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“todos desempenham papéis intrínsecos a esse sistema, e dentro de limites designados por esse sistema, que são, ao mesmo tempo, os limites do que é politicamente “possível” e, num grau extraordinário, os limites do que é também intelectual e culturalmente “possível”.”

Em “A estória de Lélio e Lina” encontramos um narrador que demora para fixar seu foco e colar-se à perspectiva da personagem. Embora anuncie desde a primeira frase qual é o fato que dá início à história e quem é o protagonista de que vai tratar, há o relato de um contexto narrativo do qual esse protagonista não participara. A indefinição do foco narrativo acompanha a demora para mencionar o nome do protagonista.

Na entrada-das-águas, tempo de afã em toda fazenda-de-gado nos Gerais, um vaqueiro de fora chegou à do Pinhém. Era de tarde, sob um rebuço de calor — o quente da chuva — quando as nuvens descem com peso e a camisa se cola em corpo de homem; dia de meio-céu. A pulso fora o esforço: de trezentas vacas parideiras, quantia delas aviavam parição, com a passagem da lua; e as boiadas bravas, trazidas de outros sertões, já ao primeiro trovão de outubro se lembravam de lá e queriam a arribada, se alçando dos enormes pastos sem cercas; carecia rebatê-las. De torna da lufa, a vaqueirama no pátio vinha de desarrear e amilhar: ainda ali os onze cavalos se ajuntavam, todos eles cabisbaixos. Da varanda, seo Senclér tirava conversa com o pessoal. E o vaqueiro foriço apareceu, montado num animal pampa; um cachorro seguia-o. (p.247)

O narrador relata com objetividade e distância: o vaqueiro chegando e o pessoal da fazenda na beirada da casa. A lida do dia com o gado pertence a uma realidade que o forasteiro desconhece, mas o narrador não, ele põe o leitor a par. Os onze vaqueiros da fazenda, que serão os companheiros de Lélio durante a narrativa, são nomeados de uma vez, “a vaqueirama”, e sabemos seu número pela contagem dos cavalos. Do alto de um lugar destacado, a varanda, aparece o proprietário, o único designado pelo nome, “seo Senclér”, contrastando com o coletivo e impessoal reiterado para os vaqueiros “o pessoal”. Na continuação, o narrador nos oferece um olhar externo sobre o protagonista, o primeiro olhar externo em Corpo de baile aparentemente livre de uma perspectiva de personagem protagonista. Em “Uma estória de amor” vimos outras personagens comentarem o estado de saúde de Manuelzão e nos oferecerem com isso uma aproximação do olhar externo, mas ainda sob a perspectiva da personagem

protagonista, que observava esse olhar externo. Aqui, o olhar é exterior em relação à perspectiva subjetiva de Lélio, personagem responsável pela construção de subjetividade na novela, mas será sempre humano e interno ao sertão. Lélio será observado de fora, sem que sua perspectiva tenha sido iniciada pelo narrador:

De pronto, relancearam o que nele havia a ver, a olho de vaqueiro: rapaz moço, bôa cara e comum jeito, sem semelho de barba nenhum, ar de novidade; com sua roupinha bem tratada: só o chapéu-de-couro baixava muito, maior que a cabeça do dono. Alforjes cheios, saco de dobro na garupa, capa na capoteira; laço estaço — uma “corda” bem cuidada; hampa de vara-de-topar que provava prestança. O cavalo — recém ferrado dos quatro, relimpo de liso — estadava vistoso: assim alto oito palmos da cernelha ao casco, com as largas malhas vermelhas desenhadas em fundo belo branco. (pp. 247/248)

O sujeito indeterminado de “relancearam”, que pode ou não incluir o proprietário, desde que ele tenha também “olho de vaqueiro”, confere ao narrador certa impessoalidade. O narrador nos convida a olhar a personagem com os olhos dos vaqueiros que o vêem chegar e nos ensina como fazê-lo. A minúcia do olhar dos vaqueiros, pronto a estudar os detalhes e a enxergar neles utilidade, tem também a função de nos ensinar os costumes desse modo de vida típico. “A estória de Lélio e Lina” vai tratar como tema central, pela primeira vez na obra, dos vaqueiros em seu ofício. O texto nos ensina como se veste e paramenta um vaqueiro e como se medem a qualidade e o cuidado de sua aparência. O detalhe que avança na direção do tema de “A estória de Lélio e Lina”, além dos outros, que nos mostram Lélio um vaqueiro cioso e bem cuidado, é o chapéu, “maior que a cabeça do dono”. É provavelmente herança de outro vaqueiro mais cabeçudo, provavelmente mais velho e experiente, com tamanho que Lélio, um rapazinho novo, não pode preencher.

