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5. AS SEXUALIDADES MAL DITAS.

5.4 Cura, milagre, solução

Nessa seção objetivamos concatenar as discussões que foram feitas até aqui, tomando como condução um fio discursivo que foi se construindo ao longo de toda esta análise e que nos parece importante do ponto de vista teórico.

Desde nosso primeiro capítulo, no qual situamos a proposta de leitura a ser seguida para a investigação que aqui realizamos, sinalizamos para a importância de uma certa dispersão que se presentifica no texto por nós analisado. Tratamos tal dispersão, em termos teóricos, pelo conceito de efeito metafórico, tal como propõe Pêcheux (2014 [1969]), e também pela noção de mal dito, tal como explicitamos anteriormente.

Essa dispersão demonstra que na discursividade do jornal Folha Universal, e mais especificamente nos momentos em que o jornal (não) enuncia o gênero e a sexualidade algo

29 As sexualidades outras, para nós, são aquelas que não se inscrevem em um padrão heteronormativo historicamente constituído, isto é, aquelas que fogem ao que se possa classificar, em uma dada formação social, como relação heterossexual.

30 Edir Macedo, o maior líder da igreja já sofreu diversos processos por práticas de estelionato e de curandeirismo.

se marca, no que se refere à temática que recortamos para a discussão, a respeito de uma cura, operada por/como uma ideia de milagre e que comparece, fortemente, como uma solução (para problemas cotidianos).

Antes de entrar fortemente nesse assunto, parece-nos fundamental retomar algumas discussões.

O sujeito, cuja imagem é construída discursivamente, que figura nas páginas do jornal, exemplificado na SD transcrita a seguir, é frágil, angustiado, tem caráter duvidoso e busca alívio incessantemente.

SD6: 'Minha vida estava uma desgraça, um vazio que não era preenchido

com nada. Me prostituía com homens e mulheres, mentia muito e procurava a sensação do bem-estar, mas era tudo momentâneo', recorda Karla. (Edição

1278, p. 29, 2 a 8/10/2016)

É necessário retomar que, conforme afirmamos (ver seção 2.1), trata-se aqui, por estar inscritos nos domínios do discurso religioso, de um sujeito que é livre para aceitar a sua submissão. É necessário, no entanto, tensionar essa liberdade/submissão, que advém da forma-sujeito atual, com as condições de produção que se apresentam.

Dissemos (também seção 2.1), à luz do que afirma Orlandi (2007), que se trata, no jornal Folha Universal, e mais amplamente na Igreja Universal do Reino de Deus, de uma tentativa de significar o silêncio divino o que aí funciona. Tal significação do silêncio divino perpassa por uma leitura específica da IURD, leitura essa que também buscamos demonstrar pelos deslocamentos que se constituíram com a entrada da Teologia da Prosperidade.

É desse modo que trazemos a tríade cura/milagre/solução para a discussão. Tendo em vista a angústia imaginariamente projetada no sujeito narrado pelo jornal, as justificativas para tal acontecimento, e os caminhos que lhe são oferecidos diante de tudo isso.

Em SD6, trata-se de um sujeito cuja vida está uma “desgraça”, que sente um “vazio que não é preenchido”, que “mente”, procura “a sensação de bem-estar”. É necessário notar- se que, em meio a isso tudo, como prostituição, aparece aquilo que em outra formação discursiva pode ser lido como uma possível bissexualidade.

Como vimos (ver seção 2.2), as igrejas de corrente neopentecostal se particularizam por uma mistificação que considera a atuação constante de um mal espiritual na vida das

pessoas.

Tal mal espiritual é imaginariamente projetado como justificativa para tudo que está ocorrendo. Vale lembrar, também, que de acordo com a ideia de fé inteligente, própria da Igreja Universal, é pelo afastamento da igreja ou, ainda, por uma fé “simples”, que se presentifica o mal espiritual.

Sugere-se, a partir daí, e também na conclusão da narrativa, que o sofrimento cessará no encontro com a igreja e com a fé, aquela específica da IURD. Ocorre que, para que tal milagre se efetive é necessário que aconteça uma cura desses males pelos quais tal sujeito encontra-se acometido.

Compreende-se, a partir disso, que para superar o vazio e a desgraça indo, portanto, de encontro ao bem-estar, é necessário parar de mentir, abandonar a prostituição e a relação com homens e mulheres. Sugere-se, pelo milagre do reencontro com a fé, a cura para a mentira, para a prostituição e para a relação com homens e mulheres o que, consequentemente, comparece como solução.

