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Em aberta polêmica com a tradição medieval e escolástica, toda propensa a valorizar o papel da transcendência religiosa e a colocar o indivíduo dentro de uma rígida escala social, a nova civilização concebe o homem como o “senhor do mundo” e ponto de referência da criação, “cópula do universo” e “elo de conjunção do ser”. Um homem não irreligioso, portanto, que não exclui Deus, mas que volta as costas aos ideais da ascese e da renúncia, pronto para imergir no mundo histórico real com o intento de dominá-lo e nele expandir a própria humanidade. (CAMBI, 1999, p.224, grifos do autor)

Não há nada mais ridículo que o fato de que esta criatura mísera e mesquinha, que não consegue sequer ser dona de si, se creia destinada a ser dona do universo, do qual não pode conhecer e muito menos dominar a mínima parte. (MONTAIGNE)147

O humanismo vê na formação por meio do studia humanitatis a via para a constituição de um novo homem. A crise no modelo escolástico, relatada por Cambi (op.cit.), leva a afirmação de novas perspectivas em franca polêmica com a tradição medieval. Conforme

146 Técnica para o trabalho intelectual que não parece ser a mesma, que não se confunde com a arte técnica

profissional para o ensino/formação nas oficinas e nos campos, deixando entrever aí uma transformação, um deslocamento, quanto à questão da técnica e sua relação com a educação.

ressalta Lefort (1999), a escolástica com sua edificação de um “sistema de ensino” coerente e durável, com a fixação de métodos e programas e com a inauguração da universidade sob o “signo de uma verdade transcendente da qual a Igreja era depositária”, não engendrou a ideia de uma educação que contivesse “em si sua própria finalidade”, ou seja, uma educação que não era independente de seu objeto de estudo. Por isso, Lefort (op.cit.) entende que com o humanismo opera-se uma mutação, pois não apenas os programas de ensino (com a restauração da língua latina e o retorno às fontes clássicas) como e principalmente, no discurso pedagógico. Para esse pensador, nos primeiros decênios do Trecento, em Florença, onde e quando baliza-se a matriz de representação do humanismo, da pedagogia moderna e “ao mesmo tempo da democracia”, uma concepção nova de educação faz nascer o “discurso pedagógico”. Nas palavras de Lefort: “o fato novo, como bem salientou Phillipe Ariès, é que não mais se trata de aprender por intermédio dos outros „com o objetivo utilitário, mas sim em vista de uma formação de espírito‟. O fato novo, diz ele ainda, é que aparece „no ensino assim como na sociedade, a noção, até então desconhecida, de cultura geral‟”. (ibid.,p.210-211, grifos do autor).

Nesse sentido, Lefort observa que essa noção de formação de espírito e de cultura geral implica que a educação deixa de possuir limites definidos para acolher a indeterminação, pois quem aprende não está sendo requisitado para dominar certos conhecimentos, mas para se engajar num “novo relacionamento com o saber.” Um tipo de relacionamento que permitirá que independentemente do ensino do momento, ou seja, ao longo da vida, àquele que „aprendeu‟ continuar a ler os autores e daí colher permanentemente, por seus exemplos, “um alimento espiritual e ir interminavelmente ao encontro, à conquista de sua humanitas.” (op.cit.) Lefort considera assim que a indeterminação dessa educação é a razão pela qual a educação não se reduz a uma função enunciável de uma certeza extrínseca e obtém o valor em si, pois “revela-se em busca de si mesma e engendra, na prática, um discurso que a visa como tal.” (op.cit.)

Com Lefort, considera-se que aquilo que interessa nessa mutação é menos a modificação no sistema de ensino e mais a representação de educação na qual um sistema de ensino se ordena. “Não somente essa representação, esse desejo não são simples reflexo de uma „ordem de coisas‟, como alguns querem fazer crer, mas sim da ordem das coisas são constitutivos.” (ibid.,p.208). Por isso, esse autor admite que o studia humanitatis esteja associado a uma nova concepção de educação que não tem sentido somente como uma teoria, mas está relacionada ao advento do discurso político, do discurso histórico e do discurso sobre a língua. Nesse tempo, para Lefort, a Cidade (a República) apresenta-se como a

