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A VOLTA DO MARIDO PRÓDIGO

No documento Sagarana: o Brasil de Guimarães Rosa (páginas 60-126)

Os contos A Volta do marido pródigo e São Marcos foram meticulosamente analisados por Luiz Roncari em seu O Brasil de Rosa (RONCARI, 2004)15 e, portanto, a nossa análise daquelas duas obras, seria, a rigor, dispensável, bastando que nos ocupássemos aqui de levantar, à luz do texto de Roncari, em quais aspectos os dois contos guardam alguma relação com os demais de Sagarana. No entanto, acreditamos que seja de interesse elaborarmos uma síntese daquelas interpretações e adicionarmos as observações pessoais que se mostrarem apropriadas, por algumas razões: a primeira, é que um trabalho que trata, primordialmente, de demonstrar a unidade de um livro, ficaria incompleto se dois de seus contos não tivessem nela um lugar reservado; a segunda, é que uma síntese sempre envolve escolhas e, ao sintetizarmos aquelas leituras, estaremos por critério próprio optando por aquilo que consideramos realmente essencial para demonstrar nossas idéias no texto de partida; e, terceiro, por sua própria abertura e complexidade, sempre serão possíveis leituras consistentes do texto, ainda que não totalmente concordantes, ou mesmo conflitantes em certos aspectos.

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Em A volta do marido pródigo são mostradas principalmente quatro noções que entendemos estar relacionadas com a representação do Brasil: a forma do exercício da política partidária na República Velha, as relações familiares, a prática da cordialidade brasileira e a questão racial.

A cordialidade é a noção central do conto e emerge da composição das atividades do protagonista nas esferas privada, concentrada na sua vida familiar e que justifica o título do conto, e na pública, que relata suas atividades na política partidária e no trabalho. A relação entre a atividade política e a vida familiar é tão estreita na obra, que as ações do protagonista, assim como de outras personagens, são conduzidas simultânea e indistintamente nas duas esferas.

A volta do marido pródigo não finaliza a discussão em torno desses tópicos. Eles

serão tratados em outros contos do livro, para completar um quadro geral do exercício da prática da política, da família patriarcal, de aspectos raciais, da cordialidade. Mas, nenhum outro conto explora este último aspecto tão agudamente.

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15 Em O cão do sertão Roncari apresentou aspectos importantes de outros contos de Sagarana, como

O conto possui duas epígrafes: “Negra danada, siô, é Maria: ela dá no coice, ela dá na guia, lavando roupa na ventania. Negro danado, siô, é Heitô: de calça branca, de paletó, foi no inferno, mas não entrou!”

(CANTIGA DE BATUQUE, A GRANDE VELOCIDADE.) (p. 69) “ – Ó seu Bicho–Cabaça!? ‘Viu

uma velhinha passar por aí?... – Não vi velha, nem velhinha, corre, corre, cabacinha... Não vi velha nem velhinha! Corre! corre! cabacinha...” (DE UMA ESTÓRIA.)... (p. 69)

As duas epígrafes estão intimamente relacionadas à figura do protagonista. Na primeira, Maria consegue lavar roupa na ventania ao mesmo tempo em que bate na dupla de guia – a que vai à frente de um carro de bois de quatro duplas – e na de coice, a quarta dupla; Heitô, por seu turno, vai ao inferno, mas não entra – tarefa que faz lembrar a história do sapo que engana São Pedro, narrada no capítulo do V conto (p. 92–3). A cantiga de batuque fala, portanto da competência de alguém de enfrentar situações ou realizar tarefas de grande dificuldade. Por outro lado, o trecho da história da segunda epígrafe refere–se a uma habilidade que complementa a da primeira, a de realizar as tarefas com presteza. Lalino mostra–se hábil das duas formas, porque atua bem e rápido, quer como cabo eleitoral do Major Anacleto, quer na reconquista de sua mulher.