Por um outro ângulo, é preciso notar que a ideia de solução, à diferença da ideia de cura e de milagre, vem de um outro lugar. Parece importante aqui, retornar ao que dissemos sobre uma memória que se engendra pela lógica do neoliberalismo (ver 2.2; ver 3.2) que chega ao religioso por via da Teologia da Prosperidade.

Retomemos, por exemplo, a SD que transcrevemos abaixo:

SD2: Eu tive que fazer o aborto, mas quase morri no procedimento, pois

perdi muito sangue, fiquei fraca. Cheguei a manter relações sexuais com animais e praticava orgias com homens e mulheres, diz. (Edição 1284, p. 29,

13 a 19/11/2016)

É mister notar que há uma argumentação31 sendo construída pelo jornal, representada pela voz do bispo/colunista – que fala por todo o jornal, independentemente da assinatura de umas e outras matérias – em que se apaga sua função de mediação para insurgir a voz de Deus e do saber. Tomamos a argumentação, pela ótica da Análise do Discurso, como uma tentativa de convencimento sem garantias, já que o enunciador não tem controle sobre a significação dos “seus” dizeres.

31 Tratamos da argumentação aqui não em uma perspectiva intencional, mas, diferentemente, da argumentação em relação a uma determinada formação discursiva, tal como proposto por Orlandi (1996)

O convencimento, como vimos na análise de SD6 logo acima, se dá na direção do reencontro com o divino, metaforicamente inscrito pela imagem da igreja. O que nos parece, no entanto, é que ao falar de tantas formas de sofrimento e de angústias ao mesmo tempo, o jornal demonstra uma tentativa de um convencimento rápido e eficaz.

A rapidez e eficácia, que aí comparecem, estão em relação com uma necessidade cada vez mais rápida de aquisição de fiéis. Apresenta-se diversas angústias comuns ao sujeito/fiel/leitor ao passo que se dá, quase automaticamente, uma solução para elas.

Desse modo, em SD2, fala-se em aborto, experiência de quase morte, perda de sangue, fraqueza, relação sexual com animais, orgias e relações sexuais com homens e mulheres. São sofrimentos de diversas ordens e que, ao aparecer juntos em uma mesma direção de sentido, demonstram ao mesmo tempo o jogo com as angústias possíveis do sujeito/fiel/leitor e uma necessidade atual de rapidez e de aquisição de fiéis que, como demonstramos (ver seção 2.2) advém de uma lógica externa à religiosidade e que passou a funcionar nela.

A IURD é, portanto, operadora de milagres, já que se apresenta como uma instituição religiosa e é também uma solução prática e rápida para angústias das mais diversas ordens, não importando o nível da gravidade.

Retomando o aspecto mal dito da sexualidade, sugere-se aí, também, no meio dessa confusão argumentativa, a cura para a relação sexual com homens e mulheres para que possa haver a reaproximação com Deus – com a igreja. Fazemos menção, aqui, ao que tratamos (ver seção 4.1) na esteira do que teoriza Souza (1997) sobre a necessidade do apagamento da sexualidade para o exercício da fé.

Na tradição religiosa cristã, a cura do sujeito já compareceu de diversas maneiras. Desde o pagamento de indulgências para concessão do perdão, perpassando castigos pós- morte (ou na hora dela), até o trabalho com estratégia de dignificação. Todavia, é na discursividade neopentecostal que a cura – sub-repticiamente sugerida, conforme vimos (ver seção 5.1) – ganha esse status de solução rápida e eficaz.

Pelos dizeres do jornal, compreende-se que não há impedimentos e não deve haver obstáculos para que se receba a cura, através do milagre, que solucione o seu problema com agilidade, tal como manda a lógica neoliberal que orquestra os processos de subjetivação, interpelação e individuação pela forma-sujeito atual. Daí a importância do que discutimos (cf. RODRIGUES, 2002; SOUSA, 2011 – ver seção 3.2), sobre a relação da Teologia da

Prosperidade e das determinações econômicas de nossa formação social.

Por fim, é importante dizer, que a noção de mérito discutida por Weber (1996), se estilhaça na discursividade neopentecostal. Pelo mérito, tal como constituído no interior da reforma protestante, chega-se, pelo não-dito à ideia de que, se há os que merecem, há também os que não merecem. Cria-se uma divisão – um corte – horizontal. De um lado os que merecem, de outro os que não merecem.

O que ocorre no discurso da IURD é um rearranjo discursivo de tal corte. Estabelece- se um corte vertical. Os que (virtualmente) não merecem, é porque não encontraram, ainda, a Igreja Universal.

Tendo, por hora, finalizado nossas discussões, passemos a algumas considerações finais.