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1.2 INOMINÁVEL

1.2.2 Corpo e rosticidade em Margherita Manzelli (Itália, 1968-)

A artista Margherita Manzelli elabora na pintura corpos femininos que ocupam uma posição centralizada dentro dos limites do quadro, com um tratamento peculiar que tange uma oscilação de limites entre presença/ausência, cujos corpos são leves e cujo rosto, tal qual em Jean Rustin, também nos encara e em que podemos observar elementos de predominância e recorrência em sua obra. Constata-se uma sensível relação entre o corpo e o espaço que remete a uma cena fixada em um ambiente limpo e acéptico de uma casa, pois reconhecemos alguns objetos que levam a crer tratar-se de um ambiente intimista. Porém, em dissonância com a expressão do rosto da figura, parece haver um sentimento de conformidade diante desse espaço, como se o corpo estivesse ali imobilizado em algum momento de reflexão que busca uma interlocução com quem está fora da moldura, no caso o observador da pintura. Novamente a frontalidade chama a essa interlocução, posta pela pintora como reflexo, o que nos sugere um espelho a refletir estados internos.

Ao posicionar o corpo em repouso, ou sentada ou deitada, raramente em posição verticalizada, a horizontalidade predomina levando a nos sentirmos em um silencioso campo de reflexão poética. Não há movimento, seus corpos estão em uma mudez plácida e conformada, alguns momentos nos conduzem para outro universo, não mais do quarto ou da sala. Peixes coloridos nadam na lateral do quadro Programma, disciplina, maestro (Figura 43), de 2008, cuja dimensão é ampla, em contraponto à figura feminina delicada que nos olha na parte lateral esquerda; nesta a presença é indelével, etérea, só sustentada pela grande sombra na qual a figura emerge. Pleno de significados, os elementos constituem um possível sinal de elaboração onírica, como se a personagem nos apresentasse uma fração de seu inconsciente.

[...] Mesmo na ausência de tais gestos, a pintura continua a ser uma emanação do corpo. Não é por acaso que os sujeitos das telas de Manzelli [...] sempre foram mulheres frágeis e problemáticas, aparentemente perdidas em espaços potencialmente perigosos, embora domésticos. Elas são quase sempre figuras solitárias que se assemelham entre si, como se fossem várias imagens de uma única persona. Mas, enquanto as pinturas de longe se assemelham a autorretratos, a artista sempre insiste que não tem desejo de retratar-se em comparação com trabalhos anteriores. As pinturas neste projeto mostram uma forte sensação de solidão, acentuada pelo fato de que as figuras vagueiam em um espaço despojado de quaisquer elementos de identificação. Estes não são descrições mais longas de interiores domésticos, o que poderia pressupor a existência de relações invisíveis, um vazio sem coordenadas – algo como o espaço de consciência, talvez. Me pego pensando se não é o caso da artista distanciar-se dela mesma por causa do envolvimento com a sua pintura, que ela acha muito intensa emocionalmente [...] (PIOSELLI, 2010, p. 2).

Mesmo que algumas obras apresentem uma exuberância de tons, são momentos e planos específicos. O azul é celestial, frio e infinito, o que sugere um interesse pelo vazio; planos de cor que cobrem a superfície para que o corpo se sobressaia nela. Acreditamos que a diferença esteja no caráter conceitual dos espaços apresentados nas pinturas, a despeito da cor que em certo modo dialoga. Os espaços que comportam os corpos são espaços determinantes na leitura que se venha a fazer do assunto do quadro, contudo, para suscitar essa localização, nem sempre são dados pelo artista vestígios claros do que está tratando, faz parte do enigma implícito na obra. Nesse caso, porque são espaços interiores, podemos aceitar que se trata de ambientes frios e impessoais, ou não, as leituras seriam variáveis infinitas, o que queremos dar a refletir é a relação que se estabelece entre o corpo mais ou menos centralizado e seu entorno. Embora Manzelli apresente sua personagem em uma cama em Notten (Figura 42) de 2000, a proporção desmesurada trai uma relação normativa com esta, sendo a pintura o espaço do impedimento de relações entre objetos representados.

Figura 62 - Margherita Manzelli, Dopo la Fine, Óleo s/ tela, 2008.

Fonte: Disponível em: <http://www.phantasmaphile.com/2009/10/margherita-manzelli.html>. Acesso em: 9 jan. 2012.

