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2 CORPO HUMANO UMA PRODUÇÃO HISTÓRICA E CULTURAL

2.1 O CORPO NA HISTÓRIA – DE OBJETO DA NATUREZA A ARTEFATO DA CULTURA

Os corpos trazem as marcas do processo civilizatório – Thomas Laqueur.

A história do corpo transcende a narrativa da produção da anatomia e fisiologia, da sucessão dos saberes e teorias e seus propósitos de elucidar os mecanismos de funcionamento e a vulnerabilidade às doenças e agressões do ambiente e os mistérios do corpo. Essa narrativa é, antes de tudo, uma narrativa cultural e social. Por conseguinte, o produto de relações humanas, a ação de vários personagens em seus espaços-tempos. Pensar a narrativa da história do corpo, em termos, exclusivamente, relativos à sucessão de conceitos e teorias da anatomia e da fisiologia produz um tipo de história restrita e reducionista, que desconsidera os efeitos da cultura e das relações sociais, na própria produção científica.

A história foi frequentemente escrita do ponto de vista dos vencedores conforme demostrou Walter Benjamim, em sua extensa produção. E sob a lógica de March Bloch (2001), também, foi, por muito tempo, despojada do corpo, de sua carne, de suas vísceras, de suas alegrias e desgraças. Não obstante, nenhuma inteligência erige-se e proclama seus estatutos simbólicos e efetua suas produções, no mundo social, de modo absolutamente desencarnado (CHARTIER, 1990; BLOCH, 2001; BOURDIEU, 2011, 2012).

Portanto, conforme preconizaram Le Goff e Truong (2012) se faz necessário dar o corpo à história e dar uma história ao corpo. Então, o corpo tem uma história e faz parte dela, assim como as estruturas econômicas, políticas, sociais, os discursos e as representações.

As concepções do corpo têm seu lugar na sociedade e na constituição da História Cultural das sociedades e marcam decisivamente presença no imaginário, na realidade e na vida cotidiana, e em momentos excepcionais, sofreram modificações em diversas sociedades humanas (BLOCH, 2001). Essa argumentação é corroborada por David Le Breton, que elabora uma abordagem antropológica do corpo (2013, p. 8),

Cada sociedade, no interior de sua visão de mundo, delineia um saber singular sobre o corpo: seus elementos constitutivos suas performances, suas correspondências etc. Ela lhe confere sentido e valor. As concepções do corpo são tributárias da concepção de pessoa. Assim, numerosas sociedades não separam o homem do seu corpo, a maneira dualista, tão familiar ao ocidental. Nas sociedades tradicionais o corpo não

se distingue da pessoa. As matérias-primas que compõem a espessura do homem são as mesmas que dão consistência ao cosmo, à natureza. Entre o homem, o mundo e os outros, um mesmo estofo reina com motivos e cores diferentes, os quais não modificam em nada a trama comum.

A existência do homem e as configurações de suas experiências são inexoravelmente corporais. ―Na disciplina histórica reinou por muito tempo a ideia de que o corpo pertencia à natureza, e não a cultura‖ (LE GOFF; TRUONG, 2012, p.16). Todavia, é sobre e com o corpo, que se constroem e se fazem circular as produções da cultura, na dinâmica do social. E assim, o corpo humano transborda e transcende o seu sentido de um ser exclusivo da natureza, e que não se restringe a sua dimensão biológica. No corpo, o biológico é configurado pelo social e pelo cultural, e também são forjadas as políticas de identidade social e cultural e da diferença (BOURDIEU, 2011, 2012, HALL, 2003, 2014; WOODWARD, 2014).

Por conseguinte, o corpo se constitui no agente e no produto de estruturas econômicas, sociais e de representações sociais. Portanto, inscrito na dinâmica do social, provido de capital simbólico e historicidade. No corpo se vinculam o biológico ao social, ao econômico e a cultura, seu arsenal de células, tecidos e complexos processos bioquímicos e biofísicos, aos domínios do simbólico, ao território do arbitrário.

―A história do corpo desenvolveu-se a partir da história da medicina, mas também os historiadores da arte e da literatura, assim como os antropólogos e sociólogos, se envolveram no que poderia ser chamado de ‗virada corporal‘‖ (BURKE, 2008, p.95).

