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4.3 A ESCRITA DO EGO

4.3.1 Um corpo que cai

Lacan, no seminário O sinthoma, vai inscrever a consistência corporal no registro do imaginário. Manter tudo junto é este sentido dado por Lacan à consistência e, também, ao uso que ele faz da lógica de sacos e cordas. Lógica esta que ele introduz com a escrita do nó, partindo do fato de que um saco, cujo mito é associado a uma esfera, para que seja considerado como que fechado, necessita de uma corda que amarra. Assim, o psicanalista irá abordar as recordações de Joyce, sobre uma surra que sofrera durante a infância, com o propósito de nos demonstrar como essa lógica, de sacos e cordas, pode nos ajudar na compreensão de como Joyce funcionava como escritor.

Dito isso, voltar-nos-emos à passagem de Um retrato do artista quando jovem, aquela tão frequentemente valorizada pelos comentadores de James Joyce, devido ao seu conteúdo autobiográfico. Trata-se do episódio de violência infligida contra Stephen, que para muitos é considerado como que derivado da infância do próprio escritor.

Aqui se faz necessário a abertura de um parêntese. Tendo em vista, que entre os comentadores joycianos não haveria uma unanimidade quanto a esse sentido autobiográfico, que elevaria o personagem Stephen Dedalus a condição de “alter ego” de James Joyce, seja

nesta passagem em questão, ou, então, em sua obra como um todo. Trata-se de uma questão complexa, principalmente, porque o escritor assinava os seus primeiros contos com o nome Stephen Dedalus e, além disso, segundo Stanislaus Joyce, irmão de James Joyce: “a discussão sobre Byron e heresia, a briga com três... colegas em Um retrato do artista quando jovem não são nem inventas, nem exageradas” (STANISLAUS apud LAIA, 2001). Contudo,

tal como Mandil (2003) nos previne, ao nos aprofundarmos na identificação entre Stephen e Joyce devemos ter extrema prudência.

Vejamos, então, os indícios deixados por Lacan no Seminário 23 sobre o seu posicionamento diante deste debate. Em uma aula concernente ao enigma, de 13 de janeiro de 1976, Lacan afirma que “Stephen é o Joyce que Joyce imagina. E como Joyce não é bobo, ele

não o adora, longe disso.” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 65), e continuando nesta linha, ele

adiciona: “Stephen é Joyce na medida em que decifra seu próprio enigma” (ibid, p. 67). Na última aula do seminário, Lacan descreve a famosa surra como uma “confidência”: “Quanto a Joyce, poderia ler para vocês uma confidência que ele nos faz em Portrait of the Artist as a Young Man.” (ibid, p. 145). Vê se bem na transcrição do seminário que o psicanalista, ao

apresentar esta cena aos seus ouvintes, não utiliza o nome de Stephen Dedalus, mas, sim, o de James Joyce. Dando-nos a entender, que não havia dúvida de que aquela aventura aconteceu com o escritor irlandês: “A propósito de Tennyson, de Byron, de coisas referentes a poetas, ele encontrou colegas para prendê-lo contra uma cerca de arame farpado e dar nele, James Joyce, uma surra.” (ibid).

Neste trajeto, que vai de Stephen Dedalus até James Joyce, é preciso lembrar que Lacan não se encontra entre aqueles que reduzem um a outro. Pois, na dimensão da nomeação17, Joyce não se reconheceria por meio do nome Stephen Dedalus (Mandil, 2003). No entanto, Lacan suprime a distância que haveria entre Joyce e seu personagem, de tal forma que em várias aulas do Seminário 23 os dois nos são apresentados como se fossem apenas

um. Concluindo, adotaremos em nossa dissertação o posicionamento de que a surra narrada nessa obra fictícia está relacionada a um acontecimento da infância do autor, mas nos recusaremos a reduzir Joyce ao seu personagem, como se este último espelhasse o primeiro.

Retornando ao Retrato do artista..., Stephen, por discordar da preferência literária de seus colegas e por questionar as acusações de que Lord Byron, era um herege e um imoral, passa a sofrer estas mesmas injúrias e, em determinado momento, é feito prisioneiro. Sob o comando de Helen, o jovem herói passa a ser objeto de uma cruel surra com uma bengala e com um longo cepo de palmito, que Boland havia retirado da sarjeta. Com os braços presos por Nash, Stephen foi empurrado em direção a cerca de arame farpado. Quando finalmente conseguiu livrar-se de seus algozes, eles partiram rindo e zombando dele: “enquanto ele, rasgado e afogueado e arquejando, tropeçava atrás deles semicego pelas lágrimas, cerrando loucamente os punhos e soluçando.” (JOYCE, 2006, p. 92).

