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Corpos de marte: a sexualidade humana vista por um marciano

4. A(S) SEXUALIDADE(S) E AS FORMAS DE SUBJETIVAÇÃO

4.2 Corpos de marte: a sexualidade humana vista por um marciano

Parafraseando o filósofo Pêcheux (2010 [1981]) pensando teoricamente como se coloca o problema da língua, trataremos aqui de como, mediante um impossível do sujeito, da história e da própria língua, constituem-se a sexualidade e as identificações de gênero.

Partindo da ideia de que a linguagem nos constitui, empreendemos um esforço teórico admitindo que antes do estabelecimento de uma expressão da sexualidade, de identidade ou identificação de gênero, há discursos e os corpos são, antes de tudo, corpos discursivos. Desse modo é que ousamos uma proposta de leitura desses corpos questionando os efeitos de evidência que atualmente circulam. Como se fundariam sentidos que escapariam aos efeitos de evidência que decorrem dos pressupostos da sexualidade humana?

Antes, disso, no entanto, parece-nos fundamental perceber a forma como a sexualidade foi significada em seu percurso e o que, em sua história recente, aponta para a desconstrução de sentidos há muito tempo estabilizados e que, de certa forma, vem de encontro a uma perspectiva psicologizante do indivíduo e à problemática da negligenciação do seu desejo sexual.

Há algo na constituição do sujeito na relação com sexualidade, algo basilar, e que de certa forma comparece como um já-lá para o exercício do sujeito sexual. As identidades de

gênero (e mais especificamente os processos de identificação com o imaginário do que seja um determinado gênero) são fundamentais para o exercício da sexualidade no que se refere ao seu aspecto “semanticamente estável”, isto é, se há um heterossexual, ou bissexual, ou ainda homossexual é porque há, antes disso, sujeitos em relação uns com os outros em combinações.

O binarismo de gênero é uma lógica que funciona socialmente dicotomizando as experiências identitárias. Dessa forma, o que se tem de “normal” é a identificação com o gênero masculino, ou com o gênero feminino. O que foge disso é passível de estranheza, pois estremesse as fronteiras de sentidos do que já estava, aparentemente, resolvido.

Na perspectiva dos sentidos e da necessidade do sujeito em sua forma atual de que os sentidos estejam estabilizados, determinadas performances de gênero (que podem transitar na esfera das identidades e das não-identidades) atuam na desordem da circulação dos sentidos.

A homossexualidade, inscrita na noção de orientação sexual, ou seja, baseada em “para quem o sujeito orienta sua sexualidade” está, dessa forma, associada a performances de gênero diversas. Ser homossexual, nessa perspectiva, não se trata somente de se relacionar sexualmente com homens, mas tem a ver com um determinado estatuto social que baliza o desempenho de acordo com a maior ou menor identificação de um imaginário do que seja o homem e a mulher. Um homem que pinte as unhas, ou uma mulher que use roupas muito largas parecem romper com esse estatuto em que os sentidos sobre ser algo estão estáveis e organizados.

Dito alguns aspectos introdutórios da discussão que neste item pretendemos, é preciso mensurar, no entanto, a forma como o “comportamento” foi determinante para a aceitação/não-aceitação de determinados sujeitos em suas práticas sociais. Trata-se aqui da ideia de que não importa o que se faça dentro dos quartos, mas na rua e nas vistas das crianças, não se pode deixar transparecer. É, de acordo com essa lógica, por exemplo, que é possível refletir sobre o estatuto social de pessoas transexuais, sabidamente nascidas com um determinado gênero, mas, contraidentificadas, transgridem a lógica identificando-se com o inverso do que se podia esperar.

Tentando concatenar e capitanear elementos que ajudem a encontrar um ponto comum no que se refere à experiência do sujeito atual com os sentidos à sua volta, comentaremos, ainda que brevemente, a partir da noção de simbólico, a forma como o corpo e suas bordas se inscrevem em redes de memórias tornando possível a produção dos sentidos sobre

determinado corpo e sua inserção no social.