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O capítulo I do conto tem lugar em uma obra de construção da estrada de rodagem que liga Belo Horizonte a São Paulo, substituta dos velhos ramais ferroviários de bitolas variadas. Ela representa, portanto, a via de chegada da modernização ao interior. Aatividade é intensa e, para maior incentivo da força de trabalho, o pagamento se faz por meio de medição do material removido; uma equipe de operários, comandada por “seu Marra bate rijo de picareta, atacando no paredão pedrento a brutalidade cinzenta do gneiss” (p. 70), enquanto que a dos “espanhóis cavouca terra mole, xisto talcoso e micaxisto” (p. 70). Serviços particulares também estão em andamento: os homens de seu Remígio, dono de terras, lavram uma jazida de amianto, introduzindo uma atividade mineira no local de atividade agrícola, e os de Ludugéro fazem uma

ponte. Mas, são os burros de carga, com suas naturezas dóceis, os que melhor simbolizam a moderna técnica do trabalho em série, monótono, metódico e rigorosamente cronometrado, executável sem qualquer necessidade ou possibilidade de emprego de criatividade; a ordenação do movimento dos animais é sinalizada pelas quatro frases rimadas duas a duas que iniciam a passagem:

NOVE horas e trinta. Um cincerro tilinta. É um burrinho, que vem sozinho, puxando o carroção. Patas em marcha matemática, andar consciencioso e macio, ele chega, de sobre–mão. Pára, no lugar justo onde tem de parar, e fecha imediatamente os olhos. Só depois é que o menino, que estava esperando, de cócoras, grita: – “Isia!...” – e pega–lhe na rédea e o faz volver esquerda, e recuar cinco passadas. Pronto. O preto desaferrolha o taipal da traseira, e a terra vai caindo para o barranco. Os outros ajudam, com as pás. Seis minutos: o burrinho abre os olhos. O preto torna a aprumar o tabuleiro no eixo, e ergue o tampo de trás. O menino torna a pegar na rédea: direita, volver! Agora nem é preciso comandar: – “Vamos !”... – porque o burrico já saiu no mesmo passo, em rumo reto; e as rodas cobrem sempre os mesmos sulcos no chão.

No meio do caminho, cruza–se com o burro pêlo–de–rato, que vem com o outro carroção. É o décimo terceiro encontro, hoje, e como ainda irão passar um pelo outro, sem falta, umas três vezes esse tanto – do aterro ao corte, do corte ao aterro – não se cumprimentam. (p. 69–70)

Ao entrar em cena, Lalino introduz uma ruptura no clima de trabalho; chega atrasado, tenta driblar as regras a que os demais trabalhadores se submetem, vem trajado de modo inadequado ao exercício de atividades braçais, finge não ouvir ou entender o sarcasmo dos colegas: “Os colegas põem muito escárnio nos sorrisos, mas Lalino dá o aspecto de quem estivesse recebendo uma ovação” (p. 71). Não tem escrúpulos em tapear o chefe e prejudicar os companheiros, mente de modo descarado. É descrito, física e moralmente, como um mulato preguiçoso, astuto, sem caráter e imaginativo. Conversa muito e faz pouco ou nada, quando não leva os outros a trabalhar por ele. Mas consegue que seu Marra lhe abone as horas de atraso, tirando vantagem da característica do chefe de fazer que seu gosto por teatro, um interesse particular e restrito à sua esfera privada, interfira no seu cargo de comando, função relativa à esfera pública. Na verdade, ele é um mestre em tirar proveito das situações e das forças e fraquezas alheias, dentre as quais estão a vulnerabilidade à lisonja e a cordialidade; mesmo a forma de Lalino dirigir–se ao chefe, “seu Marrinha”, empregando o diminutivo no tratamento pessoal, é um sintoma de cordialidade, como se lê em Raízes do Brasil (HOLANDA, 1999, p. 148); ao explorar os pontos fracos dos que com ele se relacionam, Lalino se torna simpático aos olhos de seus superiores, como pode ser

observado no diálogo entre seu Marra e seu Waldemar, para cuja esposa o protagonista espertamente dá aulas de violão a domicílio:

– Mulatinho levado! Entendo um assim, por ser divertido. E não é de adulador, mais sei que não é covarde. Agrada a gente, porque é alegre e quer ver todo–o–mundo alegre, perto de si. Isso, que remoça. Isso é reger o viver.

– É o que eu acho... Só o que tem, que, às vezes, os outros podem aprovar mal o exemplo...

– Concordo. Já pensei, também...Vou arranjar para ele um serviço à parte, no armazém ou no escritório...E é o que convém, logo: veja só...(p. 80).

