• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 5: A relação com a verdade em Michel Foucault e Jacques Lacan:

5.3. A coragem da verdade

Na primeira aula (01 de fevereiro) do curso de 1984, denominado “a coragem da verdade”, Michel Foucault expõe seus objetivos, afirmando que continuará com o estudo da fala franca, da parresía como modalidade de dizer-a-verdade. Para tanto, recapitula o curso do ano anterior considerando que analisar os diferentes discursos que se propõem e que são recebidos como verdadeiros, naquilo que eles têm de específico, em suas “estruturas próprias” pode ser levado a cabo por meio de uma “análise epistemológica”, que apesar de interessante e importante não será seu modo de estudar a parresía neste curso. Considera igualmente

interessante e importante a análise das condições e das formas, ou “o tipo de ato pelo qual o sujeito, dizendo a verdade, se manifesta.” (FOUCAULT, 2011:04). Ou seja, não se trata, para Foucault, de analisar quais formas do discurso nas quais ele pode ser reconhecido como verdadeiro, mas “sob que forma, em seu ato, de dizer a verdade, o indivíduo se constitui e é constituído pelos outros como sujeito que pronuncia um discurso de verdade, sob que forma se apresenta aos seus olhos e aos olhos dos outros, quem diz a verdade, [qual é] a forma do sujeito que diz a verdade.” (op.cit.)

Assim, em oposição à análise das estruturas epistemológicas, Foucault chama a forma de análise que utiliza de “aleturgicas”. De acordo com o pensador, aleturgia seria, segundo a etimologia a produção de verdade, “o ato pelo qual a verdade se manifesta.”257 Nesse

sentido, Foucault esclarece que chegou a essa forma de análise a partir da questão (“da velha questão”) que está no cerne da filosofia ocidental (das relações entre o sujeito e a verdade): “a partir de que práticas e através de que tipos de discursos se procurou dizer a verdade sobre o sujeito” (ibid.p.05).258 E, afirma que sua pesquisa o levou a tomar a mesma questão (das

relações entre sujeito e verdade) sob outra forma: “não a do discurso em que se poderia dizer a verdade sobre o sujeito, mas a do discurso de verdade que o sujeito é capaz de dizer sobre si mesmo [sob] algumas formas culturalmente reconhecidas e típicas, por exemplo, a confissão e o exame de consciência.” (op.cit.). O que o leva, conforme sua expressão, “à análise histórica do dizer-a-verdade sobre si mesmo.” Nessa análise, descobriu, segundo ele próprio, algo que não esperava: a importância do princípio de dizer a verdade sobre si mesmo, em toda a moral antiga e em toda a cultura grega e romana. Tal importância foi revelada na análise das práticas e giravam em torno de um eixo central: o princípio socrático do „conhece- te a ti mesmo‟.259

De acordo com Foucault, foi no estudo das práticas de si da Antiguidade que percebeu o desenvolvimento da injunção “é preciso dizer a verdade sobre si mesmo” donde vê delinear:

(...) um personagem constante apresentado como parceiro indispensável, em todo caso o auxiliar quase necessário dessa

257 Em nota (3, p.19): “o eàoà o eitoàdeàaletu giaà f.àasàaulasà oàColl geàdeàF a eàdeà àaà àdeàja ei oàdeà

à fo ja doà aà pa ti à deàalethou g sà aà palav aà fi tí iaà deàalethou gia, pode ía osà ha a à deà aletu gia (manifestação da verdade) o conjunto de procedimentos possíveis, verbais ou não, pelos quais se traz à luz o que é posto como verdadeiro, em oposição ao falso, ao oculto, ao indivisível, ao imprevisível, ao esquecimento. Pode ía osà ha a àdeà aletu gia àesse conjunto de procedimentos e dizer que não há exercício de poder sem algoà o oàaàaletu gia. ,àaulaàdeà àdeàja ei o (2011:19)

258 Foucault refere-se à História da Loucura, História da Sexualidade e Vigiar e Punir, ainda que não explicite

esses títulos. Cf. FOUCAULT, M. 2011:05

obrigação de dizer a verdade sobre si mesmo. Em termos mais claros e mais concretos, direi o seguinte: não é necessário esperar o cristianismo, esperar a institucionalização, no início do século XIII, da confissão, esperar com a Igreja romana, a organização e o estabelecimento de todo um poder pastoral, para que a prática do dizer-a-verdade sobre si mesmo, e isso na cultura antiga (logo bem antes do cristianismo) foi uma atividade conjunta, uma atividade com os outros, e mais precisamente uma atividade com um outro, uma prática a dois. E é o outro, presente e necessariamente presente na prática do dizer-a-verdade sobre si mesmo, que me reteve e me deteve. (FOUCAULT, 2011, p.6)