Para tanto, façamos, na esteira da engenhosidade de Pêcheux (2010, [1981]), um breve exercício ficcional. No caso de um outro completamente estranho à realidade humana – que aqui podemos ilustrar na figura de um marciano – como, para ele, se semantizaria a sexualidade humana? Sem querer tirar conclusões precipitadas, mas já apontando para algumas propostas de reflexão, muito do que se compreenderia estaria atrelado a uma visão ora psicologizante, ora sociologista das experiências sexuais humanas.

Buscando escapar de tais domínios – o psicologismo e o sociologismo – acenamos para o entendimento de que o gênero e a sexualidade podem ser pensados para além de uma determinação puramente biológica e, também, para além de uma determinação pela cultura.

Baldini (2017), propondo releituras de Freud, em uma via pela psicanálise, a partir do que Freud nos oferece para pensar o gênero e a sexualidade, afirma que “Jacques Lacan foi o psicanalista que mais soube dar consequência à radicalidade de Freud, sem cair no biologismo ou no sociologismo, tendências cada vez mais predominantes no pensamento contemporâneo sobre aquilo que é da ordem do sexual” (BALDINI, 2017, p. 24)

Apontando para a compreensão de uma não-pré-determinação, Baldini (2017) afirma que “[...] não há objeto sexual pré-determinado, não há nenhuma finalidade a ser atingida, só há os descaminhos do desejo frente a falta de objeto, de onde vem a invenção de Lacan do objeto a, ou seja, o objeto por excelência que se constitui justamente por sua falta.” (BALDINI, 2017, p. 26)

É por essa reflexão que, a partir de Baldini (2017), pode-se compreender a categoria de gênero em Lacan como vazia, isto é, sem as pré-determinações que o imaginário da formação social e das relações entre sujeitos se encarrega de semantizar. Desse modo, não havendo um a priori do gênero, implode-se, também, qualquer pré-determinação para a sexualidade.22

É por esse caminho que, pela Análise de Discurso, Ferrari & Zoppi-Fontana (2017) situam sua proposta de pensar o gênero e a sexualidade discursivamente, tendo como pressuposto, tal como a Análise de Discurso de Michel Pêcheux, um sujeito de natureza psicanalítica, e não qualquer psicanálise, mas aquela filiada aos domínios teóricos norteados

22 Fazemos menção aqui, também a partir de Baldini (2017), a um ponto problemático para o que estamos tratando. A teoria da sexuação de Lacan, se apresenta como um ponto contraditório para o que estamos tentando representar. Sem condições de um maior aprofundamento na teoria psicanalítica e nas discordâncias que podem surgir a partir de tal aprofundamento, propomos trabalhar aqui no que seriam as concordâncias: a fuga a uma interpretação do gênero e da sexualidade pelo sociologismo ou pela via psicologizante do sujeito.

por Jacques Lacan. Do mesmo modo procede Baldini (2017). As autoras apontam para o entendimento de que

[…] as identificações de gênero configuram as práticas discursivas ao mesmo tempo que se configura nelas, como efeito de um processo de interpelação complexo e contraditório, no qual as identificações de gênero se articulam a outras identificações nos processos de constituição do sujeito do discurso. (FERRARI & ZOPPI- FONTANA, 2017, p. 9-10)

Isso, para nós, entre outras coisas, significa que sendo as identificações de gênero resultado de um processo de interpelação complexo e contraditório, marca-se aí, pelo funcionamento do discurso, a possibilidade do equívoco. Dito de outro modo, é possível pelo discurso, supor o funcionamento de um outro sentido que não aquele engendrado por uma leitura hegemônica.

Daí, é que Ferrari & Zoppi-Fontana, advertem sobre “[...] a necessidade de se pensar o funcionamento da interpelação ideológica como um processo sempre-já-gendrado, ou seja, que sofre a sobredeterminação de identificações simbólicas de gênero e sexualidade” (FERRARI & ZOPPI-FONTANA, 2017, p. 9). Sendo assim, é nos movimentos de interpelação e individuação do sujeito propostos por Orlandi (2013), retomando Pêcheux, que se encontra o cerne da problemática de gênero e sexualidade no que tange a uma abordagem discursiva.

