Paulo Egydio, que tinha uma filha casadeira, pormenor este bastante interessante para as aspirações matrimoniais dos jovens das boas famílias de então.

Outro que trabalhava no escritório de Vieira de Carvalho, além de Antônio Bento que o freqüentava assiduamente, era o solicitador Francisco Guimarães, o encarregado de promover as causas referentes à libertação dos escravos. Também lá aparecia a avô de Mário de Andrade, dr. Leite de Morais, que foi presidente de Goiás. Meu pai dizia: “Era homem alto, muito corpulento, risonho, sempre alegre. OViera de Carvalho, quando o Leite de Morais entrava no escritório, dizia, apontando para ele: “Eis aí o homem que atravessa o Tietê a vau”.

A noite vem chegando, a palestra se prolonga, a animação derrama-se pelo ambiente mais interrompe-se à chegada dos netinhos que vão cedo para a cama:

- “A bença”, vovô – dizem, beijando-lhe a mão.

- Deus vos abençoe – diz com ternura o velho José Estanislau.

Dois anos depois, os estudantes da Academia de Direito, com a generosidade e entusiasmo bem próprios da juventude, prestar-lhe-iam em São Paulo, nessa mesma hora data, uma comovedora homenagem que seria a última, oferecendo-lhe o bolo clássico dos aniversariantes com 92 velinhas, entre discursos e poses fotográficas (AMARAL, T., 1949, p. 651-654).

No documento Um diálogo cultural: Tarsila do Amaral (páginas 160-163)