Figura 63 - Margherita Manzelli - Un giorno sulla terra - 2011. Oil on linen. 77.2 x 118.1 inches / 196 x 300 cm. Fonte: Disponível em: <http://www.kimmerich.com/html/artists/margherita-manzelli/02.html>. Acesso em: 9

jan. 2012.

A presença feminina, os velhos, as relações afetivas aparecem em muitos trabalhos de Beckett quase sempre em caráter de derrisão. A personagem Winnie, de Dias Felizes (1960/1961), sugere uma interlocução com as personagens da pintora Margherita Manzelli. A obra desta é composta de muitas figuras femininas apresentadas em condição de isolamento ou repouso, posto que a cor rebaixada e às vezes mais pura, sem rebaixamento em tonalidades, comporta um olhar sensível sobre o corpo de constituição pequena.

Ao trabalhar com a presença feminina em espaços intimistas de uma paleta cromática mais para as tonalidades frias, ou um corpo isolado em uma grande superfície branca, a pintora Margherita Manzelli pode sugerir certa condição de resistência isolada ou apenas silenciosa num espaço de grandes proporções. Em Samuel Beckett, é o ser frente ou posto em espaços vazios, mesmo quando se trata de um quarto, de uma sala ou de alguma esquina da cidade, onde, por meio da ironia ou da agonia, a ação se desenrola. Ambos convocam o observador a ser cúmplice dessa espécie de resignação que é passiva, que fixa o olhar, que nesse caso pode não ser confrontador, pode ser apenas um olhar que remete à frontalidade própria da pintura.

[...] Nas pinturas da artista Margherita Manzelli, a luz parece estar sempre colocada a alguns metros de distância do objeto, de forma a iluminar o rosto da modelo no exato momento em que seus olhos se fixam na cena. As áreas mais escuras, por outro lado, não são determinadas por iluminação específica, mas são o resultado de um sistema de effondrement (afundamento/ocultamento) dentro da própria tela, isto é, uma escala metafórica, que mergulha na obscuridade formando um padrão a partir

do universo psicológico e emotivo da modelo. Embora os objetos na obra de Manzelli sejam traduzidos pela fisiologia dos olhos (definição volumétrica da anatomia, utilização de uma única fonte de luz e chiaroscuro decorrente), eles tendem à abstração, em parte devido à aridez da pintura, e em parte pela memória seletiva da artista.

Pintados a partir da memória, Manzelli descreveu seus retratos como mulheres que conheceu ou viu alguma vez na sua vida, às quais sobrepôs características físicas segundo seu próprio estilo. Embora algumas figuras pareçam-se com a artista, suas pinturas não são autorretratos, mas sim uma interpretação imaginária de mulheres cuja existência física ou psicológica ficou subordinada a uma ideia no ato de pintar [...] (COLOMBO, 2002).

Ao observar atentamente esses rostos femininos, constata-se uma dupla condição que oscila entre a jovialidade e a expressão marcada. Há frequentemente uma alusão a um corpo magro, jovem, talvez sugerindo o corpo da própria artista, e velhice na apresentação do rosto. Jacques Lacan postula o termo pulsão escópica como um olhar devorador, pulsão que devora. Há nos rostos dessa pintora alguma sugestão em relação à morte que nos encara, mencionado anteriormente, presente também em Jean Rustin, que faz refletir a nós mesmos na imagem do quadro, aceitando ou rejeitando esse reflexo. Aqui seria possível pensar que essa pintura, que nos olha perscrutando o fora, convoca-nos a parar e refletir frente a ela, de modo que cada observador possa dispor do que deseja projetar nesses rostos; se os isolarmos do restante do corpo, temos uma possibilidade de encontrar algum significado aí, como uma paisagem isolada do mundo. Na peça teatral mencionada anteriormente, Rockaby (Figura 38), Samuel Beckett propõe uma estrutura muito singular para uma apresentação, seja de teatro ou de cinema: uma mulher numa cadeira de balanço conta histórias, fragmentos de sua vida. Um fundo escuro, pouca iluminação, lentamente a voz vai pronunciando as palavras. Enquanto balança em ritmo lento, a mulher com um longo vestido preto e rosto pálido vai tecendo sua fala.

