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Em “Uma estória de amor (Festa de Manuelzão)” estamos diante de uma personagem que se estabeleceu recentemente como capataz de uma fazenda. Assim, procurou criar raízes em um lugar que não é seu por origem e nem mesmo por eleição (ele não é o proprietário, não escolheu a fazenda). Diante da necessidade de se fixar, transformando a vida nômade que levava como chefe de comitiva em viagens de transporte de gado, em uma vida sedentária de administrador da propriedade alheia, Manuelzão cria novas necessidades. Descobre que não tem uma família que o ajude a povoar o lugar e assume um filho natural com o qual nunca se preocupara, trazendo-o para a Samarra com a mulher e sete filhos pequenos. Sua relação com o espaço é a de chefe; ele não é o proprietário mas age em seu nome, sendo assim, a figura do mando do lugar e ao mesmo tempo estrangeiro. Manuelzão nota os costumes lingüísticos do povo da região e os compara com os de sua terra de origem e de outros lugares por que passou. A posição do mando o isola e ele está apartado até mesmo do filho que, como os outros, lhe deve obediência. A grande preocupação de Manuelzão com seu nome, com a fama que ele gostaria de adquirir na região, tem a sua oportunidade na festa de inauguração da capelinha que ele conseguiu construir nas terras da Samarra. Acorre gente de lugares muito distantes e a dimensão coletiva da festa propicia a Manuelzão a oportunidade de fazer um balanço de sua situação social. No início, do alto do cavalo, diante das pessoas a pé, Manuelzão sente a superioridade de sua posição de capataz e administrador da propriedade:

Manuelzão, ali perante, vigiava. A cavalo, as mãos cruzadas na cabeça da sela, dedos abertos; só com o anular da esquerda prendia a rédea. Alto, no alto animal, ele sobrelevava a capelinha. Seu chapéu-de-couro, que era o mais vistoso, na redondeza, o mais vasto. Com tanto sol, e conservava vestido o estreito jaleco, cor de onça-parda. Se esquecia. “Manuel Jesus Rodrigues” — Manuelzão J. Roíz: — gostaria pudesse ter escrito também debaixo do título da Santa, naquelas bonitas letras azúis, com o resto da tinta que, não por pequeno preço, da Pirapora mandara vir. Queria uma festa forte, a primeira missa. Agora, por dizer, certo modo, aquele lugar da Samarra se fundava. (p.136)

A palavra “alto”, repetida, enfatiza a analogia entre a posição física de Manuelzão sobre o cavalo e sua posição moral. O chapéu é o mais vistoso da redondeza, o que marca o padrão de comparação para a medida da superioridade que ele sente e quer sentir. A inauguração da capelinha corresponde ao desejo de inscrever seu nome na comunidade, a fundação da Samarra, lugar que sente como seu. A tinta é também marca de superoridade social, não custou barato, e ele “mandou” vir da Pirapora, que aparece aqui como principal referência urbana para “Uma estória de amor”. O nome, que representa o orgulho de Manuelzão em relação a sua situação social, é um duplo: dois nomes aparecem seguidos. A duplicação do nome, que repete a duplicação que o cavalo oferece, alçando-o sobre o capelinha, é reforço de sua posição, que aparece aumentada com a repetição. Mas representa uma outra duplicação muito presente e muito escondida em toda a narração de Corpo de baile: a duplicação exercida pelo narrador. O narrador adota a perspectiva das personagens e deixa-se contaminar em sua linguagem pelo modo das personagens expressarem sua realidade. Porém, a contaminação não é total e há uma distância entre a linguagem do narrador e aquela da personagem, visível em momentos determinados em todas as novelas. Aqui, o nome de Manuelzão apresenta uma forma compatível com o universo letrado normativo, podemos imaginar que “Manuel Jesus Rodrigues” é nome que consta nos documentos dele, se ele os tiver. O que as aspas marcam, senão a distância entre este universo letrado e o seu universo lingüístico em que o nome muda para “Manuelzão J. Roíz”? É interessante notar que não há perda estética com a mudança de sentido que a apropriação do nome permite. Manuel Jesus se torna Manuelzão, o nome de Deus sendo incorporado no aumentativo que engrandece, o sobrenome ganha particularidade e deixa de ser tão comum. Por ocasião da leitura da carta de Federico Freyre, o orgulho de ser elogiado pelo patrão, o mesmo que o impede de se satisfazer com o reconhecimento real que os convivas demonstram, o leva a unir os dois nomes em uma única formulação, como em um êxtase egóico:

