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Corpos em movimento enquanto experiência e expressão cultural

Capítulo 2 Palavras de corpos

2.4 Corpos em movimento enquanto experiência e expressão cultural

relevantes questões para um olhar antropológico? Como contribuir para esta reflexão a partir das contribuições do terreno e da observação do trabalho dos três bailarinos em análise? E como caracterizar a sua dança neste âmbito? É importante destacar onde se insere a dança performática de Benvindo, Jorge e Petchu, que pode ser considerada como

dança teatral, tal como é definida por Fazenda (2016), na medida em que é caracterizada

por três dimensões que a identificam e a diferenciam de outros propósitos e contextos de ocorrência da dança, como o ritual ou o recreativo: 1) estabelece uma separação entre intérpretes e espectadores; 2) ocorre num lugar propositadamente preparado para o efeito, seja de forma definitiva, como um teatro, seja de forma temporária, de que são exemplos as estruturas móveis, entre outros modos de ocupação de espaços preexistentes; 3) e, sendo uma forma expressiva com uma importante função comunicativa, é suscetível de gerar variadas interpretações em quem a observa (Fazenda, 2016, p. 69).

O corpo dançante dos três bailarinos, cumpre, não só, estas caraterísticas, mas também “materializa” as suas experiências através do movimento, tornando-as significativas para os contextos sociais e culturais onde se inserem, tal como Fazenda (2016) já havia identificado nas suas pesquisas:

“Apoiada nas orientações teóricas interpretativas e estudando casos concretos, procurei defender e demonstrar que a dança teatral é uma atividade caracterizada pela reflexividade, através da qual os criadores refletem, de forma crítica e criativa, sobre a sua própria sociedade e cultura e materializam uma forma de experiência, isto é, através da qual os criadores olham para si próprios, não como uma imagem refletida no espelho, mas olham, interpretando-se.” (p. 52)

Através da análise dos discursos e práticas de Benvindo, Jorge e Petchu, percebemos que a dança é para eles, realmente, uma maneira de refletir, “de forma critica e criativa”, como sugerido por Fazenda (2016), sobre a sua própria sociedade, cultura e podemos adicionar, experiências de vida. É nesta reflexão, num sentido de interpretação ativa, que o movimento desenvolve um papel determinante, porque a sua execução está carregada de significados, sejam os que determinam o próprio movimento ou os que ele determina através da intencionalidade do criador. Durante toda a observação e procura de definir o corpo dançante destes intérpretes, vimos como se entrelaçam as duas esferas que

Fazenda identifica como experiência do movimento - relativa a ações realizadas, a partes do corpo envolvidas, às suas qualidades e o uso do espaço; e a experiência individual - relativa à idade, sexo, emoções, sentimentos, sensações e crenças do sujeito situado social e culturalmente (Fazenda, 2016, p. 71). Considerando os movimentos que resultam das influências destas duas esferas, junto com os objetivos artísticos e políticos dos bailarinos, podemos reconhecer a divisão que Godard ([1995] 2002) faz sobre o movimento corporal, nas práticas de Benvindo, Jorge e Petchu: 1) a estrutura cinética, como o conjunto das coordenações, dos hábitos gestuais, que formam uma memória que define a maneira de cada pessoa se movimentar; 2) a estrutura estésica, como o movimento das perceções que compõem em cada pessoa um modo singular de se mexer, que se constrói na história, na linguagem e na cultura própria de cada um; 3) a estrutura simbólica, o sentido da expressão, da linguagem.

Todos estes elementos constituem um corpo que fala, se expõe e experimenta através do movimento, que se construiu em distintos contextos, se relaciona com diferentes conceções sobre a realidade e cujos sentidos mais implícitos na dança podem ser clarificados através dos discursos que os agentes produzem sobre as suas próprias práticas. Neste sentido, o movimento corporal representa múltiplas realidades e camadas: as técnicas adquiridas pelos corpos, as perceções dos indivíduos e a estrutura simbólica num contexto específico. Por isso podemos afirmar que um corpo em movimento é uma chave importante para a compreensão das culturas e dos indivíduos. Nos corpos dançantes dos três interpretes, estas esferas cruzam-se através da participação num conjunto de elementos geralmente tidos como separados, resultando importantes exemplos de complexidade de experiências e importância da dança nas suas vidas. A dança de raiz quase folclórica de Petchu, a ligação ao religioso e à africanidade de Jorge, a idiossincrasia e a experiência biográfica de Benvindo, são elementos que emergem relevantes na realidade na qual os indivíduos se encontram, entrelaçando-se como motores das técnicas corporais que, apesar de constituírem o aspeto mais repetitivo e racional da dança, nestes casos, são sempre mediadas pelas finalidades subjetivas de cada um dos bailarinos. Portanto, as características que emergem nos corpos dançantes de Benvindo, Jorge e Petchu, estão profundamente ligadas a significados e valores que surgem do espaço, entendido como lugar no mundo e no tempo que eles presenciam por ali se encontrarem e, em parte, escolhem presenciar, projetando sobre este espaço temas,

ideias, histórias e políticas e representando assim no conjunto, o contexto cultural no qual os corpos estão imersos.

Ao encararmos a complexidade que estes corpos dançantes nos apresentam, percebemos igualmente como estes em particular, mas todos os corpos na dança em geral, são de grande interesse para os estudos sobre a cultura, porque são social e culturalmente expressivos. Tal como afirmaKealiinohomoku ([1970] 2001) ao analisar o ballet como dança étnica, toda a dança existe e comunica através dos corpos uma determinada realidade. Permanece por isso fundamental o reconhecer da especificidade da intenção e do contexto do movimento, porque ele representa uma forma do intérprete se reportar ao mundo.

Através da observação dos corpos e da consideração dos discursos que os bailarinos produzem sobre as suas práticas num determinado contexto, resultam mais clarificados os sentidos explícitos e implícitos da dança. À luz destas considerações, destacamos o estudo do movimento, pelo peso sociocultural e subjetivo que carrega, porque, mesmo se o corpo do bailarino é um corpo controlado e moldado pela técnica, ele é também feito de experiência e de cultura, junto com outros elementos que representam a base da dança de cada um, como veremos no seguinte capítulo, o “chão”, sobre o qual o bailarino dança, e que se expressa adaptado ao ser impactante sobre uma determinada realidade.