Ao mesmo tempo em que pratica a cordialidade, Lalino sabe manter os outros distantes de sua vida privada; observe–se, por exemplo, na passagem abaixo, a maneira hábil pela qual se livra de Generoso, que lhe traz a informação – já conhecida dele, como saberemos no desenrolar da história – sobre o assédio do espanhol Ramiro a sua mulher. Na verdade, além da preservação de sua privacidade, a atitude de Lalino tem o objetivo de esconder do público o fato de ele ter ciência das investidas do espanhol sobre Maria Rita; se demonstrasse o conhecimento do assédio, teria de explicar por que ainda não tivera nenhuma reação violenta, exigida pelo código do meio social, coisa que não está em seus planos de vida:

– Então, seu Laio, esse negócio mesmo do espanhol...

– Ara, Generoso! Vem você com espanhol, espanhol.. Eu já estou farto dessa espanholaria toda... Inda se fosse alguma espanhola, isto sim!

– Mas, escuta aqui, seu Laio: o que eu estou falando é outra coisa...

– É nada. Mas, as espanholas!...Aposto que vocês nunca viram uma espanhola... Já?... Também, – Lalino ri com caretas – também aqui ninguém não conhece o Rio de Janeiro, conhece?... Pois, se algum morrer sem conhecer, vê é o inferno!

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O capítulo II narra a relação, revestida de forte carga de sensualidade, de Lalino com Maria Rita, os preparativos da partida e a viagem do protagonista ao Rio de Janeiro. Já em vias de se evadir, ele entabula com seu Miranda um diálogo que mostra uma outra faceta de seu caráter, a de homem normalmente pacato, mas pronto para utilizar a violência quando julgar necessário: “– Olha, seu Miranda: eu, com o senhor, de qualquer jeito: à mão, a tiro, ou a pau, o senhor não pode comigo – isto é – não é?...” (p. 86).

Como já sucedera no capítulo anterior, Lalino deixa–se levar pela imaginação e por isso prefere as imagens da revista de mulheres da capital à realidade da apaixonada mulher que se enfeita para agradá–lo (p. 82). O capítulo se encerra com o protagonista

imaginando e saboreando de antemão as farras e orgias que o esperam no Rio de Janeiro, “onde odaliscas veteranas apregoavam aos transeuntes, com frinéica desenvoltura, o amor: bom, barato e bonito, como o queriam os deuses.” (p. 86). Esta passagem faz uma referência à luxúria que cerca a relação do protagonista com a mulher e que o move para a grande cidade, porque em Frinéia, intérprete e sacerdotisa de Afrodite, o sapo simboliza a luxúria e Lalino é diretamente associado aos sapos pelo narrador: “Lalino Salãthiel nem mesmo sabia que era da grei dos sapos” (p. 93).

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O breve capítulo III narra a ligação de Maria Rita com o espanhol Ramiro. Os comentários do povo são claramente desfavoráveis a Lalino, como na passagem na qual, mais uma vez, sua condição racial é lembrada: “– Mulatinho indecente! Cachorro lambeu a vergonha da cara dele! Sujeito ordinário... Eu em algum dia me encontrar com ele, vou cuspindo na fuça!” (p. 87).

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No Capítulo IV, são narradas a vida devassa do protagonista no Rio de Janeiro, a decepção com as mulheres de bordel, a saudade de casa, a decisão de retornar ao lar, as farras derradeiras de despedida da grande cidade e o retorno, triste. Este capítulo aproxima o conto à parábola do filho pródigo narrada no Evangelho de São Lucas, 15, 11–32. O arrependimento e o retorno de Lalino têm duas origens: a escassez de dinheiro e a decepção com a falsidade das profissionais do amor, lindas e sedutoras, que haviam sido a razão do seu abandono do lar. Aquelas que o levaram a sonhar com um falso paraíso terrestre são equiparadas no texto às huris, beldades celestes que hão de ser esposas dos fiéis muçulmanos. Desolado, ele lamenta a perda do amor sincero de Maria Rita:

As aventuras de Lalino Salãthiel na capital do país foram bonitas, mas só podem ser pensadas e não contadas, porque no meio houve demasia de imoralidade. Todavia, convenientemente expurgadas, talvez mais tarde apareçam, juntamente com a estória daquela rã catacega, que, trepando na laje e vendo o areal rebrilhante à soalheira, gritou – “Eh, aguão!...”– e pulou com gosto, e, queimando as patinhas, deu outro pulo depressa para trás. Portanto: não, não fartava. As huris eram interesseiras, diversas em tudo, indiferentes, apressadas, um desastre; não prezavam discursos, não queriam saber de românticas histórias. A vida... Na Ritinha, nem não devia de pensar. Mas, aquelas mulheres, de gozo e bordel, as bonitas, as lindas, mesmo, mas que navegavam em desafino com a gente, assim em apartado, no real. Ah, era um outro sistema.