Aqui fazemos uma breve pausa nas discussões feitas por Ferrari & Zoppi-Fontana, para situar uma contribuição de Magalhães & Mariani (2010) no que se refere ao processo de subjetivação que, aliás, trouxemos à discussão por diversas vezes no percurso deste trabalho.

Magalhães & Mariani (2010) propõem retornar ao que diz Orlandi a respeito dos processos de interpelação em sujeito pela ideologia e de individuação do sujeito pelo Estado, para fazer um importante acréscimo a partir da constituição do sujeito pelo simbólico.

Para as autoras

Nossa condição de sujeitos implica a apropriação da fala e da linguagem bem como o vazio do entre significantes, o furo, a falta de um sentido único (literal). Tomar a palavra é inscrever-se em uma rede de diferenças e é, também, entrar em redes de produção de sentidos, entrar no simbólico e tornar-se responsável – na sociedade, na cultura – por seu próprio dizer, um dizer marcado pelo eu devo e também pela falta. (MAGALHÃES & MARIANI, 2010, p. 397)

A falta de que tratam as autoras, dialoga com o posicionamento de Baldini (2017) naquilo que compreende do sujeito em sua constituição. É desse modo que Magalhães & Mariani (2010) propõem, no movimento pendular descrito por Orlandi (2013), que

anteriormente à interpelação do sujeito pela ideologia – e não se trata de uma cronologia, conforme salientam as autoras – há um processo de subjetivação marcado, sobretudo, pela entrada na linguagem.

A partir disso, retornamos à Ferrari & Zoppi-Fontana (2017) para entender como se situa a problemática do gênero, no movimento pendular proposto por Orlandi (2013) no qual intervém teoricamente Magalhães & Mariani (2010), a saber: 1. a interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia; e 2. a individuação do sujeito pelo Estado.

Nas palavras das autoras, que entrelaçam suas palavras às de Baldini (2017), afirma-se que

No primeiro movimento, pelo fato de que, como diz Baldini […] “temos um corpo e esse corpo é atravessado pela linguagem”; não é indiferente à constituição do sentido “o modo como cada sujeito, a partir do atravessamento de seu corpo pela linguagem, irá se colocar frente ao desejo, ao sexual”. Pela sua inscrição no simbólico, o indivíduo se constitui a um só tempo em sujeito ideológico sexuado, a partir do funcionamento da ideologia e das formas de sexuação, enquanto estruturas- funcionamentos que se organizam em torno do não-UM, da falha. (FERRARI & ZOPPI-FONTANA, 2017, p. 13-14)

Já a respeito do momento de individuação do sujeito pelo Estado, é necessário anotar que

No segundo movimento, em relação aos processos de individuação pelo Estado e pelas relações de poder e dominação que configuram uma formação social, as identificações de gênero trabalham os processos imaginários de reconhecimento/desconhecimento que constituem os sujeitos nas suas relações sociais. (FERRARI & ZOPPI-FONTANA, 2017, p. 14)

É desse modo que, na perspectiva discursiva, a qual adotamos neste trabalho, é necessário levar em conta que “[...] as lutas pelo reconhecimento e as práticas de resistência às diversas formas de dominação surgem no interior do processo de interpelação ideológica e não fora dele, tal como Pêcheux [...] já nos alertava” (FERRARI & ZOPPI-FONTANA, 2017, p. 15). E, nesse sentido, finalmente, considerar que “[...] as identificações de gênero […] são constitutivas do processo de interpelação do indivíduo em sujeito do discurso.” (FERRARI & ZOPPI-FONTANA, 2017, p. 15).

Tendo discutido diversas questões sobre o gênero e a sexualidade na forma como se nos apresenta, passemos ao nosso capítulo de análises.