instituição formadora, assim como a família e a História (aprendida como história edificante), da mesma forma, supõe-se que a língua “contenha os preceitos da eloquência e do raciocínio justo.” (ibid.,p.210). Cambi (1999) marca a importância dessa consciência da história (edificante), pois ela está atrelada ao poder que o “novo homem” tem de ser artífice de sua própria história o que o leva a “mergulhar na vida civil”, por isso esse “novo homem” engaja- se na política, no comércio e nas artes para exprimir “uma visão harmônica dos aspectos multiformes dentro dos quais se desenvolve a atividade humana.” (ibid.,p.224). É na cidade que o indivíduo se realiza, dizem em uníssono Salutati, Bruni e seus amigos, conforme a expressão de Lefort. É aqui, segundo Cambi, que a diferença com o passado é evidente, pois o mundo deixa de ser o lugar de expiação e pena para se tornar a expressão “da força reativa e do espírito de iniciativa do homem”. Nas palavras do historiador: “Nascem daqui uma nova concepção da virtude, exemplarmente expressa pelo termo humanitas, e uma nova escala de valores éticos e sociais na qual não existe mais lugar para a tradicional hierarquia nobiliárquica e eclesiástica.” (CAMBI, 1999, p.225).

De modo semelhante a Lefort, também Cambi considera que essa nova concepção antropológica necessita de condições sociais que garantam sua realização, assim, o interesse se volta para a “problemática educativa” nos níveis teórico e prático. Por isso, não são apenas aqueles diretamente ligados a essa problemática que lhe dedicam atenção, como os educadores e pedagogos, mas também os literatos, políticos e os recém- chegados burgueses. Mas, Lefort enfatiza a dimensão da significação política dessa questão, pois o “impulso dos studia humanitatis em Florença serve a uma nova ética da vida ativa contraposta à vida contemplativa, serve a uma ética da vida do homem no mundo e de seu engajamento na Cidade.” (LEFORT, 1999, p.212)

Como consequência, a formação desse “novo homem no mundo” não poderá ser limitada, mas deverá garantir o exercício de suas funções na cidade. De acordo com Cambi (1999) essa formação se realiza por meio de um currículo baseado essencialmente na leitura dos clássicos gregos e latinos. “O estudo dos clássicos permite não só superar a utilização meramente gramatical e estilística que deles fez a cultura medieval, mas, sobretudo, descobrir uma humanidade feita de valores universais elaborados e produzidos na Antiguidade.” (ibid.,225). Nesse sentido, também Lefort (1999) considera que o retorno à Antiguidade não é porque as fontes antigas eram desconhecidas, pois a Antiguidade nunca deixou de rondar a Idade Média, mas a distinção do humanismo está em sua consciência de uma ruptura no tempo, ou seja, a Antiguidade que “se constitui” no humanismo é como “um passado à distância”. Para Lefort, é precisamente essa percepção das diferenças dos tempos

que está ligada às novas ideias de cultura e de humanitas. Ou seja, não parece se tratar de um simples “retorno” à Antiguidade, mas de uma forma de relacionamento com o mundo antigo que em “prol da restauração da identidade dos antigos é a obra na qual os modernos reconhecem sua própria identidade.” (ibid.,p.212)148

Assim, os humanistas mais do que influenciados pelos antigos, estavam, para Lefort, “retornando” aos autores antigos para devolver-lhes uma identidade: “trata-se, graças a novas técnicas filológicas, de restituir a verdade de suas proposições, de ter o conhecimento exato dos textos, descartando os intermediários que, de boa-fé ou de má-fé, os deformaram e os falsificaram.” (ibid., p.213). Conforme ressaltam Cambi e Lefort, tal “leitura” somente foi favorecida por uma nova ideia de língua, ou seja, a leitura dos clássicos no original possibilita saber o que significa o “verdadeiro latim”, bem como é o “conhecimento do verdadeiro latim que abre uma via de acesso aos textos da Antiguidade.” (LEFORT, 1999, p.213) Ou nas palavras de Cambi (1999, p.225): “a leitura dos clássicos no original permite entrar em comunhão espiritual com os grandes da Antiguidade (...)”

