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Se O burrinho pedrês é o conto no qual se mostram os efeitos sociais do bom governo, Corpo fechado mostra os efeitos do desgoverno. De fato, este é um conto paradigmático na demonstração das conseqüências sociais da ausência de instituições aptas a conter a violência. Todos os acontecimentos narrados apontam sistematicamente para essa idéia central. As personagens representativas das forças que deveriam patrocinar a agregação social e conter a instalação da condição de selvageria são inoperantes: o coronel, o subdelegado de polícia e o vigário. Como conseqüência da ineficácia dos poderes ordenadores do comportamento social, valentões e embusteiros acabam por atuar com desembaraço. Instala–se o estado de desordem generalizada; muitas personagens do conto são alcoólatras, viciados em cachaça ou cerveja, incluindo–se entre elas o próprio protagonista, Manuel Fulô. Nessa história de valentões o o que se tem é a história de seres que cometem violência e são vítimas de sua própria violência. Fazer vítimas e tornar–se vítima da violência geral significa, em última análise, retornar ao estado de selvageria.

Já no primeiro período do conto é narrada pelo protagonista ao narrador a morte do valentão José Boi, que gastava em cachaça tudo o que ganhava, que enfrentara três militares e quebrara o pescoço ao cair de um barranco:

José Boi caiu de um barranco de vinte metros; ficou com a cabeleira enterrada no chão e quebrou o pescoço. Mas, meio minuto antes, estava completamente bêbado e também no apogeu da carreira: era o “espanta–praças”, porque tinha escaramuçado, uma vez, um cabo e dois soldados, que não puderam reagir, por serem apenas três. (p. 256)

No trecho acima são evidentes a presença da violência privada, o confronto físico entre o indivíduo e a instituição mantenedora da ordem social, a fragilidade da autoridade física e moral dessa instituição, bem como a admiração e o temor que o povo nutre pela figura do valentão. Esses, entre outros, de que também trataremos, são os elementos do conto que nos permitem conceituar a noção presente em Corpo fechado: quando o Estado não se apresenta como detentor do monopólio da violência legítima, pode surgir o valentão que, de forma arbitrária, se sobrepõe à autoridade legalmente constituída, quando não a substitui. Sua principal característica, conforme se pode deduzir do conto, é o emprego arbitrário da violência, muitas vezes confundida com coragem pela população. A exaltação do valentão pela população tem, em essência, a mesma origem da exaltação do jaguncismo e do cangaço e, da mesma forma que

jagunços e cangaceiros, o valentão convive com freqüência lado a lado com as autoridades. Sezão mostra algumas passagens sobre Targino, o valentão do momento na Laginha, que merecem ser transcritas, por mostrarem os aspectos de que estamos tratando; embora ele seja responsável por várias mortes – como deixa claro quando diz a Manuel Fulô que pretende visitar a noiva deste no dia seguinte: “Eu venho visitar ela amanhã. Aviso porque já estou farto de conduzir gente p’r’a cova e quero sossego!...” (ROSA, J. G., 1937, p. 252) –, ele se move com naturalidade no meio e se relaciona normalmente com o vigário e com o mandante local: “Transitava calmamente pelo arraial; as pessoas mais distintas abraçavam–no com afagos e gracejos; beijava a mão do vigário; ia à missa. Assinou o telegrama coletivo do Diretório político ao Presidente do Estado, encabeçado pelo coronel Mingote.” (ROSA, J. G., 1937, p. 237).