A história do corpo, por sua vez, se conecta a outras histórias, por intermédio do poder simbólico e dos códigos culturais que comportam, tais como o vestuário, a alimentação, os gestos, as bebidas, as habitações, da dança, da arte, os espaços da casa, a sexualidade, as relações de gênero, raça e etnia, os interditos, o habitus, a disciplina, o processo civilizador - o autocontrole. E do mesmo modo, se imbrica com as histórias das instituições, a infância, a família, a escola, a igreja, os quarteis, os hospitais, manicômios, presídios e os espaços e as formas de produção científica, dentre outras.

Notadamente, nessas instituições e em demais espaços da cultura, entram em cena os dispositivos de regulação e repressão. O corpo é claramente o objeto da atuação de poderes coercitivos e produtivos. No corpo, as diversas instituições e seus agentes imprimem-lhe as premissas dos interditos, da vigilância, do controle e da disciplina, atuam e constroem regimes de verdade, os quais comportam e atendem a objetivos sociopolíticos implícitos e explícitos (FOUCAULT, 1980; 2012).

Os poderes, desta forma, exercidos sobre o corpo, visam conformá-lo ao processo civilizador, por intermédio da substituição das formas de violência físicas e explícitas por sua sofisticação simbólica – a incorporação voluntária do autocontrole e da disciplina para a produção da pessoa civilizada (ELIAS, 1994). Desse modo, o corpo configura-se em discursos e em textos a serem lidos, decodificados, interpretados e assim se converte em artefato da cultura e efeito do social.

O historiador Marcel Mauss inaugurou, em 1934, o território das ―técnicas do corpo‖ – entendidas como os modos como os homens, sociedade por sociedade, de uma maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos. Mauss compreende a técnica enquanto ―um ato tradicional eficaz‖ e o corpo enquanto ―o primeiro e mais natural instrumento do homem‖ (MAUSS, 2003).

Uma questão que me é familiar e que eu pude, infelizmente, apenas indicar parcialmente em uma conferência na Sociedade de Psicologia, sobre as técnicas do corpo, permite-me entrever uma parte dos movimentos do corpo humano - não somente nos jogos, nas atitudes, no nado, na dança, etc., mas também, naturalmente, em todas as técnicas, como por exemplo, na maneira de arrancar um peso ou carregar uma carga - como o efeito do ensinamento humano, da invenção humana e da sua propagação social pela via tradicional ou pelo empréstimo. Ideias desse tipo podem ser difundidas perfeitamente nos meios de educação física. Por um lado, será preciso conhecer, desse ponto de vista, todas essas técnicas em seu todo [um branco na página], pois elas podem ter utilidades inimagináveis com as quais nossas ignorâncias tradicionais na Europa, por exemplo, poderiam ser totalmente informadas. Exemplo: a geração atual é, como eu tenho o costume de dizer, sem chapéu. A minha é ainda com chapéu. Aí estão questões da sociologia da juventude e questões da sociologia da velhice. Eu acredito que, precisamente, é útil, sob todos os pontos de vista, tratá-la em conjunto e separadamente. Da mesma forma, existem velhos senhores de barba, e isso supõe um comportamento muito diferente do de um jovem homem sem barba (MAUSS, 2010, p. 244).

Para Marcel Mauss (2003) as técnicas que regem o corpo modificam-se conforme as sociedades, as educações, as conveniências e as modas, os prestígios. As formas e os propósitos pelos quais as pessoas servem-se e utilizam os seus corpos, não resultam exclusivamente de propriedades biológicas, mas também se constituem em atributos da cultura e das relações sociais. Por conseguinte, os movimentos, a hexis corporal se constitui como uma imbricada construção biológica, social e cultural. Por um lado, somente se materializa na conjunção de células e na trama dos tecidos que compõem as estruturas da espessura humana. E por outro, conformam e configuram os legados da cultura e das relações sociais as quais cada pessoa pertence.