A atenção de Lacan irá se voltar para a passagem seguinte. Logo após a surra, quando o jovem herói ainda se encontrava em meio às lagrimas e aos risos de seus colegas:

Enquanto ainda repetia o Confiteor em meio ao riso indulgente de seus ouvintes e enquanto as cenas daquele episódio maligno passavam ainda viva e rapidamente diante de sua mente ele se perguntava por que agora não guardava rancor contra aqueles que o haviam atormentado. Não esquecera nem um pouquinho a covardia e a crueldade deles, mas a lembrança daquilo não lhe despertava nenhuma raiva. Todas as descrições de amor e ódio ferozes que encontrara em livros lhe haviam parecido, por conseguinte, irreais. Mesmo naquela noite enquanto tropeça pela Jone‟s Road em direção a sua casa sentia que alguma força o estava despojando daquela raiva subitamente tecida tão facilmente quanto um fruto é despojado de sua casca madura e macia. (JOYCE, 2006, p. 93).

Neste trecho Lacan observa dois efeitos que Stephen irá apresentar em decorrência da surra. O primeiro, diz respeito a um enigma que se formou em torno de suas lembranças do acontecimento, porque apesar de recordar perfeitamente da crueldade e da covardia que sofrera, não conseguia guardar rancor algum. O segundo efeito é aquele que o psicanalista irá prestar um cuidado especial, trata-se da metáfora que Joyce utiliza para enlaçar as recordações de Stephen sobre a surra: sentia que alguma força o estava despojando daquela raiva

subitamente tecida tão facilmente quanto um fruto é despojado de sua casca madura e macia.

(ibid).

Esses efeitos revelam certo distanciamento de Stephen com a agressão. Porém, ao enfatizar a metáfora, Lacan volta a nossa atenção para a relação de Stephen, e consequentemente de Joyce, com o corpo. Vejamos o que o psicanalista comenta sobre o escritor: “Exprime-se, então, de um modo muito pertinente, tal como se pode esperar dele

[Joyce], pois quero dizer que ele metaforiza sua relação com seu corpo.” (LACAN, 1975-

1976/2007, p. 145, grifo nosso).

Posto isto, Lacan comenta sobre a relação com o corpo: “a relação já tão imperfeita em todos os seres humanos” (ibid). Destacando que ele já havia discordado antes sobre o

sentido dado ao inconsciente, e aceito por alguns, de que a natureza do próprio inconsciente teria alguma coisa a ver com o fato de que muito daquilo que acontece no corpo é ignorado. O psicanalista questiona quem realmente saberia o que se passa em seu próprio corpo, mas, em contrapartida, assevera que haveria um saber sobre: “um monte de coisas provenientes do significante” (ibid). Estas “coisas” é que realmente estariam relacionadas com a natureza do

inconsciente.

Desta forma, Lacan acaba por questionar também a antiga noção de inconsciente freudiano - o Unerkannt -, traduzido como o “não-reconhecível”, que se fundamentava na ignorância daquilo que se passa em nosso corpo. Ele vai mais a fundo ao definir esta noção com base em uma relação entre um corpo, que por ser desconhecido é dito como estranho, e o inconsciente, que, por sua vez, se apresenta como que constituindo círculo, ou, então, fazendo reta infinita. Por fim, Lacan amarra esta definição freudiana afirmando que o corpo estranho e o inconsciente são apresentados como que equivalentes.

Lacan faz um pergunta: “Então, qual sentido dar ao que Joyce testemunha?” (ibid). O que Joyce testemunha no episódio da surra, ao contrário daquilo que as outras pessoas testemunhariam como uma relação psíquica que fica afetada, que reage, ou, então, que não se destaca, é que diante da agressão só existia nele aquilo que exige a saída, que vai embora, que é largado e que se esvazia. Uma das consequências, de nos expressarmos quanto ao nosso corpo com base no verbo ter, ao invés do verbo ser, é que a pessoa pode relacionar-se com ele como algo estranho. É justamente isso o que acontece com Joyce após o episódio da surra, já que ele trata o seu corpo como algo estrangeiro.

Concernente a curiosa hipótese de que haveria pessoas que não apresentam afeto diante da violência imposta aos seus próprios corpos, Lacan dá a entender, já que isso era algo ambíguo, que talvez em Joyce houvesse estimulação sexual em meio a agressões corporais, lhe proporcionando prazer. Com isso, o psicanalista não exclui a possibilidade da presença de gozo masoquista na obra do escritor irlandês, já que Joyce insistira muito nisso quanto a Blom. Porém, em se tratando da surra que Joyce confidenciou, Lacan insiste que não houve qualquer gozo do tipo masoquista. Pelo contrário, ele apresentou uma reação de repulsa:

“Essa repulsa refere-se, em suma, a seu próprio corpo. É como alguém que coloca entre parênteses, que afasta a lembrança desagradável.” (ibid).

A repulsa quanto ao próprio corpo, colocando-o entre parênteses e largando-o como uma casca desagradável, nos remete a uma dissolução imaginária em Joyce, já que sua relação com o corpo enquanto imagem não se sustenta. Isso tem sérias implicações para a noção de ego em Joyce. Lacan afirma: “a forma de Joyce deixar cair a relação com o corpo próprio é totalmente suspeita para um analista”, uma vez que, “a ideia de si como um corpo tem um peso.” (ibid). Esse peso é o ego, que se faz narcísico porque suporta esse corpo como

imagem. A ausência de interesse do escritor por essa imagem, por esse ego – como dimensão imaginária do corpo - faz com que Lacan chegue à conclusão de que em Joyce, o ego teria uma função inteiramente particular.

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