Mas, seo Senclér olhando, o rapaz sentiu que ele lhe indagava a graça. — “Eu sou o Lélio do Higino. Meu pai era o vaqueiro Higino de Sás, em Deus falecido.” “— Está passando?” “— Nhor não. Estou alheio.” (p.249)

Só então, sob olhar proprietário, simultaneamente para nós e para os vaqueiros presentes, é que Lélio nos informa seu nome, em voz direta. Como se estivéssemos diante dele, examinando-o na sua chegada e ouvindo-o falar. Até aqui o que sabemos dele é o que os vaqueiros sabem. A perspectiva narrativa então se particulariza:

Seo Senclér demorava. Gostava do em-ser do vaqueirinho, do rumo de suas respostas. Se já estava com bôa chusma de pessoal — aqueles ali e mais três no retiro do São-Bento — por outra a faina concedia de um campeiro a mais (...) Ah, dava pena ver, mundo a dentro, tanta vasta de sustento vazio, e o capim verde tão enganoso; as reses roendo as caveiras de outras (...)[continua

a descrição do limite do cerrado com a caatinga, nos arredores] Mas ali, no

Ribeirão do Pinhém, e no São-Bento, era a felicidade de terrão e relva, em ilha farta — capões de cultura alternando com pastagens de chão fosfado, calcáreo, salitrado — quase tão rica quanto as do Urubùquaquá e do Peixe-Manso. Tanto, que às vezes seo Senclér se reanimava, no entusiasmo de que dela pudesse tirar a salvação de seus negócios; mas que, outras horas, num arregalar de tristeza, pensava achando que talvez ele mesmo não soubesse aproveitar tudo aquilo, e tinha medo de ruína próxima. (pp.249/250 — O

sublinhado é grifo meu.)

A perspectiva narrativa seleciona agora seo Senclér, acessando sua interioridade; a forma como gostou de Lélio, a reflexão sobre a pertinência de empregá-lo, tudo desembocando numa comparação das terras ruins dos arredores com as boas terras do Pinhém (em um movimento de apresentação da fazenda que se repetirá em “Cara-de- Bronze”). Trata-se da mimese de um movimento reflexivo de seo Senclér que, na verdade, tem como função mental amenizar a situação financeira adversa de seus negócios com a fazenda do Pinhém. E a localização do Pinhém82 aparece, ainda sem nenhum referente real: seu nome se deve ao Ribeirão, enquanto os modelos de comparação, o Urubùquaquá e o Peixe-Manso, são possivelmente lugares próximos (o que se confirma, no caso do Urubùquaquá). Na seqüência, o narrador cede a perspectiva

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A explicação do nome Pinhém está em “O recado do Morro” : “A toda hora um gavião voante, sempre gaviões, sempre o brado: pinh’nhé!”, p.417.

de seo Senclér à continuação do diálogo, em que o vaqueiro Aristó, o capataz, toma parte, valorizando a referência que Lélio havia dado: era filho de vaqueiro renomado. Lélio é herdeiro de uma tradição; no Brasil, o trato com o gado evoluiu de forma autônoma. Desde a ocupação do território, cria-se gado, com técnicas e costumes que vão sendo transmitidos de geração a geração. De fato, o Higino estava na lista de vaqueiros excepcionais que Manuelzão, em “Uma estória de amor”, enumera:

Não havia de ser [o Uapa] mais atirado, no vaquejo, do que o Casimiro Boca-de-Fôgo, o Zazo Minas-Novense, o Higino, o Hilário do Riacho do Boi, João Xem, João Vaca, Terto Tertuliano, o José-José do Ipipe. E, afora o primeiro, já dado em alma, os outros todos estavam vivos ali, festantes. (p.183)