Mas não foi simples, segundo Foucault, reconhecer o estatuto desse outro, pois se o conhecemos bem na cultura cristã (“em que adquire a forma institucional do confessor ou do diretor de consciência”) e na cultura moderna (“seja ele médico, psiquiatra, psicanalista, psicólogo”), na cultura antiga sua presença é atestada, mas seu estatuto é variável, pois menos recortado e menos institucionalizado. Desse modo, na cultura antiga, esse outro pode ser o filósofo profissional, pode ser qualquer um, como o professor (“que faz mais ou menos parte de uma estrutura pedagógica institucionalizada)260, um amigo, um amante, etc. Portanto, um estatuto variável: “E seu papel, sua prática, não tão fácil de isolar, de definir, já que, por um outro lado, esse papel cabe à pedagogia, se apóia nela, mas também é uma direção da alma.” (ibid., p.7). Na cultura antiga, esse outro, indispensável para o dizer-a-verdade sobre si mesmo, que é necessariamente qualificado pela instituição, tem como elemento qualificador necessário “certa maneira de dizer que é precisamente chamada de parresía (fala franca).” (ibid., p.8).

Foucault lembra que no ano anterior identificou e analisou a “origem” (onde vê aparecer) da parresía na prática política e na problematização da democracia e posteriormente derivada para a esfera ética pessoal da constituição do sujeito moral. Portanto, conclui o pensador que este exame da noção de parresía é a forma que ele viu se ligarem entre si a análise dos modos de veridicção, o estudo das técnicas de governamentalidade e a identificação das formas de prática de si.261

260 Foucault cita como exemplo Epicteto que dirigia uma escola.

261 Nesse trecho (p.10), Foucault rememora a trajetória geral de sua pesquisa, dizendo que aà edidaàe à ueà

se trata de analisar as relações dos modos de veridicção, técnicas de governamentalidade e formas de prática de si, a apresentação de pesquisas assim como uma tentativa para reduzir o saber ao poder, para fazer do saber a máscara do poder, em estruturas onde o sujeito não tem lugar, não pode ser mais que pura e simples caricatura. Trata-se, ao contrário, da análise das relações complexas entre três elementos distintos, que não se reduzem uns aos outros, que não se absorvem uns aos outros, mas cujas relações são constitutivas umas das outras. Esse três elementos são: os saberes, estudados a especificidade de sua veridicção; as relações de poder, estudadas como uma emanação de um poder substancial e invasivo, mas nos procedimentos pelos quais a

A partir disso, Foucault esclarece que identificou em suas análises a palavra parresía empregada como valor pejorativo – “que consiste em dizer tudo, no sentido de que se diz qualquer coisa” e é quando o parresíasta aparece como um „tagarela impertinente – e também com o valor positivo, que consiste em dizer-a-verdade “sem dissimulação, nem reserva, nem cláusula de estilo nem ornamento retórico que possa cifrá-la ou mascará-la.” (ibid. p.11). Mas é necessário, neste caso, que no ato de verdade haja: “primeiro, a manifestação de um vínculo fundamental entre a verdade dita e o pensamento de quem disse [segundo] questionamento do vínculo entre os dois interlocutores.” (ibid, p.12) Por isso, essa forma de parresía comporta uma forma de coragem. E, por fim, Foucault afirma que a parresía tem como característica “se organizar, se desenvolver, se estabilizar no jogo parresiástico, um espécie de pacto que faz ver a coragem do parresíasta e a grandeza da alma daquele que aceita a verdade.” (op.cit.) Então, diz Foucault, que a parresía não é um tipo de „técnica‟ e o parresíasta não é um profissional, embora haja aspectos técnicos na parresía. Ela é, portanto, uma atitude, “uma maneira de ser que se aparenta à virtude” (ibid, p.15), uma modalidade de dizer-a-verdade. Para definir melhor a parresía, Foucault localiza na Antiguidade outras formas fundamentais de dizer-a-verdade (“mas que encontramos, sem dúvida, mais ou menos deslocadas, vestidas, postas em forma de maneira diversas, em outras sociedades, na nossa também” [p.15]). São elas:

O dizer-a-verdade da profecia:

O que interessa a Foucault nessa modalidade fundamental de dizer-a-verdade não é o que os profetas diziam, mas a “maneira como o profeta se constitui e é reconhecido pelos outros como o sujeito que diz a verdade”, pois, para Foucault, o profeta é alguém que diz a verdade. Mas a veridicção do profeta se situa, como diz Foucault, em “postura de meditação”, o que quer dizer que ele não fala em seu nome e sim por outra voz; sua boca é intermediária para uma voz “que fala de outro lugar”, portanto, endereça uma verdade que vem de outro lugar. O dizer-a-verdade do profeta é intermediário porque ele desvela, esclarece, porém, não desvela sem ser obscuro e não revela “sem envolver o que diz em certa forma que é a forma do enigma.” (p.16). Portanto, ele não diz a “verdade nua e crua”. Assim, nas palavras de Foucault, “mesmo quando o profeta diz o que deve fazer, resta ainda se interrogar, resta conduta dos homens é governada; e enfim os modos de constituição do sujeito através das práticas de si. É realizando esse tríplice deslocamento teórico – do tema do conhecimento para o tema da veridicção, do tema da dominação para o tema da governamentalidade, do tema do indivíduo para o tema das práticas de si – que se pode, assim me parece, estudar as relações entre verdade, poder e sujeito, sem nunca reduzi-las umas às out as. à

saber se quem ouviu não permanece cego, resta questionar, hesitar, resta interpretar.” (ibid, p.16). Com isso, entende-se que o „dizer-a-verdade‟ do profeta provoca interrogação, interpretação. O profeta diz a verdade do que será. O dizer-a-verdade da profecia, portanto, é interrogação e destino.