Aquilo eram proezas para com respeito se dizer: o valer dele, Manuelzão; a Samarra, lugar de bases; Federico Freyre — o poder do dinheiro

moderno! Todos, exaltados, falassem: — Este é o Manuel Manuelzão J. Jesús Roíz Rodrigues!... Mais falassem. Um pouco, esse respeito, se falou.(p.206)

O reconhecimento expresso na ocasião não é suficientemente grande para a soberba de Manuelzão. Seu movimento é o de identificação com o dono das terras, de quem representa o duplo, aquele que comanda em seu lugar, na sua ausência, mas que por si mesmo não tem as qualidades que o instituíram desse poder: as posses, o dinheiro moderno. A duplicação do seu nome realiza a identificação com o poder proprietário, que é o motivo da festa.

Primeiro, ter a capelinha pronta — uma ação durável, certa. Daí, gastando um prazerzinho, tomara fôlego. Mas não bastava. Carecia da sagração, a missa. A festa, uma festa! Por si, ele nunca dera uma festa. Talvez mesmo nunca tivesse apreciado uma festa completa. Manuelzão, em sua vida, nunca tinha parado, não tinha descansado os gênios, seguira um movimento só. Agora, ei, esperava alguma coisa.

Por tudo, mesmo sem precisão, ele não saía de cima do cavalo — estava com um machucão num pé — indo e vindo da capela, sol a sol vinte vezes, dez vezes, acompanhado sempre pelo rapazinho Promitivo. Não esbarrava. Não sabia de esforço por metade. (pp.138/139)

Manuelzão tinha parado o curso ininterrupto de sua vida de trabalho para produzir a festa. Abre-se com isso uma porta para o novo. Assim como a inscrição na capela é para ele a inscrição de seu nome, a missa representa para ele sua própria sagração. A personagem apresenta uma movimentação incessante que reproduz, nos preparativos da festa, sua relação com o trabalho, visto que este ocupa o essencial da vida de Manuelzão. Apesar dessa aparente disposição, ele vive uma limitação importante, que simboliza sua inaptidão para o extra-ordinário. Além disso, o pé machucado lembra o pé machucado da novela anterior, o que o faz especialmente incômodo para o leitor. Carregamos da leitura anterior para a novela atual, nós leitores e Manuelzão, um sinal corpóreo da falta essencial que a morte do Dito, causada por um corte no pé, inscreveu na obra. Ao longo da novela, a preocupação com esse mal-estar

será substituída por outra, bem mais grave para essa personagem e sua condição: a doença do coração. Por enquanto, nos dias que antecedem a festa, Manuelzão empreende a movimentação incessante que o pé machucado lhe permite: do alto do cavalo, nada pode fazer a não ser mandar, mas as mulheres, que tomaram conta dos preparativos, o ignoram.

A duplicidade que é a condição de Manuelzão é também condição narrativa, pois há ainda outros indícios de que o narrador oscila entre uma aproximação tão intensa da personagem que mimetiza e se apropria de sua perspectiva, e uma distância reveladora de um olhar externo. No segundo parágrafo do texto, as mesmas “bonitas letras azúis” são descritas de outra forma pelo narrador: “Mesmo Manuelzão achara de inscrever na parte de fora a invocação, em desastradas letras, que iam não cabendo na empena exígua.” (p.135) O movimento dúplice do narrador é visível nestes momentos iniciais das novelas, nos quais demora às vezes para adotar a perspectiva do protagonista, ao mesmo tempo em que nos apresenta um olhar sobre ele vindo do exterior, ainda que identificado a outra personagem da história76.