Aquilo cansava, os ares. Havia mal o sossego, demais. Ah, ali não valia a pena. (p. 87–8)

A viagem de retorno descreve a mudança que vai se operando na personagem, que começa com sua entrada no trem – “Quando entrou no carro, aconteceu que ele teve vontade de procurar um canto discreto, para chorar.” (p. 88) – e termina quando desperta no dia seguinte “pomposamente, terrivelmente feliz.” (p.89). Os sentimentos de Lalino nesta viagem de volta estão em franca contraposição às ilusões que alimentava na viagem de ida. O amor verdadeiro de Maria Rita fora vendido como mercadoria e substituído pelo amor comprável e simulado de lindas mulheres; mas a experiência vivida traz a consciência da dimensão do bem perdido e leva o protagonista a empenhar–se com afinco para recuperá–lo. Talvez no tema da distinção do amor verdadeiro e do amor ilusório ou entre amor e luxúria esteja uma moral da parábola do marido pródigo, narrada nas aventuras de Lalino Salãthiel na Cidade Maravilhosa. Essa moral sobre o amor, embora seja interessante, não é suficientemente ampla para justificar o papel central que a política representa no conto.

Os atributos pessoais de Lalino, dos quais tão bem se aproveitava e aproveitará no sertão, tornam–se inoperantes na grande cidade e, por isso, ele tem dificuldade de conseguir trabalho – “O dinheiro se fora. Rareavam os biscates. Veio uma espécie de princípio de tristeza. E ele ficou entibiado e pegou a saudadear.” (p. 88). Em seu retorno ao lar, ele poderá novamente utilizar–se daqueles valiosos atributos para se projetar na política como excelente cabo eleitoral e, em troca por seus serviços, reaver a mulher. Lalino é, portanto, um vencedor em sua terra, mas é um perdedor na capital, onde os hábitos, os costumes, os valores e o progresso lhe são estanhos. É claro que o local onde vive está em processo de receber o progresso por meio da estrada de rodagem em construção, mas ele não se adapta ao trabalho disciplinado exigido a homens e burrinhos no exercício das tarefas. Somente em sua terra e em seu estado de atraso é que ele apropriadamente desempenha seu papel. Se, como dissemos, o aspecto político é significativo no conto, é razoável relacionar o fracasso de Lalino na capital do país com os outros aspectos políticos que detectamos na obra. Podemos então afirmar que a personagem é talhada para a política local, mas inadequada à política praticada na capital. Mas, durante a Primeira República a maior parte do eleitorado era constituída por trabalhadores rurais que obedeciam à orientação dos fazendeiros, os quais, por sua vez, seguiam os líderes políticos municipais. Como o poder municipal se fortalecia por meio da criação de compromissos de sustentação política com os governos estaduais, a atuação eficaz de Lalino ocorre justamente na base eleitoral do sistema político, e neste o protagonista se move com estupenda desenvoltura; por essa razão, sua atuação local

poderá levá–lo a se projetar na esfera estadual em função da simpatia que inspira no Secretário do Interior. O caminho inverso não seria possível porque, para adquirir projeção política na capital, ele não possui o cacife inicial necessário – e aí se incluem apadrinhamento, compadrismo, nepotismo e toda sorte de conchavos – porque, como diz o narrador, “a política é ar fácil de se respirar – mas para os de casa, que os de fora nele abafam, e desistem.” (p. 108).

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O capítulo V começa com Lalino inventando formas espirituosas para enfrentar as caçoadas e as interpelações dos habitantes locais em sua caminhada para a casa do espanhol Ramiro. Após o encontro com o amante de Maria Rita, elabora um projeto para resgatá–la e ao mesmo tempo alcançar, como importante subproduto, projeção social na comunidade. Seu patrimônio de partida é negativo: a mulher não o quer, e ele é rejeitado pelo seu grupo social.