Por três vezes a voz monótona para, assim como o balançar da cadeira, ao mesmo tempo que a iluminação diminui. Após um tempo longo (diz a rubrica) a mulher se estimula dizendo: ‘Ainda’, palavra que, aliás, inicia o texto, indicando ser uma sequência. Continuam os movimentos e a fala. E tudo recomeça: voz e movimentos da cadeira. A cada palavra, porém, a iluminação diminui mais e mais, até a extinção final. (BERRETTINI, 2004, p. 219).

A presença austera e solene da mulher na cadeira, aliada à lentidão da fala sincronizada com o balanço, suscita uma espera, um tempo que antecede a algum acontecimento. A fala gravada lenta, pausada, monótona supõe uma narrativa autoconfidente (Beckett coloca o espectador no papel do ouvinte), ao mesmo tempo em que sugere uma conformada consciência de que o fim desta está próximo, retorna ao começo, como um ciclo sem fim. A cena possui elementos sugestivos a um olhar pictórico, como um quadro, em que

o jogo de luz e sombra, preto e branco, cuja expressão da figura central muito se assemelha à obra de Edvard Munch (1863 – 1944), o expressionista cujas pinturas são célebres pelo tratamento em seus rostos, a expressão como máscaras pálidas, em estado apático ou atônito.

Samuel Beckett dá voz e vida a essas figuras, que são parte de um grande quadro patético da existência cotidiana num cenário de pós-guerra, em alguns casos, em outros, não fica explícito, pois ele não opta pelo papel do narrador realista, vemo-nos em um limbo entre realidade e ficção, algum lugar vago onde apresenta seus personagens e dramas, ironicamente, muitas vezes, sem excluir a comicidade, como parte dessa construção. Talvez por isso coloca- nos em uma situação limiar todo o tempo, pois traz à tona o nada que embaraça o ser e o sentido, ao lidar com as incongruências da vida, e enquanto assistimos tentando buscar a linha que conduz ao sentido oculto na narrativa, pensamos se não estaria ele a colocar o espectador no papel de autor. Otávio Paz reflete sobre a obra de Marcel Duchamp e afirma: “Uma arte que obriga o espectador e o leitor a converter-se em um artista e um poeta” (p. 61, 2007). A indecidibilidade em Beckett está na voz e no corpo de seus personagens que trazem à tona o fracasso e o sublime heroico simultaneamente, o jogo de ambiguidades que também encontramos nos pintores Rustin e Manzelli, entre um silêncio ruidoso e uma calma que suscita extremamente inquietação.

Figura 64 – Samuel Beckett, Rockaby (1981). Beatrice Manley, performs, 1982.

Fonte: Disponível em: <http://www.beatricemanley.com/recordings_beckett.html>. Acesso em: 11 jan. 2012. Samuel Beckett - Rockaby (Part 1). <http://youtu.be/2_wnfEzmt4o>. Samuel Beckett - Rockaby (Part 2).

Se esboçarmos uma relação entre o rosto da mulher na cadeira de balanço e o rosto pintado nas telas de Margherita Manzelli, novamente podemos pensar em uma relação entre tratamentos pictóricos. Quando na pintura o tratamento dado oferece ao olho o caráter ambíguo da condição da integridade física do corpo, é na voz presente na veste, no ambiente, nas cores da paleta e na proporção do quadro que se buscam os sinais dessa voz. No caso dessa artista, a leitura está contida no olhar, nos buracos negros do rosto da figura, que traduz uma necessidade de interlocução com o outro. A pintora sugere uma reflexão, também por meio da repetição (de um determinado rosto), para neste inserir uma mensagem, que não sabemos ao certo se é da morte, da impotência diante dos atos, daquilo que não mais pode sustentar-se; a expressão franca e que nos encara assume certo caráter que pode apresentar-se como um retrato do inominável. A paleta é a paleta da desssaturação. Mesmo que em Manzelli algumas obras apresentem certa exuberância de tons, são momentos e lugares específicos. O azul nos quadros desta é celestial, frio e infinito, o que sugere que ela tenha interesse no vazio, mas o vazio do espaço infinito, nem sempre o da escuridão ou da luz; esses quadros parecem propor mais que a apatia ou a melancolia. Em Jean Rustin, a cromaticidade é a escala de cinzas coloridos, é a paleta da pincelada sobreposta, quase sempre mais para o branco, num rebaixamento da cor, priorizando a cor da pele, da parede, da mobília. Na pintura de Margherita Manzelli, inserem-se estampas, o patchwork, alusão simples a um ambiente doméstico, feminino; em Jean Rustin os espaços são quase hospitalares, ambientes sem excessos, apenas alguma mobília a lembrar de que estes personagens são humanos, que habitam espaços cotidianos. Acreditamos que a diferença esteja no caráter conceitual dos espaços apresentados nas pinturas, a despeito da cor que de algum modo dialoga. Os espaços que comportam os corpos são muito importantes, são cruciais para suscitar identificação ou abjeção, porque são espaços interiores, espaço de pintura, cuja imobilidade remete ao que Gilles Deleuze afirma:

[...] Quando o corpo visível enfrenta, como um lutador, as potências do invisível, ele apenas lhes dá sua visibilidade. É nessa visibilidade que o corpo luta ativamente, afirma uma possibilidade de triunfar que não possuía enquanto essas forças permaneciam invisíveis no interior de um espetáculo que nos privava de nossas forças e nos desviava. É como se agora um combate se tornasse possível [...] (DELEUZE, 2007, p. 67).

O espaço do quadro, ocupado pelo corpo, além de alguns objetos, sugere uma privação, porém, ao tornar visível estes, partindo do princípio de Deleuze em que tudo já está na tela branca e no pintor, antes de serem pintados, tanto quanto nas cenas em que os personagens de Beckett ocupam o espaço e também interage com alguns objetos, o sentido

dessa privação, desse limite de tempo e de vida, parece nos dar a pensar sobre o impedimento

da busca pelo sentido, de uma privação do olho de cada observador e sua relação com a cena,

com o corpo e os objetos que a compõem.

Figura 65 - Margherita Manzelli, Verifica del funzionamento, spazio vuoto, 1997. Óleo s/ Tela 190 x 129.8 cm Fonte: Disponível em: <www.liveauctioneers.com/item/6755211>. Acesso em: 29 fev. 2012.

Figura 66 – Margherita Manzelli, Luminate, 2010. Oil on linen, 195 X 300 cm.

Fonte: Disponível em: <http://www.artknowledgenews.com/2010-03-02-00-13-11-margherita-manzelli-new- work-at-collezione-maramotti.html>. Acesso em: 9 jan. 2012.

Figura 67 - Margherita Manzelli, Notten, Óleo s/ tela, 2000.

Fonte: Disponível em: <http://archivodenuevosartistas.blogspot.com/2011/12/margherita-manzelli.html>. Acesso em: 9 jan. 2012.

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Figura 68 - Margherita Manzelli, Programma, disciplina, maestro (T.M.H.S.,) Óleo s/ tela 195 x 400 cm 2000.

Fonte: Disponível em: <http://www.fondazionemaxxi.it/2011/05/30/programma-disciplina-maestro-t-m-h-s- margherita-manzelli-2000/?lang=en>. Acesso em: 9 jan. 2012.

Figura 69 - Margherita Manzelli, Ostinato, Óleo s/ tela, 2008.

Fonte: Disponível em: <http://www.re-title.com/exhibitions/archive_greengrassi3834.asp>. Acesso em: 9 jan. 2012.

Figura 70 - Margherita Manzelli, Untitled G, graphite e pastel s/ papel, 2002.

Fonte: Disponível em: <http://www.greengrassi.com/Archive?eid=83&eiid=6>. Acesso em: 9 jan. 2012.

Figura 71 - Margherita Manzelli, Untitled E, grafite e pastel s/papel, 2002.

Figura 72 - Margherita Manzelli, Untitled J graphite e pastel s/ papel, 2002

Fonte: Disponível em: <http://www.greengrassi.com/Archive?eid=83&eiid=9>. Acesso em: 9 jan. 2012.

Figura 73 - Margherita Manzelli, La vita è nulla óleo s/ tela, 2011.

Fonte: Disponível em: <http://www.kimmerich.com/html/artists/margherita-manzelli/05.html>. Acesso em: 9 jan. 2012.

2 UM CORPO TRANSGRESSOR

“Pois é difícil falar, mesmo uma coisa qualquer, e ao mesmo tempo concentrar sua atenção em outro lugar, lá onde jaz o seu verdadeiro interesse, tal como um débil murmúrio o define aos pedaços, como que se desculpando por não estar morto.” (Samuel Beckett, O Inominável) “Não pense que eu espere encontrar simpatia. No início, o que eu queria era participar dos sentimentos de amor, virtude, da felicidade da afeição, de que todo o meu ser estava inundado. Mas agora que a virtude se tornou sombra para mim e que a felicidade e a afeição se transformaram no mais amargo e odioso desespero, onde devo procurar compaixão?”