De acordo com Cambi (op.cit.) expressa-se com isso um programa de valorização da língua latina em oposição ao pedantismo da escolástica. Mas, longe de considerar o humanismo como um movimento meramente filológico-literário, o historiador atribui grande importância ao movimento também no âmbito filosófico, pois nesse período não só se redescobre Aristóteles estabelecendo-se uma polêmica com as interpretações medievais, como também se reavaliam o estoicismo, o epicurismo e o neoplatonismo que a cultura escolástica medieval havia ignorado. O historiador admite ainda que tais redescobertas (ou leituras) atingem o campo pedagógico (nos estudos e na práxis escolar), como por exemplo, quanto à referência a Platão que reconduz a pedagogia para polis, para o seu engajamento político, reconhecendo a pedagogia como um dos pilares para o desenvolvimento. Cambi afirma que o retorno à Paidéia efetuado pelos humanistas tem como tema a referência à polis, que se inspira nos modelos do classicismo e se nutre dos studia humanitatis, que se destinam a “restaurar o sentido e o uso das palavras, procurando-os nos autores gregos e latinos, mas também se esforçando para encontrar o timbre do discurso comum e a formar moralmente o

148 F a oà Ca ià pa e eà pa tilha à dessaà ideia,à poisà afi a:à Certamente não se trata apenas de restaurar

textos, mas também de fazê-los falar aos contemporâneos, de dialogar diretamente com eles, para nutrir-se de seu espírito cultural e para encontrar modelos (políticos, literários, filosóficos) a serem revividos. Por exemplo, a leitura de Platão feita pelos humanistas florentinos, de Leonardo Bruni a Marcílio Ficino, mesmo articulando-se em várias frentes – política, lógica, metafísico-religiosa – foiàse p eàu aàleitu aà aoàvivo ,àligadaàaàu àfo teà desejo de diálogo e de reativação de modelos ainda carregados de sugestão e de atualidades. (1999, p.239- 240)

homem, mas segundo uma moral mais livre e mais consciente do próprio caráter mundano (...)” (CAMBI, 1999, p.241).

Da mesma forma, para Theobaldo, M.C. (2008), a leitura dos antigos levou humanistas como Petrarca, depois Salutati e Bruni e mais tarde Valla e Erasmo, a afirmarem em acordo com Cícero e Quintiliano que no uso público da palavra o homem pode desfrutar da vida civilizada, atingindo a plenitude da condição humana. Tal afirmação encontra seu ponto de apoio nos studia humanitatis, ou “uma formação de base literária, pois, é pelo contato com a sabedoria antiga e o exercício eloqüente da palavra que o homem se aproxima da perfeição e conquista sua dignidade.” (p.209). Cambi (1999) considera que o retorno a Cicero e a Quintiliano não somente repunha o ensino do latim, mas o vinculava a novos princípios e modelos, particularmente em direção à vida política. De acordo com Cambi referindo-se a Garin (1968)149, os studia humanitatis implicavam uma organização de estudos

que tomavam como ponto de partida os estudos literários. Para Theobaldo (2008) a tradição literária antiga, torna-se, com isso, instrumento fundamental para a formação cívica. E podemos pensar: o saber sobre a tradição, numa reinterpretação pelos humanistas, era o apoio para a educação cívica.

Assim, é possível inferir que o ensino do latim e da retórica como um dos pontos de apoio desse modelo educativo é difundido, “por influência da cultura italiana e de Erasmo” (CAMBI,199, p.263) por toda a Europa.150 Um tipo de educação filológico e literário, que se espalha pelos novos colégios, e promove uma mudança em todo o universo da educação: “muda o ensino e muda a atitude da família em relação à criança, muda a imagem do homem que é formado por esse processo educativo: trata-se daquele homem mais laico, civil e faber (...)” (ibid., p.241)151

Erasmo, pareceu exercer grande influência quanto à difusão do humanismo na educação, especialmente com a publicação de manuais sobre pedagogia, que têm como principal meta o domínio dos studia humanitatis. Nas palavras de Theobaldo (2008, p.210): “e tão logo eles se voltam para o exame dessas disciplinas, sua dívida para com a tradição romana da educação retórica emerge de forma bastante explícita.” Para essa autora,

149 Garin, Eugenio. L à du atio àdeàl ho eà ode e. Paris, Fayard, 1968. Também citado por Lefort (1999) e

Theobaldo (2008)

150 Mas,à deà a o doà o à Ca i,à F.à e à p i ípio,à a cultura humanística não encontra um ambiente muito

favorável na França. No país, as universidades – a Sorbonne em primeiro lugar – continuam no século XVI a seguir a escolástica medieval. à ,àp.