Desde o primeiro parágrafo, o narrador nos avisara do contraste entre a situação de fato e a autoconsciência alimentada pela personagem:

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Em alguns momentos dos textos as diferenças de registro lingüístico entre as falas das personagens e o fluxo interno que o narrador constrói se fazem evidentes. Um certo tom didático do narrador, que explica palavras típicas e costumes, revela também um distanciamento narrativo participante da problemática regionalista — o narrador não tem o mesmo plano cultural do universo retratado. Embora Rosa seja, sem dúvida nenhuma, o escritor mais avançado na direção de uma igualdade de condições entre narrador e personagem e na interiorização da perspectiva narrativa em relação a seu universo, ou seja, em falar “de dentro”, não podemos deixar de enxergar sua filiação ao movimento de nossa literatura brasileira clássica de constituir pelas obras uma imagem da identidade nacional. Na medida em que o faz criando um universo reduzido a um modo de produção, o gado, economicamente subsidiário das atividades econômicas principais do país; a um ecossistema, o cerrado (com uma possível extensão para a caatinga); e a uma região cujo centro é dado pelo sertão de Minas Gerais, sua identidade nacional passa pela configuração de um universo regional. Se não estreitarmos os termos até que se tornem excessivamente restritos, poderemos enxergar a profunda filiação e diálogo de Corpo de baile com a literatura brasileira mais substancial, o que inclui o regionalismo em sentido forte, aqueles autores que, como Alencar e Graciliano Ramos, procuraram tratar de regiões definidas a até mesmo típicas, como parte da constituição da nacionalidade brasileira. O grande problema que esses autores enfrentam é a forma de retratar o típico — nenhum deles até Rosa havia conseguido não se colocar de fora do universo retratado e em um registro lingüístico mais culto. Isto cria sérias questões, pois há julgamento, ideologia e comportamento de classe embutidos na linguagem quando se estabelece a distância social. Em Rosa, é claro, nem todas as questões foram resolvidas. Em primeiro lugar, porque de fato ele não se encontra tão interiorizado no seu universo quanto parece, como podemos ver nas oscilações dos narradores; em segundo lugar, porque seus narradores pertencem de fato e forma ao universo letrado e culto, o que autoriza o uso da erudição do autor e os afastam de suas personagens.

Naquele lugar — nem fazenda, só um reposto, um currais-de-gado, pobre e novo ali entre o Rio e a Serra dos Gerais. (p.135)

A localização da Samarra é apresentada logo, ela fica entre o Rio São Francisco e a Serra dos Gerais e já está bem delimitada se compararmos com o Mutúm, do qual ainda não temos nenhuma referência externa segura (teremos que esperar até “Lélio e Lina”). O riachinho será a chave para uma localização mais precisa da Samarra, pois ele deságua no Córrego das Pedras, que deságua no rio de-Janeiro, que deságua no São Francisco. Marco geográfico, o riachinho é também símbolo da situação existencial de Manuelzão77. O riachinho determinou a localização da casa de Manuelzão, ao redor da qual se dispuseram todas as construções da fazenda. E pouco depois de tudo funcionando, com um ano apenas de uso, o riachinho cessa, no meio de uma noite. Todos percebem a ausência de seu burburinho, se levantam e vêem seu último escorrer. A partir de então Manuelzão passa a pressentir a morte, o cessar do riachinho é vivido como uma experiência de morte. Mas é também análogo ao balanço autocrítico que Manuelzão empreende ao longo da festa que delimita a ação narrativa de “Uma estória de amor”. A situação social estabelecida, com a construção da casa ao lado do riachinho, e afirmada pela festa de inauguração da capelinha, que fundava o lugar, mostra-se de repente muito mais penosa e frágil com o cessar do riachinho, agora que a água tem que ser diariamente trazida em carro-de-bois diretamente do Córrego das Pedras. O movimento de conscientização de Manuelzão caminha na mesma direção. Por meio da identificação obsessiva com o velho Camilo, Manuelzão vai se dando conta da precariedade de sua condição social, o riachinho do pouco que juntara se desfaz.

A festa de Manuelzão é um acontecimento de comunidade, com todas as características típicas da tradição sertaneja: a dança, o leilão, a estória, a missa, a procissão. É um culto, por seu caráter religioso e de comunidade em comunhão.