O que o texto sugere é que o Higino, pai de Lélio, estava na festa de Manuelzão. Como Lélio acaba de dizer que seu pai já morreu, devemos supor que há um lapso de tempo entre uma história e a outra. A datação da obra, assim como a localização geográfica, é uma tarefa de atenção a minúcias e informações cifradas. A inclusão de equipamentos modernos nas narrativas apontava para um tratamento contemporâneo das histórias, mas sem precisão de datas. Há ainda o crescimento do menino Miguilim, que se torna adulto, garantindo um transcorrer do tempo que abarca todas as novelas. Em “Uma estória de amor”, há uma passagem sobre o velho Camilo que nos ajuda a vislumbrar a época em que se passa o Corpo de baile:

Ao que ficou. Deu o nome, que experimentou escrever, mas não soube, não se alembrou mais, experimentou atôa, com a ponta de um tição preto numa régua do curral. Parou triste. Camilo José dos Santos... E informou idade de oitenta anos para fora: tinha uns oito ou dez, na Alforria do Cativeiro. (p.149)

A conta que o texto sugere não está certa. Se o velho Camilo tinha dez anos na abolição da escravatura, como parece sugerir o texto, e contava na ocasião da festa com oitenta anos, então o texto teria que se passar em 1958! Mas Camilo já não sabe mais escrever o que algum dia deve ter sabido e a memória de datas e números com que pode

contar não é, pois, confiável. No entanto, de qualquer modo, a data aponta para uma contemporaneidade de obra e matéria narrada. Ainda sem precisão.

Em “Dão-lalalão (O Devente)”, na lembrança comum de Soropita e Dalberto, sobre as viagens em comitivas que fizeram juntos, no passado, há novas datas, que também situam, mas sem precisar o presente.

Junto com os zebús, traziam também burrada, burros de bôa cria, de Lagôa Dourada, Itabira de Mato Dentro; chegavam embarcados, em Cordisburgo... — “Foi em 32?”

— 32 e 33, 34, 35... Mesmo depois... Vai tempo. Adeus, zebuada! (p.500)

Sabemos então que as viagens de trabalho de Soropita e Dalberto aconteceram na década de trinta, talvez até os últimos anos. E que passou tempo desde então. Soropita mudara de vida: “Havia mais de três anos Soropita deixara a lida de boiadeiro; e se casara com Doralda” (p.481) Não há como definir com alguma exatidão a época em que se passa o “Dão-lalalão”, pode-se apenas supor que se passa no final da década de 40, talvez depois. Em “Cara-de-Bronze” temos mais uma indicação imprecisa de data, diluída na distância temporal:

O vaqueiro Tadeu: Sei que não sei, de nunca. O que ouvi foi do Sigulim, primo meu, e de outros, que viram os começos dele aqui. Que chegou — era um moço espigo, seriozado, macambuz. E danado de positivo! Foi na era de oitenta-e-quatro... (p.573)

Não sabemos a idade de Cara-de-Bronze. Sua velhice é afirmada e negada pela narrativa. O único dado que temos são os quarenta anos que ficou sem saber o que de fato acontecera na sua mocidade, antes de chegar ao Urubùquaquá. Mas essas considerações nos levariam à década de vinte, anterior ao período sugerido por “Dão- lalalão”. No entanto, não sabemos quando foi revelada a verdade desse passado a Cara- de-Bronze. E, ainda, como podemos perceber pelo trecho citado, as informações todas

estão imersas em indeterminação, sendo transmitidas pela memória dos vaqueiros, de um a outro.

Voltemos, pois, `“A estória de Lélio e Lina”. O movimento narrativo via a personagem protagonista, um jovem vaqueiro que acabara de chegar à fazenda pelos olhos do proprietário. Então ele passa também pelo crivo do capataz antes de ser entregue diretamente ao leitor. O movimento narrativo acompanha a ordem social na qual ingressa Lélio do Higino.

O que o Aristó estava dizendo:

— “Patrão, se sabe que o pai dele, Higino de Sás, assentou nome de vaqueiro-mestre, por todo esse risco de sertão do rio Urucúia...” — então o vaqueiro Aristó disse. — “Pois, veio por caçar no Chapadão o lume da fama do pai?” “— Também nhor não. Só saudade de destino.” “— Você é solteiro, então?” “— Nhor, sim, solto, solto.” (p.250)