151 Lefort (1999) e Cambi (1999) lembram os estudos de P. Ariès sobre o nascimento do sentimento de infância

nessa época. Mas, Lefort argumenta que apesar de Ariès ter afirmado a considerável influência do humanismo oà se ti e toàdeài f ia à,à e toà ú e oàdeài fo aç esàdeà i o di àdeàjo aisàeàosàdive sosàteste u hosà mostram que a manifestação desse sentimento já e sensível no final do Trecento.

reaparece com os humanistas a questão colocada por Quintiliano no Livro X de sua Institutio Oratoria, qual seja, o orador deve procurar dominar pelo menos três disciplinas além da própria retórica: a poesia, a história e a filosofia moral. A importância concedida particularmente ao ensino da retórica no humanismo é afirmada por Erasmo com a finalidade última de uma formação moral e cívica. Tal importância marca uma considerável mutação em relação à antiga disputa retórica versus filosofia,152 pois que, retomando a “boa retórica”, ela está novamente ao lado da filosofia, mas reconfigurada num saber e disposta às explícitas finalidades educacionais de formação.

Se, como observamos, anteriormente a retórica não parecia estar vinculada positivamente à filosofia, agora com os humanistas, ela aparece como um saber para a formação moral e cívica. Skinner, Q. (1996)153, considera que os humanistas dão um primeiro

passo em relação aos estudos clássicos ao desenvolver e explicitar o conceito de virtus, de Cicero, pois nessa explicitação consideram três pressupostos, primeiro: “que está ao alcance dos homens atingir o mais alto grau de excelência”; segundo: “que uma educação adequada constitui condição essencial para se alcançar esse objetivo” e terceiro, “que o conteúdo de tal educação deve concentrar-se num estudo interligado da filosofia antiga e da retórica.” Por isso, ao assumir esses critérios, os humanistas conferem um valor altamente positivo aos saberes e estudos retóricos: “agora lhes soava incontestável que a retórica e a filosofia deveriam ser consideradas as principais disciplinas culturais.”154

Assim, conforme observa Theobaldo (op.cit.), as propostas educacionais de Erasmo criticam as práticas pedagógicas do primeiro humanismo (“que têm como alvo as técnicas de memorização, a falta de liberdade do aluno e a ausência de procedimentos que levem à formulação de julgamentos”), para exaltar o valor de uma formação elevada nos studia humanitatis, que o capacita ao julgamento e a inferência plena na sociedade. Para Erasmo o saber pelo saber não tem serventia e a educação pelos studia humanitatis deve prover o bem falar e o bem escrever para “bem pensar”. Para que o “bem pensar” possibilite uma participação ativa na sociedade, o homem deverá estar livre das amarras de uma educação rígida “com base na imitação dos autores que não estimula a criação e nem a crítica”. De acordo com Theobaldo (2008), considera-se então que o “bem falar, o bem escrever e o bem pensar, significam o triunfo da retórica”, ou da boa retórica, conforme Cícero e Quintiliano:

152 Conforme abordado no segundo capítulo desta tese.

153 Skinner, Q. As fundações do pensamento moderno. In: Theobaldo, M.C. (2008, p.211) 154 Apud THEOBALDO, 2008, p.211

“como meio de convencer orientado para a comunicação da verdade, ou do que se estima por verdade”. (ibid.,p.213).

Desse modo, parece-nos, reabre-se com o humanismo a antiga questão a respeito da retórica em sua relação com a verdade. E, nesse debate, um novo elemento se interpõe: a reflexão pedagógica humanística, com seus saberes e ideais de formação espiritual. Pois, o ensino da retórica em suas condições humanísticas, antes de ser tomado como consenso, parece ter provocado novas questões quanto à educação. Por isso, admitimos que, com Montaigne, a reflexão pedagógica adquire novas considerações sobre um velho dilema.

De acordo com Cambi (1999), Michel Eyquem, senhor de Montaigne (1953-1592), de sólidas “convicções” católicas por nascimento, por uma série de circunstâncias, abandona a vida pública e dedica-se (no castelo herdado dos avós) a uma reflexão interior “sobre si mesmo e sobre o homem em geral”, cujos resultados podem ser conferidos nos Ensaios. Para Cambi, nos Ensaios, respiram-se os ares do estoicismo e do ceticismo humano. Montaigne não elabora uma ideia sistemática sobre educação, mas “as alusões e motivos que aparecem aqui e ali nas suas páginas revestem-se de grande significado educativo.” (ibid.,p.268) Nesse sentido, dois ensaios do primeiro e do segundo livro (Pedantismo e Da educação das crianças) podem ser consideradas grandes reflexões para o campo da educação e da pedagogia. Contudo, interessa-nos menos a reflexão sobre a pedagogia stricto sensu e mais a reabertura por Montaigne de uma antiga questão colocada na Antiguidade.