Nessa mesma perspectiva, Norbert Elias buscou compreender o processo civilizador – o autocontrole da violência e a interiorização das emoções – por intermédio da produção dos costumes e das técnicas do corpo, em um processo designado por configuração, historicamente delimitado especialmente na Idade Média e

no Renascimento. Nas suas obras O processo civilizatório e em A dinâmica do Ocidente o sociólogo Norberto Elias explicitou como as funções corporais foram alçadas a condição de objeto histórico e sociológico, a relevância e as implicações desse tipo de estudo para as chamadas Humanidades.

Norbert Elias, intelectual alemão de origem judaica, formado em medicina, filosofia e sociologia, seguidor e tributário dos trabalhos do sociólogo Max Weber, foi obrigado a fugir das perseguições impostas aos judeus na Alemanha nazista, durante a II Guerra Mundial, o que o fez migrar para a França e posteriormente à Inglaterra. Sua condição humana, em seu tempo, se fez sentir sobre a elaboração e a circulação de sua produção intelectual. Os dois volumes de sua obra consagrada ao estudo do processo civilizador: O processo civilizatório e A dinâmica do Ocidente foram redigidos entre 1936 e 1937, publicados originalmente no idioma alemão no ano de 1939 e traduzidos para o inglês somente em 1969.

Nessa produção, foram postos de lado a repulsa, a resistência e a redução do corpo a Natureza e examinados os manuais de civilidade: os modos à mesa, as maneiras, autorizações ou proibições de assoar o nariz, de escarrar, de vomitar, de defecar, de urinar, de copular ou de lavar-se. Nesse trabalho fecundo, Norbert Elias, desconstruiu o caráter exclusivamente natural atribuído às funções corporais, mostrou que elas também são culturais, históricas e sociais. Norbert Elias evidenciou a evolução das normas sociais, a incorporação das restrições e interditos, assim, destacou a produção cultural da vergonha, do constrangimento e do poder, nos caminhos da História do homem ocidental da era moderna. Assim, os fatos triviais e imediatos que compunham o cotidiano foram relacionados à estrutura social do Antigo Regime (DEL PRIORE, 1994). Nestes termos, Norberto Elias formulou uma sociogênese e uma psicogênese: a história de uma sociedade se reflete na história interna de cada indivíduo (ELIAS, 1994).

Para Elias, a instauração do poder absoluto (do príncipe, do rei) é o resultado e o princípio do equilíbrio social, na sociedade de corte, no ocidente, faz-se acompanhar de grandes evoluções, constitutivas do processo de civilização. Notadamente, entre os séculos XII e XVIII, a expressão das sensibilidades, emoções e comportamentos foram modificadas, profundamente, por dois fatores principais: o monopólio estatal da violência, meio pelo qual se impôs o domínio das pulsões e pacificou-se o espaço social; o estreitamento das relações interindividuais, que obrigou a intensificar um rígido controle das emoções e dos afetos (ELIAS, 1994). Impôs-se progressivamente a atitude de pudor, o constrangimento, a autodisciplina em relação às funções fisiológicas,

a desconfiança em relação aos contatos físicos e o distanciamento dos corpos. A remodelagem dos corpos, por intermédio da introjeção de código de conduta do pudor, do constrangimento e do autocontrole refletia a remodelagem do próprio corpo social (DEL PRIORE, 1994).

Nesse processo Roger Chartier (1990, p. 109.) destaca que ―a progressiva diferenciação das funções sociais, que é condição inerente à formação do Estado absolutista, multiplica as interdependências e, consequentemente, dá lugar aos mecanismos de autocontrole individual que caracterizam o homem ocidental da era moderna‖.

À medida que o tecido social vai se diferenciando, o mecanismo sociogênico do autocontrole psíquico evolui igualmente no sentido de uma diferenciação, uma universalidade e uma estabilidade maiores.

(...) A estabilidade particular dos mecanismos de autocondicionamento psíquico que constitui o traço típico do habitus do homem civilizado está estreitamente ligada à monopolização do condicionamento físico e a solidez crescente dos órgãos sociais centrais. É precisamente a formação dos monopólios que permite o estabelecimento de um mecanismo de condicionamento social graças ao qual cada indivíduo é educado no sentido de um autocontrole rigoroso. É aí que se situa a origem do mecanismo de autocontrole individual permanente cujo funcionamento é, em parte, automático (ELIAS, 1994, 193-194).