Aparece então o principal dado de localização da fazenda do Pinhém: estamos num chapadão, no vale do rio Urucuia. E, como acontecera com Manuelzão, essa localização aparece associada já com os temas de Lélio. Ele é solteiro, o que na passagem se associa a uma imagem de liberdade, que a própria palavra embute. Apesar da sombra do pai, que definiu sua profissão — por afinidade como mais à frente se explicitará — o que Lélio busca é um destino próprio. A palavra “saudade”, que o anuncia, carrega uma temporalidade passada, como se o futuro já estivesse previamente traçado. A expressão “saudade de destino”, ao nomear o presente juntando as pontas do passado e do futuro, suspende a temporalidade, e instaura o plano da busca pelas essências atemporais tão ao gosto de Rosa. Às palavras, que devem retornar ao sentido original, juntam-se os destinos dos homens, que expressam essências humanas universais. A questão é o sentido paralisador que esse modo de tratar os temas humanos cria inevitavelmente. Os temas universais nascem e progridem na história humana, uma história de sofrimento, desigualdade e dominação do homem pelo homem. Quando se toma um paradigma mítico, como a noção de destino que parece irromper aqui e que retornará bem mais explícita em “O recado do Morro”, como um universal, esquecendo-

se que ela viveu na história, em contexto social escravagista, se realiza a supressão das condições para que o novo possa acontecer. Apenas na história há a possibilidade de transformação que é a esperança para quem sofre na opressão, que é responsabilidade para com todos aqueles que sofreram.

Rosa pôs na boca de um jovem, rapazinho muito novo, imberbe, a palavra saudade, como uma reiteração do humano. A saudade que se nomeia aqui é encontro com o já vivido. Veremos como ela retorna sempre, sempre em novas acepções, como verdadeiro tema de Lélio — veremos como diz respeito a Rosalina. Tem uma importância notável no conjunto do Corpo de baile, porque se liga ao tema do exílio, da condição transitória do sertanejo, presente em todas as novelas.

Lélio veio da serra da Tromba d’Anta e traz no seu cavalo uma sela curvelana, que seo Senclér recomenda trocar por uma urucuiana “mais em regra”. Lélio veio da região de Curvelo, pode ser que de Diamantina83, e no Pinhém é pessoa solitária, da forma como o vimos chegar — sem laços, sem conhecer ninguém.

E assim o vaqueiro Lélio do Higino estava entrado, na forma do uso, como solteiro com passadío e paga, e o mais em nome de Deus, amém. (p251)

A oração marca a entrada de Lélio como vaqueiro do Pinhém e a adoção, por parte do narrador, da sua perspectiva para contar a história. Perspectiva que não sofrerá variações até o último ponto final. É interessante observar novamente a forma híbrida da passagem da perspectiva narrativa. Não fica claro quem está orando, o seo Senclér, os vaqueiros todos, o narrador, Lélio. E essa indeterminação que a todos inclui, inclui naturalmente o leitor, que sente a sacralização da passagem sob o pórtico de entrada da história, que agora vai começar.

O que segue é uma apresentação dos vaqueiros, que formarão a sociabilidade de Lélio. Dentre eles, se destacarão Delmiro, “o primeiro rosto amigo que lhe sorriu”(p.251), e Canuto, que brinca de laçar Lélio (“estava alvo de um brinquedo bruto”(p.252)), para se apresentar como afilhado de seu pai Higino. Em “A estória de

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Lélio e Lina”, o conjunto dos vaqueiros, convivendo intensamente, durante um ano inteiro, no trabalho e no lazer, constitui uma espécie de vida em comunidade. Essa comunidade é formada por homens casados e solteiros, estes dormindo juntos no quarto dos vaqueiros. Os vaqueiros casados, com ou sem filhos, possuem casinhas próximas à sede da fazenda, na qual vivem seo Senclér e dona Rute, cujos filhos pequenos moram, ambos, na casa da avó, no Curvelo. As moças solteiras que moram ali são as filhas dos vaqueiros casados. A comunidade se completa com duas prostitutas, as Tias, que moram em casinha mais afastada e com os funcionários de casa, como a cozinheira Maria Nicodemas. Há também uma sitiante vizinha e independente da vida da fazenda, dona Rosalina.