Em Pedantismo, Montaigne desfere sua crítica sobre as práticas educativas em uso nas escolas de sua época – “tanto naquelas que permanecem com posições escolásticas quanto naquelas que se inspiram apenas formalmente nas concepções humanistas”. Para ele, em ambos os casos o desfecho é por uma educação „pedante‟, “preocupada apenas em encher a cabeça de noções e não em visar à formação da capacidade de julgamento e do espírito crítico dos alunos.” (op.cit.) Para Montaigne uma educação não deve estar apartada da vida prática. Theobaldo (2008, p.214) cita trecho do Livro I de Ensaios:

Proclamai a nosso povo, sobre um passante: “Oh que homem sábio!” E sobre um outro: “Oh, que homem bom!” Eles não deixarão de voltar os olhos e o respeito para o primeiro. Seria preciso um terceiro pregoeiro: “Oh, que cabeças estúpidas!” Facilmente perguntamos: “Ele sabe grego ou latim? Escreve em verso ou em prosa? Mas se ele se tornou melhor ou mais ponderado, isso era o principal e é o que fica por último. Seria preciso perguntar quem sabe melhor, e não quem sabe mais. (MONTAIGNE)

Montaigne aponta os mestres como os responsáveis por essa “degeneração” da educação, pois considera seus métodos de ensino “abstratos e formais, pouco sensíveis à observação da realidade e pouco respeitosos das leis da natureza.” (CAMBI, 1999, p.269). Também no “Da educação das crianças”, Montaigne crítica severamente a educação letrada dos humanistas por sua erudição vazia e por sua aproximação ao pedantismo. Mas, de acordo com Cambi, nesse ensaio, prevalecem elementos positivos e constitutivos, apontando que a educação deve formar homens de mentalidade critica, aberta e de sólidos princípios morais. “Melhor uma cabeça bem feita do que uma cabeça bem cheia”, parece ser o que diz Montaigne. De acordo com Cambi, para Montaigne, nada deve ser aceito pelo aluno “só por autoridade ou por crédito”155. A utilidade da aprendizagem parece ser de grande importância,

inclusive a aprendizagem literária derivada da tradição clássica, desde que harmonizada às exigências da vida cotidiana.

Entretanto, Theobaldo (2008), entende que no último segmento desse ensaio, o motivo das críticas de Montaigne aos mestres humanistas é o afastamento das palavras em relação às coisas, pois enfatiza o aprendizado das línguas pela prática e pela experiência, oposto ao aprendizado pelas técnicas mnemônicas e livrescas, como aquele que pode fazer uma “escola dos homens” (em oposição à escola das letras). Nesse ensaio, Montaigne critica o uso do tempo, considerado longo demais, para o estudo da retórica e das línguas antigas, “enquanto as coisas da vida e a formação prática são depreciadas e remetidas ao futuro.” (p.214). Para Theobaldo (2008), essas críticas percorrem todo o ensaio e conduzem à seguinte consideração: “mais do que dizer bem, melhor o agir adequado; mais do que a “exercitação” da língua, vale a “exercitação” da alma.” (ibid.,p.215, grifos da autora). Assim, o estudo não deve ornamentar, mas nutrir e formar o caráter. Montaigne cita Cícero: “Como homem que faça do ensino que recebeu não um motivo de ostentação, e sim a regra de sua vida, que (o jovem) saiba obedecer a si mesmo, submeter-se a seus próprios princípios.” 156

Em Ensaios, Livro I, Montaigne, em ao menos duas passagens, de acordo com as análises de Theobaldo (op.cit.), direta ou indiretamente, questiona a pedagogia de sua época. Primeiro: em alusão ao tempo de aprendizado de certas matérias (para Montaigne deve-se iniciar o mais cedo possível a exercitação da capacidade de julgamento, ensinando, o mais brevemente a filosofia moral “imprescindível para formação de um caráter virtuoso”), que

155 Sob esse aspecto diz Montaigne: adaà deveà se à a eitoà peloà alu o à s à o à auto idadeà po à dito;à osà

princípios de Aristóteles não sejam seus princípios mais do que os dos estóicos ou dos epicuristas. Coloquemos o

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