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A principal qualidade da leitura de “Uma estória de amor” feita por Sandra Vasconcelos em Puras Misturas é possivelmente a percepção do riachinho como símbolo da condição existencial da personagem. Rosa, aliás, o avisa a Bizzarri, na carta de 28.X.63., JGR: Correspondência, pp. 59/60.

Oferece, como a própria narrativa reafirma, a experiência78 em sentido forte: o vivido ali conjuga a memória individual e a coletiva, se associa com as experiências vividas pela comunidade. Se a matéria dessa narrativa é a experiência comunicável, ainda que como um fato talvez isolado nas vidas das personagens, é natural que a novela trate também da narrativa e tenha tom metalingüístico. Aqui, como em todo o Corpo de baile, o narrar é tema; “Uma estória de amor” trata da narrativa tradicional.

Manuelzão observa logo de início como o rumo que a festa toma não pertence à sua vontade, mas é do pertencimento de todos, adquirindo a ordem que a experiência da tradição determina:

Assim aquela procissão, ela marcava o princípio da festa? Mas Manuelzão, que tudo definira e determinara, não a tinha mandado ser, nem previra aquilo. Quem então imaginava o verdadeiro recheio das coisas, que impunham para se executar, no sobre o desenho da ordem? (p.161)

Por ser portadora de experiência, a narrativa oferece muitas vezes mais realidade que a própria realidade, já que esta cada vez menos (com o avanço da modernidade) produz experiência; cada vez mais produz, ao contrário, vidas repletas de incidentes, de vivências que não se ligam ao passado, não se associam com qualquer conteúdo prévio. São incidentes sem sentido a ser conservado ou comunicado, vividos por um sujeito isolado.

“Estória!” – ele disse, então. Pois, minhamente: o mundo era grande. Mas tudo ainda era muito maior quando a gente ouvia contada, a narração dos outros, de volta de viagens. Muito maior do que quando a gente mesmo viajava, serra-abaixo-serra-acima, quando a maior parte do que acontecia era cansativo e dos tristonhos, tudo trabalho empatoso, a gente era sofrendo e

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O conceito de experiência que se usa aqui tem como origem a reflexão de Walter Benjamin sobre este conceito e sua diferença em relação à vivência, a experiência esvaziada que a modernidade permite. Cf. “Sobre alguns temas em Baudelaire”, Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo e “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, Magia e técnica, arte e política.

tendo de aturar, que nem um boi, daqueles tangidos no acerto escravo de todos, sem soberania de sossego. (p.157)

Nesta reflexão de Manuelzão em relação às estórias, surge já a diferença entre vivência e experiência. As estórias, as narrativas de viagens alheias, parecem maiores que as viagens que ele mesmo realizou, o que acontece pela presença dominante do conteúdo não comunicável — a forma de viver o cotidiano, sempre com a intenção posta no dinheiro, na melhoria da condição de miséria em que começou a sua vida profissional. São as coisas que não se vivem, se aturam, “que nem boi”. Há outros trechos em “Uma estória de amor” que aproximam os bois aos homens:

Gente sem desordem, capazes de muito tempo calados, mesmo não tinham viso para as surpresas. Apartavam-se em grupos. Mas se reconheciam, se aceitando sem estranhice, feito diversos gados, quando encurralados de repente juntos. (p.150)

Pegara o agrado de mulheres acontecidas, para o consumo do corpo: esta-aqui, você-ali, maria-hoje-em-dia — eram gado sem marca, como as garirobas, sem dono, do cerrado. (p.177)

O povo trançando, feito gado em pastos novos. (...) Até lá dum lado, os vaqueiros quase todos também não atinavam justo. Ficavam se apartando, brincando de caçoar ou de pular uns por cima dos outros, espírito de meninos. Alegria, sim. (p.197)