A narrativa desse capítulo cobre uma série de eventos breves e descritivos do caráter do protagonista – que adicionam novos dados aos já fornecidos nos capítulos anteriores – e das técnicas que ele irá empregar para realizar seu plano. Sem um tostão no bolso, blefa com o espanhol, ao mostrar disposição de devolver o dinheiro que este lhe emprestara: “O dinheiro estava aqui na algibeira, mas, já que está tudo quites, acabou–se. Não sou homem soberbo!...” (p.103). Nesse mesmo diálogo com o espanhol, ele mostra sua disposição de aplicar a força, se necessário, como já fizera com seu Miranda “Espera, o senhor está tratando bem da Ritinha? Ahn, não é por nada não. Mas, se eu souber que ela está sendo judiada!...” (p. 90). A mesma disposição de emprego da violência pode ser observada na passagem em que Lalino diz ao espanhol que quer conversar com a esposa: “Lalino batera a mão no cinturão, na coronha do revólver, como por algum mal, e estava com os olhos nos do outro, fincados.” (p. 90). Um de seus atributos é a paciência, que lhe será utilíssima nos dois campos em que atuará, no afetivo e no político, pois, lenta e objetivamente, colocará em prática uma estratégia que o levará ao êxito: “Eu quisesse, à força, hoje mesmo a Ritinha vinha comigo... E se... Ah, mas tem os outros espanhóis, também... Diabo! É, então vamos ver como é que a abóbora alastra.... e deixa o tiziu mudar as penas, p’ra depois cantar...” (p. 91). Lalino sabe empreender a retirada estratégica quando prevê que as coisas podem ir mal, mas ainda assim, aproveita a oportunidade de ludibriar o rival: “– Qual, resolvi... Bobagem. Quero ver mais a minha mulher também não... O que eu preciso é do meu violão... Está aí, hem?” (p. 90). Quando está sendo verbalmente atacado ou em vias de sê–lo, sabe

contra–atacar e reverter uma situação de inferioridade; por exemplo, ataca o Jijo antes de ser ofendido por ele (p. 91). Por meio da história do cágado e do sapo, na qual este engana até mesmo São Pedro (p. 92–3), o narrador fala–nos da astúcia da personagem; o sapo, como vimos, é a representação de Lalino. Como podemos observar, seu caráter está em perfeita sintonia com a prática da política brasileira, e todos os acontecimentos narrados que lhe dizem respeito estão centralizados nessa idéia.

Nesse mesmo capítulo é introduzida a personagem Oscar. Quando Lalino pensa em ir ao encontro de seu Marrinha, certamente para engabelá–lo com sedutoras propostas teatrais a fim de obter emprego, casualmente vem a seu encontro o filho do chefe político do distrito, Major Anacleto. No diálogo entre os dois homens, Lalino, como pessoa dotada de tino para a política, mantém o respeito devido a um filho de major, mas isto não o impede de mentir, se mentir for o que mais lhe convier no momento. Oscar, por seu turno, procura colocar Lalino em débito com a moralidade, para então prometer auxiliá–lo a se emendar. Mas, seu auxílio é uma forma astuta de comprometer o outro, pois o que Oscar realmente pretende é utilizar Lalino na batalha política que se desenrola no local e para a qual este parece talhado: “– Eu acho de encomenda, p’ra um como você, tomar uma empreitada com essa política, que está brava...” (p. 95)

Ainda nesse diálogo, Lalino dá outra mostra de sua imaginação ao idealizar um mundo hipotético, onde todos os desejos são alcançados sem nenhum esforço de trabalho físico ou mental:

Este mundo é que está mesmo tão errado, que nem paga a pena a gente querer concertar... Agora, fosse eu tivesse feito o mundo, por um exemplo, seu Oscar, ah! isso é que havia de ser rente!...Magina só: eu agora estava com vontade de cigarrar... Sem aluir daqui, sem nem abrir os olhos direito, eu esticava o braço, acendia o meu cigarrinho lá no sol... e depois ainda virava o sol de trás p’ra diante, p’ra fazer de–noite e a gente poder dormir... Só assim é que valia a pena... (p. 94–5).

No documento Sagarana: o Brasil de Guimarães Rosa (páginas 60-126)

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