O dizer-a-verdade da sabedoria:

Essa modalidade do dizer-a-verdade, importante para a filosofia antiga, opõe-se à modalidade da profecia porque o sábio fala em seu nome, em seu próprio nome. E se a verdade dita pelo sábio pode ser inspirada por “um deus” ou lhe é transmitida por uma tradição, um ensino mais ou menos esotérico, ainda assim, o sábio está presente em seu dizer- a-verdade. De qual sabedoria se trata? De sua própria sabedoria. O que o qualifica é seu modo de ser sábio. Diz Foucault: “o sábio, no que diz, manifesta seu modo de ser e, nessa medida, embora ele tenha de fato uma função de intermediário entre a sabedoria intemporal e a tradicional e aquele a quem se dirige, não é simplesmente um porta-voz, como pode ser o profeta.” (ibid, p.17) Por isso, está mais próximo do parresíasta do que o profeta. O que caracteriza o sábio é que ele mantém a sua sabedoria na reserva, pois não precisa falar. Não é obrigado a falar, mas faz quando solicitado pelas questões de outrem. Suas respostas, como as do profeta, também podem ser enigmáticas, mas ele diz o que é “o ser do mundo e das coisas” e esse dizer pode tomar a forma de prescrição (não de conselho) de princípio geral de conduta.

O dizer-a-verdade de quem ensina (o técnico):

Como característica possui a tékhne, conhecimentos, “mas conhecimentos que tomam corpo numa prática” e que dependem, portanto, não apenas de um conhecimento teórico, mas do exercício. “Eles detém o saber, professam-no e são capazes de ensiná-lo aos outros.” (ibid., p.23) O técnico aprendeu a tékhe e é capaz de ensiná-la, diferencia-se do sábio (“que tem de dizer-a-verdade, ou em todo caso formular o que sabe e transmitir aos outros”), pois esse técnico tem certo dever de palavra. Diz Foucault: “Ele (o técnico), de certa forma, tem a obrigação de dizer o saber que possui e a verdade que conhece, porque esse saber e essa verdade estão ligados a toda uma tradicionalidade.” (p.23) Pois, então, para que seu saber não morra depois dele, vai ter de transmiti-lo, por isso tem como princípio, a obrigação de falar (mas uma fala que não assume qualquer risco, por isso é diferente do parresíasta). O vínculo que se estabelece, portanto, é o do saber comum, da herança, da tradição. Diz Foucault: “em todo caso, nesse dizer-a-verdade, se estabelece uma filiação na ordem do saber.” (p.24). Portanto, o dizer-a-verdade de quem ensina assegura a sobrevivência do saber.

O dizer-a-verdade da parresía:

O parresíasta fala em seu próprio nome (por definição) e ajuda os “homens na cegueira”, mas na cegueira têm sobre si mesmos “e não em consequência de uma estrutura ontológica, mas de algum erro, distração ou dissipação moral.” (ibid., p.16). O parresíasta não fala por enigmas, mas diz as coisas de modo claro e direto, sem disfarce, sem ornamento retórico; o parresíasta não deixa nada a interpretar. “Claro, ele deixa algo a fazer: deixa àquele a quem ele se dirige a rude tarefa de ter coragem de aceitar essa verdade, de reconhecê-la e dela fazer um princípio de conduta.” (ibid., p.16). Portanto, o parresíasta não diz o destino. O parresíasta não se mantém reservado, ao contrário, diz Foucault, ele tem a obrigação, o encargo, a tarefa de falar “e ele não tem direito de se furtar a essa tarefa.” (ibid., p.18) Nas palavras de Foucault: “enquanto o sábio se mantém em silêncio e responde parcimoniosamente, o menos possível, às questões que lhe são formuladas, o parresíasta é o indefinido, o permanente, o insuportável interpelador. Com relação ao sábio, o parresíasta se difere também porque não diz o ser do mundo e das coisas, mas intervém, diz o que é, “singularidade dos indivíduos, das situações e das conjunturas.” (op.cit.) Ou seja, “o parresíasta não revela a seu interlocutor o que ele é. Ele ajuda ou desvela ou o ajuda a reconhecer o que ele, o interlocutor, é.” (ibid., p.19) Portanto, o parresíasta não diz o ser. O parresíasta também tem, como o técnico (o que ensina), a obrigação de falar, mas assume um risco ao falar e por isso põe em jogo o discurso verdadeiro, “do que os gregos chamavam de éthos.” (p.25). O parresíasta portanto, não diz o destino, não diz o ser, não diz a tékhne, diz o éthos.

Documentos relacionados