Os vaqueiros são descritos pelas características que destoam dos demais, singularizando-os (grifos meus, em sublinhado):

Os outros estavam sendo mó de muitos, davam para se olhar a vulto, não para se ficar de uma vez conhecendo. Mas Lorindão tomara conta do cachorrinho Formôs; e esse Lorindão, branquelo baixote, meio para velho, com alguma barbicha de cavanhá, era um que parava em pé, as pernas tortas, muito abertas — não tirava as esporas: umas imensas nos calcanhares, de cachorro recurvo e roseta rosa-dos-ventos — e avisava, engraçado: — “Vai vigia sua pinga, que os outros bebem tudo embora... Aqui, a gente tem de estar com u’a mão no nariz e outra no lenço...” O alto, ruivado, era Lidebrando, que disse queria aproveitar réstia de luz, e entrou para a arrearia, onde foi fiar seda de vaca, no canzil, para fazer sedém. Soussouza era o que não esperava aqui nem ali, nervoso, pitando sempre, e que perguntava tudo em voz, pondo mão colhendo ao ouvido, por seu tanto de sudastro. E o Pernambo, trigueirão, escuro, de muito semblante, que quis saber se Lélio tinha relógio, e se tocava algum instrumento ou cantava. E mais Placidino, J’sé-Jórjo, Canuto, Tomé Cássio e Fradim — esse baixinho, desinquieto, saído, fazendo muita pergunta falando depressa, como querendo meter alguém em parapatas, e arrumando cara no contra-responder, de jeito de importância. (pp.251/252)

Em “Uma estória de amor” muita gente vem prestigiar a festa de Manuelzão, compondo diversos grupos sociais, diferenciados sobretudo pela condição financeira e pela função na hierarquia do trabalho com o gado. Aqui no Pinhém, temos uma amostragem de um grupo fechado, que compõe a comunidade constituída por uma fazenda de gado, em sua convivência diária. Aparece no texto a cor da pele, como uma característica entre as outras, que singulariza apenas o diferente. Apenas os muito brancos ou muito escuros são nomeados, o que sugere uma normalidade parda (segundo a nomenclatura oficial brasileira) mulata ou morena, conforme se queira chamar. Os branquelos, corados ou ruivos são então notados, assim como os negros e mulatos escuros. Como temos uma comunidade, em que cada um representa um papel diferente e ao mesmo tempo aparentemente igualitário, estamos em uma condição privilegiada para atentar para a questão racial, tão fundamental no Brasil quanto negligenciada.

Aparece também, ainda sem nenhuma descrição, nada a não ser a menção de um nome, o irmãozinho de Miguilim, o Tomezinho, que aqui, com nome e sobrenome, não deixa dúvidas sobre quem seja. Tomé Cássio é vaqueiro do Pinhém e o Fradim, em quem Lélio teve que pôr sua atenção, contra sua vontade mesmo, contra a vontade do leitor, é seu cunhado, como saberemos adiante.

[Delmiro mostrando o Pinhém a Lélio.] Outra, chaminezinha de fumaça acima: — “O Tomé. Ora vive com uma mulata escura, mas recortada fino de cara, e corpo bem feito, acinturado, que é uma beleza sensível, mesmo: é a Jiní, que se chama...” Tomé Cássio, tão moço, o mais mocinho de todos, quase um menino, mas também o mais sisudo e calado — era o melhor topador à vara, entre os vaqueiros dali. — “Ele não tem um tico de nervoso, não pisca, não estremece, não enruga. Tem medo de nada! Boi bravo, com ele, é que acaba não se reconhecendo...” (p.263)

O Tomé Cássio é ainda o caçula, como no Mutúm. Já menino pequeno apresentava as características que agora são retomadas: Tomezinho de castigo fazia cara de assassino. E Tomé é já apresentado com todas as implicações que sua presença em “A estória de Lélio e Lina” terá (como acontece sempre nas apresentações das

personagens): é sério e calado, novo e corajoso, tem a frieza de um assassino. E, principalmente, é o par da Jiní.

Aparece neste momento uma personagem negra bastante diferente de Mãitina de “Campo geral”, mas que sofre com um mesmo lugar social marginal e estereotipado. As relações motivadas entre as características físicas das personagens, suas características morais e seu lugar social são uma escolha construtiva de Rosa, contra todas as teorias sociológicas ou biológicas. A narrativa faz com personagens e enredos o que a poesia e a linguagem artística fazem com os signos exclusivamente convencionais, segundo a lingüística: motiva-os. É assim que as personagens de Corpo de baile, sobretudo as personagens-tipo, de segundo plano, não protagonistas, partem de estereótipos sociais e

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