• Nenhum resultado encontrado

Papel das linhas na dança: desenhos de Petchu enquanto estudo de caso

Capítulo 4 Corpo e pensamento coreográfico

4.2 Papel das linhas na dança: desenhos de Petchu enquanto estudo de caso

“São linhas, linhas coreográficas corporais.” (Petchu).

Na sala, em casa de Petchu, quando percebo que a conversa está para terminar, levanto o olhar e observo dois quadros. São desenhos de corpos estilizados e pergunto de que se trata. Ele, olhando para mim, responde: “essa é outra forma que tenho de me expressar”. Dirige-se ao seu gabinete e traz uma pasta cheia de desenhos. Até para ele é difícil saber a multidão de desenhos, de coreografias e exercícios ali representados. Isso é a recolha dos quarenta anos da vida em que Petchu “anda na dança”, como ele fala. Explica-me que costuma representar em forma de desenho todos os movimentos; é a partir daqui que seu corpo começa a dançar.

Em muitos casos os próprios bailarinos elaboram sistemas de transcrição do movimento para criar e memorizar as coreografias. A partir desta forma de trabalhar surgiram sistemas de notação com códigos estabelecidos, entre os quais se destaca o método de Laban. O bailarino e teórico, Rudolf Laban elaborou, em 1928, uma anotação do movimento que seria uma representação esquemática plana, tal qual uma partitura musical; é um desenho da dança, chamado também de cinetografia ou labanotation. É um sistema de transcrição das transferências de peso, de deslocamentos no espaço, da figura coreográfica numa partitura vertical, parecida com um solfejo, onde a orientação do movimento é feita a partir do próprio bailarino e a partir da gravidade (Roquet, 2011, p. 7). Este sistema de escrita tem, contudo, algumas limitações:

“dada a sua complexidade e o longo período de aprendizagem a que obriga, é conhecido por pouquíssimas pessoas; salvo raras exceções, não é matéria de ensino-aprendizagem nas academias de dança; e se possibilita transportar para o futuro uma representação dos traços perdidos da própria dança, do próprio movimento, não permite, em contrapartida, captar o carácter singular de uma performance, o seu carácter único, ou seja, as subtilezas interpretativas associadas à vivência do corpo num tempo particular, nem as experiências concretas vividas pela sua execução.” (Fazenda, 2016 p. 53)

Por todas estas razões, vemos como este sistema não é utilizado por nenhum dos três bailarinos, em particular por causa da última limitação descrita por Fazenda, ou seja, o não permitir captar as unicidades da performance e, portanto, do movimento. Neste sentido acontece frequentemente que se os coreógrafos precisem de escrever e criar os seus próprios métodos e desenhos, como vemos em Petchu. O interesse pela dimensão qualitativa, no sentido de transferidor duma mensagem ou duma história, ou de qualquer coisa do corpo, é fixado por Petchu através da sua própria técnica de desenhos, que lhe permite de representar a dança da maneira particular na qual é pensada.

“O trabalho que tenho aqui é trabalho antigo, se olhares o papel”, afirma Petchu, que desde que começou a criar movimentos, começou a desenhá-los.

“São anos de estudo, muitos anos, da minha vida. Eu nunca tinha ido numa escola, fazer cursos nem nada, foi tudo muito natural, porque em Angola (onde ele morava) tinha uma escola de dança clássica, mas nem todos nós tivemos acesso àquilo… Eu acho que se tivesse ido lá, tivesse desviado disto. Não fui para lá e fui desenhando a minha vida. Comecei a fazer investigação, documentação histórica, a ver as imagens, contactos com outros grupos provinciais de dança, ver como os corpos dançam, como eles cantam, e tinha que arranjar uma maneira de memorizar… comecei a memorizar assim, com meus desenhos” (Petchu, em 5 de

Dezembro de 2018, em sua casa, Lisboa).

O desenho portanto, começou a ser utilizado por Petchu como ferramenta de memorização do que ele via, e se tornou também, a partir do momento em que o bailarino começa a coreografar, a primeira fase da criação, que lhe permite dar forma e reproduzir a dança por ele coreografada: “isso é como uma pauta, eu vou ensaiar isso aqui” (Petchu). Os desenhos elaborados por Petchu, muitas vezes apresentam, além dos movimentos, algumas referências musicais, ou estrofes inteiras, porque dança e música são frequentemente reproduzidas pelos mesmos corpos, de Petchu ou dos outros bailarinos, para os quais coreografa, que cantam acompanhando as percussões dos músicos. “As músicas, umas são rituais já existentes, outras somos nós que criamos consoante o que vamos dançar” (Petchu). Coloco aqui alguns dos desenhos de Petchu como ilustração de movimentos, coreografias e por vezes componente musical, junto com o seu discurso, que emergiu espontaneamente nas entrevistas, ao explicar esta forma de representação, sem explicitar totalmente a correspondência entre desenho e movimento

exato reproduzível, como forma de proteção do conteúdo coreográfico do artista, aprofundamento também que não é de particular relevância neste trabalho.

“Fomos fazer, o lançamento do rei Leão, do filme, na Expo. Camulango (palavra que esta escrita repetidamente no desenho) é uma forma de expressar o movimento da cintura, uma forma de rebolar, mas Camulango é também uma música” (Petchu).

18 Desenhos da teoria e metodologia de Mestre Petchu | Coreografia “Rei Leão” do Ballet Tradicional Kilandukilu | Lisboa | 2019 | © Alexa Ranaldo.

19 Desenhos da teoria e metodologia de mestre Petchu | Coreografia “Yambo Yambo” do Ballet Tradicional Kilandukilu | Lisboa | 2018 | © Alexa Ranaldo.

“Yambo Yambo é o título, essa aqui é uma coreografia de escola. A música é “Yambo”, então eu dei o nome Yambo Yambo” (Petchu).

20 Desenhos da teoria e metodologia de Mestre Petchu | Coreografia “Quotidiano” do Ballet Tradicional Kilandukilu | Lisboa | 2018 | © Alexa Ranaldo.

“Essa é uma dança, Kilandukilu, quotidiano, do dia a dia. Tudo o que faz parte da

21 Desenhos da teoria e metodologia de Mestre Petchu | Movimentos básicos da kizomba | Lisboa | 2018 | © Alexa Ranaldo.

“Eu transportei isso para kizomba. Criei também a kizomba como linhas para melhor explicar” (Petchu).

O bailarino aplica esta técnica de desenho, que chama de “teoria e metodologia de Mestre Petchu”, a toda a dança, a partir das danças tradicionais angolanas, às quais se dedica, até à prática da kizomba. Os desenhos de Petchu fazem-se dança, ou melhor a dança se faz também através dos desenhos. Só depois de terem sido desenhos, os movimentos passam para o corpo do bailarino, ou dos bailarinos para os quais coreografa, e, portanto, ao estágio de incubação, de ensaio e repetição no estúdio.

Refletindo sobre a relação entre o desenho e o corpo dançante, poderíamos dizer que no caso de Petchu, ele representa um possível começo da manifestação do movimento. Porém, o caráter efémero e transitório da dança e a imensa variedade de formas que os movimentos vão adquirindo, fazem com que o desenho seja uma ferramenta difícil para registrar o mover duma dança que está em contínua transformação. Por esta razão provavelmente este meio é utilizado apenas por um dos três bailarinos, confirmando a ideia que complexos e distintos elementos constituem a criação de um corpo dançante.