Manuelzão realiza comparações com os bois, que beneficiam-se evidentemente de sua vida prática, a fonte de sua compreensão do mundo. A submissão dos bois serve de reflexão para a submissão dos homens ao regime de trabalho e à condição social dele decorrente. No trecho da p.175, citado anteriormente, Manuelzão inclui-se nesse povo que se parece com o gado. Nos outros trechos, a comparação nasce de uma observação exterior, sem que ele estivesse incluído no comportamento observado. A comparação com os bois aponta para uma questão muito importante da obra, para além dessa novela: a passividade do povo em relação a sua condição social. Em todo o Corpo de baile encontramos pobreza e resignação, aliadas à construção de uma “adequação” de cada

personagem a seu papel social. Essa adequação não pode ser atribuída a um impulso crítico de exposição da realidade brasileira, porém possivelmente participe, antes, de um movimento de contribuição para a constituição de uma imagem identitária do brasileiro como povo passivo e resignado. A passividade do povo será construída também pela sua religiosidade de fundo, que, dispensando uma consciência histórica da formação da ordem social, contribui para que essa mesma ordem social seja vista como naturalizada e alienada de suas efetivas relações de poder.

Neste momento de “Uma estória de amor”, a ausência da experiência genuína, comunicável, provém e se alimenta da prisão que representa a vida do trabalho na lógica da exploração capitalista, “o acerto escravo de todos”. Para Manuelzão, a lógica própria da narrativa se opõe ao universo cotidiano do trabalho, no qual não há espaço para o ócio e para as coisas que não têm utilidade lucrativa. Ela cabe apenas no momento delimitado da folga, como uma forma de tentar estabelecer um controle sobre seus efeitos. (Na verdade, acaba por se configurar como um impulso de atenuar seu conteúdo e inseri-lo sem riscos na vivência cotidiana.)

Mas, então, o lucro seria de não esperdiçar a espertina destas pequenas horas, e deixar de ouvir aquelas estórias – o vago de palavras, o sabido de não existido, invenções. Tomar a ocasião para presumir os benefícios do serviço do campo, o negócio de sempre. A boiada que ia sair, À Santa-Lua. Não, não carecia. A gente não estava em folga de festa? Ness’horinha, não devia-de. Desmerecia, até estragava o avêjo da festança, se ele pegasse a refletir na viagem da boiada, no procedimento do Adelço. Aborrecia. Deixava para depois, quando a festa estiasse. Aí, resolvia. Ah, não tinha preguiça de si — mas também não assumia receio de ninguém! Era homem de ponto. Só o trunfo de rebentar as durezas — não perdia retreta de vadiação. Agora mesmo, não era por querido querer que estava ali escutando as estórias. Mais essas vinham, por si, feito no avanço do chapadão o menor vento brisêia. A bem que ele tinha decidido o cálculo de botar o pé jazendo na cama, ali, para ajudar que o machucado melhorasse. Se não, estaria em pé, sobre-rondando, vigiando o povo todo se acomodar. Só que o sono se arregaçava. Se furtivava o sono, e no lugar dele manavam as negaças de voz daquela mulher Joana Xaviel, o

urdume das estórias. As estórias — tinham amarugem e docice. A gente escutava, se esquecia de coisas que não sabia. (pp. 167/168)

Manuelzão se vê como um sério homem trabalhador, que só pode escutar as estórias contrariado. As invenções contrastam com a realidade vivida e não podem ter utilidade. No meio do sertão, Manuelzão é um homem que se vê regido pelo cálculo, que foi o que o levou à condição de poder vigiar e mandar. As estórias entram sem querer, no momento incerto da insônia, em que a consciência começa a descansar mas ainda não se abandonou completamente ao sono ou ao sonho. Mais um momento de diluição de limites aproveitado por Rosa: há insônia em “Campo geral”, em “Uma estória de amor”, em “A estória de Lélio e Lina”, em “Dão-lalalão” e em “Buriti”. Mesmo contra a vontade, a narrativa toma conta da sua atenção e retira Manuelzão do curso ordinário dos acontecimentos.

A narrativa nasce da tradição, dos conteúdos assimilados pela experiência e transmitidos através das gerações; e, na medida em que se forma a partir dela, a narrativa tem a forma de sua conservação. Nasce da vida em comunidade, que é o que engendra a verdadeira experiência, mas proporciona vida em comunidade também, pois une pessoas em torno da história transmitida. Como na cozinha todos agora se acham

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