A interiorização do autocontrole e a incorporação do código social e arbitrário que autoriza/desautoriza o servir-se do corpo, atuam decisivamente na elaboração, circulação e refiguração das representações sociais e de suas formas de apropriação. Por essa via, os discursos sobre corpo, as regulações, as classificações são impingidas nos corpos, e, desta mesma forma, reconhecidas entre as pessoas. Essa operação de reconhecimento, também, produz distinções que permitem incluir ou excluir os membros de um grupo, de uma configuração social. Assim, os comportamentos, as imagens e as práticas sociais circulam, se transformam e emolduram o social e exercem poderes simbólicos capazes de delinear, ordenar e conduzir as relações sociais e as práticas culturais.

A invenção de objetos como a escarradeira, o garfo, o lenço foram o testemunho da elaboração de uma codificação social para o corpo, um código para as técnicas corporais, que conformou o processo civilizatório. Profundamente incorporados e sentidos como naturais, esses sentimentos levam a formalização das regras de condutas, que constroem um consenso em torno dos gestos que convém ou não fazer – gestos que contribuem para moldar a sensibilidade (HEINICH, 2001).

Por conseguinte, o processo de civilização, que ocorreu em sociedades ocidentais, consistiu na interiorização individual das proibições, anteriormente impostas do exterior, numa transformação da economia psíquica capaz de fortalecer e refinar os mecanismos de autocontrole exercido sobre as pulsões e emoções. Assim, o condicionamento social, externamente exercido sobre os indivíduos, passou a ser incorporado em forma de habitus e se transformou em autocondicionamento.

A sociedade instituiu as regras, os valores, as condutas, os comportamentos, as convenções aceitáveis, por intermédio da atuação de seus diferentes grupos e configurações. E os indivíduos, por sua vez, incorporam-nas, com o propósito de produzir relações sociais perceptivelmente menos brutais, a fim de dissipar a violência física e efetivar a civilização. Assim, o aprendizado do conter, restinguir, delimitar as pulsões, refrear os afetos e as emoções, em suma o aprendizado do domínio do corpo e a educação das funções corporais ocupou lugar central no precípuo empreendimento de erigir a civilidade. Daí, a forte relação entre uma concepção do corpo educado e o homem civilizado correlacionando os atos de educar e de civilizar.

Na perspectiva de vincular o corpo – a sua condição de natureza à tessitura da cultura e ao social – o historiador March Bloch, um dos instituidores da Escola dos Annales e co-fundador da Revista Annales (1929), se recusou a separar o homem (a pessoa) de suas vísceras e a mutilar o homem de sua sensibilidade e de seu corpo. Esse ponto de vista é também corroborado por outros intelectuais, como Hannah Arendt que ao tentar compreender a produção da condição humana, também dedicou um lugar particular ao corpo – o espaço onde a barbárie se manifesta em toda a sua extensão e profundidade. É sobre o corpo que a barbárie se materializa.

Nessa mesma direção, os teóricos da Escola de Frankfurt, Max Horkheimer e Theodor Adorno – sob a lógica de enfrentamento a barbárie, ao terror nazista e a degradação humana promovida pelo capitalismo – argumentaram, que a indústria cultural ao produzir a racionalidade técnica levou ao extremo o domínio humano sobre a natureza e exacerbou o controle sobre o corpo. Assim, sob o prisma de Max Horkheimer e Theodor Adorno, o corpo comporta o impensado na civilização ocidental. No corpo explorado, o homem se reduz a objeto e a sede da dominação, é neste corpo que se imprimem os processos de barbárie.

Por seu turno, Michel Foucault em suas obras História da Loucura (1966),

Vigiar e punir: o nascimento da prisão (1975), História da Sexualidade: a vontade de saber (1976), História da Sexualidade II: o uso dos prazeres (1984), História da

sexualidade III: o cuidado de si (1984), dentre outras, insere o corpo em uma rede

política, na microfísica dos poderes.

Trata-se de uma microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se coloca de algum modo entre esses grandes funcionamentos e os corpos com sua materialidade e suas forças. Ora, o estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido como uma propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos a uma ―apropriação‖, mas de disposições, a manobras, táticas, a técnicas, a funcionamentos; que se desvende nele antes uma rede de relações sempre tensas, sempre em atividade, que um privilégio que se pudesse deter; que lhe seja dado como um modelo antes a batalha perpétua que o contrato que faz uma cessão ou a conquista que se apodera de um domínio (FOUCAULT, 2010, p. 29).