No diálogo entre o narrador e Manuel Fulô, que inicia o conto, o segundo faz uma exposição da fileira de valentões que já passara pelo local, cada um em seu tempo, um substituindo o outro e cada um chegando ao fim da vida de várias formas: vítima de morte violenta, preso ou aposentado: José Boi, “Bom homem... Muito amigo meu” (p. 256), Desidério Cabaça, “bruto como ele só, e os outros tinham medo dele. Cavalo coiceiro...” (p.256), Dêjo, “Um peste. Muita prosa, muita farroma” (p. 257), “Cachorro! Morreu de erisipela na cara...” (p. 258), Miligido, que “era bom... Homem justo. O que ele era era preto... Mais preto do que os outros pretos, engomado de preto... Eu acho que ele era preto até por dentro! Mas foi meu amigo. Valentão valente, mesmo” (p. 258). 28

Targino é descrito por Manuel Fulô como

cobra que pisca olho... Quando ele embirra, briga até com quem não quer brigar com ele... Nenhum dos outros não fazia essa maldade... O senhor acha que isso é regra de ser valentão? Eu sei que, por causa de uns assim, até o Governo devia era de mandar um quartel de soldados p’ra aqui p’ra a Laginha... (p. 258).

Esta última frase dá mostra do que representam as instituições legais para Manuel Fulô: a intervenção do governo é nociva a ponto de só se justificar, como última alternativa, para reprimir alguém como Targino. Conhecedor da inoperância das autoridades que deveriam neutralizar o valentão, ele espera que a intervenção divina resolva o assunto:

28 Em Sezão é citado outro “subvalentão”, Adriano:

Tinha o Adriano, homem reconhecidamente homem. Mas este estava tolhido: — não queria dar motivos para uma disputa de família, — desde que tinham nomeado seu irmão Odorico sub–delegado de polícia, Adriano se fizera legalista e conservador. (ROSA, J. G., 1937, p. 237).

Eles todos já foram castigados: o Baque se afogou numa água rasinha de enxurrada... ele estava de chifre cheio... Gervásio sumiu no mundo, sem deixar rasto... Laurindo, a mulher mesma torou a cabeça dele com um machado, uma noite... foi em janeiro do ano passado... Camilo Matias acabou com mal–de–Lázaro... Só quem está sobrando mesmo é o Targino. E o castigo demora, mas não falta...(p. 259).

Manuel Fulô tem um irmão que faz experimentos para tentar sublimar o instinto dos animais. A passagem é curta, mas contém interessante metáfora sobre o processo de civilização, que, para Freud, como vimos, só se torna possível pela sublimação dos instintos de vida e de morte:

Começou por falar–me de um irmão seu, que tinha uma galinha–d’angola domesticada e ensinada, que dormia debaixo do jirau. Não acreditei. Mas pessoas respeitáveis afiançaram o fato, ajuntando que, além da cocar mansinha, o rapaz conservava um rato enjaulado, pretendendo obter que ele e um gato de rajas se fizessem amigos de infância. (p. 264)

O narrador refere–se então aos “subvalentões”, “sedentários de mão pronta e mau gênio, a quem, por garantia, todos gostavam de dar os filhos para batizar” (p. 259), e menciona, como exemplo dessa categoria, o caso de João do Quintiliano, que, embebedado, praticou uma série de atos violentos por ter seu nome mencionado em uma sátira que havia sido deixada em papel pregado numa árvore por autor anônimo. Em suas andanças para descobrir o escritor do desacato, João do Quintiliano chega a Manuel Baptista, o “Aretino do arraial”, que refuta a autoria e ressalta a baixa qualidade do pasquim anônimo; para demonstrar seu talento literário, Manuel Baptista lê para Quintiliano seu último poema, feito para “debochar de muitas atualidades” (p. 260–1):

Essa história de phonetica eu nunca pude entendê! É tão feio se assigná

Manuel Batista, sem P!...(p. 261)

A profissão de Manuel Baptista não é especificada, mas pode–se supor que ele seja professor: “Foram atrás dele, para a satisfação, e encontraram–no no paiol do João Italiano, dando escola para os meninos do negociante” (p. 260). A permanência de Manuel Baptista no arraial parece também fazer parte do mesmo projeto educacional em que está envolvido Santana, de Minha gente. Embora seja um professor arcaico, pois reage contra as atualidades da língua, reprime com a arte a violência de João do Quintiliano, o que significa que existe aí um poder, uma força do espírito capaz de conter a violência: “João do Quintiliano ouviu, respeitoso, humilhado pelo poder da arte

No documento Sagarana: o Brasil de Guimarães Rosa (páginas 198-200)

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