(Mary Shelley, Frankenstein) O Monstruoso como referencial de uma transgressão corporal extrema submete o outro à sua aparência de horror e dor, é um ser que convida a uma passagem de um estado de compleição e apatia, de reações internas que tangem à abjeção, ao medo e ao instinto de sobrevivência. Tornamo-nos monstros em certas condições, mas se trata de pensar que, num âmbito menor, transformamos nossa expressão facial por segundos em esgares, contorções, caras que se retorcem por instantes, alterações do corpo e da mente que reagem a certos fatos, estados internos que sobrepujam a normalidade aparente. Existe o monstro interno, que se mantém em uma controlada ordem submetida à outra ordem externa que impõe a convivência, o bem-estar coletivo, social, interativo. Chamar de monstro outrem é criar estranhamentos, distâncias, abismos...

O monstruoso, no entanto, possui também sua ambígua lateralidade, também este põe em jogo sua condição de bem e mal, pois há nele uma perpétua exclusão, mas, por outro lado, é sempre passível de criar afetos, porque há nele esse apelo quase irresistível de desproteção, de um estado de outsider carente dessa convivência, dessa normalidade que tranquiliza os olhos e o coração. No entanto, há nele a revolta, ou apenas o isolamento. Igualmente torna-o um ícone da violação da regra, a condição que o potencializa também o fragiliza, transita pela borda, pela margem, muito embora seja esta uma visão convencional em relação a esse ser, esse estado de ser que nem sempre é físico, aparente, carnal. O previsível dos monstros é seu permanente estado de banimento. Historicamente tem se apresentado assim, porém, há neste um poder de atração igualmente forte que se iguala ao poder de repelir. Ocorre que as leituras dessa condição de monstruoso são diversificadas, não há aqui uma definição exata, é o monstro de cada um, o monstro com todas as suas costumeiras características: deformação,

violência, ironia, dor e subversão. Porém, existe o monstro que se mostra e o que se esconde, há na impotência do corpo, na mutilação do corpo, na transfiguração uma força exposta que remete a ele, mesmo que não seja sensivelmente uma denominação adequada, dadas as conotações negativas associadas a esse termo, é o monstruoso do cotidiano, convivendo entre os limites de sua existência, entre os que se acreditam destituídos de tal nominação.

A pintura, tanto quanto o desenho, com a sua expansão a outras categorias, permite uma leitura sensível do monstruoso, seja refletindo internamente seja captando o fora, existe no olhar de cada artista uma apreensão calculada ou espontânea do campo que o abrange. O olho atento ao monstruoso mais do que ao ícone em si, contaminado pelas histórias em quadrinhos, o cinema, a literatura e a vida cotidiana, desborda um sentimento em relação ao tema, seja metaforicamente, simbolicamente, afetivamente ou por derrisão; há na ação de cada um uma intenção crítica ou contemplativa de abarcar o monstro como se fosse abarcar o reflexo em um espelho, utilizando um termo beckettiano, em um ato inominável.

Na peça intitulada Play (1963), Samuel Beckett apresenta seus personagens dentro de jarros, sendo suas cabeças a única parte do corpo exposta, trata-se de duas mulheres e um homem, sugerindo um triângulo amoroso, cujas falas vão sobrepondo-se em ritmo muito acelerado. Cada um na sua vez oferece seu depoimento sobre a circunstância em que estão os três envolvidos.

Na peça Happy Days (1960/1961), encenada em Paris em 1963, a personagem principal Winnie é apresentada na primeira parte da cintura para cima, o resto do corpo está soterrado em um grande monte de terra; na segunda parte apenas sua cabeça aparece fora do monte. Trata-se de um quase monólogo; muito embora seu marido Willie esteja em cena, quase nunca responde a ela. O cenário é um deserto cujo monte contém o corpo da mulher, ela manipula objetos dentro de uma bolsa, enquanto tece seus comentários, perguntas e respostas. Seu monólogo é pleno de observações sobre a vida, a sua condição, ela escova os dentes, olha-se num pequeno espelho, abre uma sombrinha, manipula uma arma, sua aparência é simples, feminina, no rosto uma maquiagem espessa, uma máscara.

A peça Not I (1972) 33 é a exacerbação da estética do pouco. No palco escuro, apenas uma boca feminina se destaca, a fala se dá “numa torrente de frases desprovidas de sintaxe,

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