O corpo é o lugar onde residem e atuam as operações e as forças da política. Essas relações de poder marcam, educam, supliciam, submetem aos trabalhos, a cerimônias, rituais e dele exigem sinais, para que se produzam os corpos dóceis, úteis e inteligíveis. (FOUCAULT, 2010). A atuação sobre o corpo articula uma intrincada rede de relações complexas, nas quais se conectam os poderes simbólicos, os discursos, e a produção econômica, para sujeita-lo.

(...) É, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. Essa sujeição não é obtida só pelos instrumentos da violência ou da ideologia; pode muito bem ser direta, física, usar a força contra a força, agir sobre elementos materiais sem, no entanto, ser violenta; pode ser calculada, organizada, tecnicamente pensada, pode ser sutil, não fazer uso de armas nem de terror, e no entanto continuar a ser de ordem física (FOUCAULT, 2010, p. 29).

Os saberes produzidos sobre o corpo são, em toda a sua extensão, poderes exercidos sobre o corpo. E por sua vez, resultam em uma tecnologia política do corpo, amplamente utilizadas pelas instituições coercitivas.

(...) um saber do corpo que não é exatamente a ciência de seu funcionamento, e um controle de suas forças que é mais que a capacidade de vencê-las: esse saber e esse controle constituem o que se poderia chamar a tecnologia da política do corpo (FOUCAULT, 2010, p.29).

Sob esse prisma, o corpo – que é objeto de atração e repulsão, sobretudo na história europeia – é situado num contexto de biopoder, um poder que tende a rechaçar a morte e a cercar a vida de parte a parte. Os discursos, em suas formas variantes, são o principal instrumento e veículo, dessa forma irradiada e irradiadora de exercício do

poder. Cujos propósitos preconizam, de alguma forma e em algum grau de intensidade, a vigilância, o controle, o disciplinamento do corpo para a sua normalização, para prevenir, corrigir, para a anulação ou exclusão dos desvios e dos desviantes social e culturalmente indesejáveis (FOUCAULT, 2010).

Igualmente, Foucault destaca que, dentre os saberes produzidos sobre o corpo, encontram-se confluências entre a moral cristã e o pensamento médico: princípio de uma economia que prioriza a frugalidade, a escassez do uso de recursos; obsessão pelas infelicidades individuais ou pelas doenças coletivas que podem ser suscitadas por um desregramento da conduta sexual; necessidade de um controle rigoroso dos desejos, de uma luta contra as imagens e a uma anulação do prazer enquanto a finalidade das relações sexuais. Assim, o corpo precisa ser prevenido de males, dos excessos, dos impulsos e corrigido de desvios.

A abordagem que Foulcault realizou, sobre a história do corpo, salientou a produção de um tipo de saber-poder – a tecnologia política do corpo –, que orquestrou uma política da prevenção e da correção, as regulações para a normalização de pessoas. E que por sua vez, possibilitou a transição do foco político sobre o corpo, da punição para a vigilância, e dos suplícios e castigos para o controle e à educação. E, consequentemente, para a fabricação, não apenas do corpo desejável, mas, sobretudo, das configurações desejáveis de homens civilizados aptos a renunciar a barbárie, por intermédio da atuação dos saberes-poderes articulados em várias artes e ciências.

O estudo das funções corporais, considerado indigno e ignóbil, por parte de intelectuais europeus, até a segunda metade do século XX, somente passou a ser intensificado a partir dos anos de 1980. Nesse contexto houve uma concentração de estudos sobre os corpos masculinos e femininos, os corpos desmembrados, anoréxicos, dissecados e os corpos dos santos e dos pecadores (LE GOFF E TRUONG; 2012; BURKE, 2008). Essa intensificação do estudo do corpo, a partir de 1980, foi corroborada pelo surgimento e disseminação global da epidemia de AIDS – Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, que expôs inteiramente a vulnerabilidade do corpo contemporâneo (BURKE, 2008).

O estudo do corpo, além de abordar seu caráter biológico, enquanto a sede de