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PARTE III – Arte e agência: alguns elementos para comparação

3. Corpos e “roupas”

Outro tema que perpassa as abordagens de Van Velthem (2003), Lagrou (1998) e Barcelos Neto (2003) se refere à corporalidade, partindo da idéia de corpo como uma “matriz de símbolos e um objeto de pensamento” (Da Matta, Seeger, Viveiros de Castro, 1979). Em Van Velthem (2003) temos que pessoas e coisas são tidas pelos Wayana como “fabricadas” por uma mesma tecnologia. Objetos são seres corporificados, ou seja, representam corpos ou partes de corpos. O corpo humano, assim como um artefato, é fabricado não só no momento da concepção, mas durante toda a vida. Coisas e pessoas fazem parte do corpo de quem as produziu. Como vimos, para os Wayana, não só pessoas e coisas são “fabricadas”, mas a própria cultura é compreendida como algo a ser produzido cotidianamente. De forma semelhante, temos que, para os Kaxinawa, a arte é incorporada e os objetos são extensões do corpo, o que para Lagrou (1998: 168-9) explica o fato de as expressões estéticas mais elaboradas serem ligadas à decoração corporal, tais como a pintura corporal, a arte plumária, colares e enfeites feitos de miçangas, roupas e redes tecidas com motivos decorativos.

A construção do corpo entre os Kaxinawa é expressa também pela consubstancialidade alcançada pelo compartilhar de vida e comida e pelo contato corporal. Como vimos, nukun yuda, que significa “nosso corpo”, transmite a idéia de um corpo coletivo, construído e cuidado de um modo que é “nosso”. Outros povos também possuem seu corpo, mas é um corpo diferente. “Adotando-se um ponto de vista a partir da noção de corpo, o outro absoluto é um ser sem um corpo e sem um lugar próprio. Neste contexto, o morto é o outro real, assim como os yuxin, familiares do morto” (Lagrou, 1998: 155). Tendo em vista que os nawa (verdadeiros estrangeiros) não cultivam seus corpos como os huni kuin fazem – ou seja, compartilhando comida, fluidos, experiências, etc –, considera-se que seus corpos são diferentes e, por isso mesmo, não são nem designados corpos. Não há referência ao processo de crescimento da carne e do corpo dos nawa. Estes poderiam ser considerados como yuxin, já que vagam solitários e se alimentam de farinha de mandioca e café. Outro ponto destacado por Lagrou (1998: 209-343) diz respeito, na análise do ritual e da mitologia kaxinawa, à importância do corpo e da pele, que ao

serem pintados, marcados ou escondidos revelam e comunicam o estado de ser de um corpo para os outros seres.

No rito de passagem Nixpupima, a fabricação do ser envolve um lento processo de sucessivas intervenções sociais sobre o corpo e a identidade social dos jovens, o que também é apresentado nos rituais subseqüentes. Durante o Nixpupima, o corpo e a pessoa da criança são remodelados pelos esforços reunidos da comunidade, implicando a fabricação de um novo corpo. Essa fabricação não concerne somente ao físico do jovem, mas também à sua pessoa. “Enquanto a comunidade modela o corpo do jovem, está simultaneamente dando forma a hábitos e pensamentos. Neste sentido, nixpu dá estrutura ao corpo mas também fixa o nome da criança e o

yuxin do olho a ele associado” (Lagrou, 1998: 285).

Na análise dos cantos rituais (Lagrou, 1998: 295), a questão do corpo como artefato também aparece de forma destacada: o artefato humano, ou seja, o corpo do jovem iniciante é produzido da mesma forma como um artefato é produzido a partir de materiais provenientes da morte de pássaros ou do corte de árvores e plantas – o artefato humano também exige o sacrifício e a transformação de outros seres, caças e vegetais. Segundo Lagrou (1998: 319), o corpo do iniciante é o mais bonito dos artefatos, fabricado através das mesmas técnicas que outros produtos fabricados.

A reflexão sobre a corporalidade entre os Wauja implica a reflexão sobre a noção de “roupas”, os principais dispositivos para a transformação na cosmologia wauja, como nos mostram os afixos-modificadores dos conceitos-base -kumã, -iyajo, -mona e –malu. A diferença no interior do socius é moldada pela hierarquia, enquanto no exterior (entre os grupos) é moldada pela tecnologia, o que se estende, inclusive, para as séries não-humanas85. No entanto, como lembramos mais acima, do ponto de vista dos humanos, o princípio fundamental de diferença entre humanos e não-humanos não é a tecnologia, e sim o corpo. Assim, a diferença é centrada no corpo desde o tempo de Kuamutõ, se constituindo de pequenos detalhes como a ausência de umbigo e a diferença nas substâncias que produzem e formam os corpos. A diferença entre humanos e apapaatai/yerupoho é radicalizada, dada a condição patológica do corpo desses últimos.

Além de servir para o disfarce e para a adaptação a uma nova situação geocósmica, o uso de “roupas” abrange também a idéia de distribuição (expansão) da pessoa: no momento de

multiplicação da alma dos yerupoho, cada unidade está apta a vestir uma “roupa” e ser um agente patológico. Um dado yerupoho é um correspondente antropomorfo de uma dada espécie animal, que guarda as características desta espécie – seu corpo é, assim, uma unidade formal singular e prototípica para aquela espécie. Graças às suas potencialidades xamânicas, os yerupoho podem expandir a unidade subjetiva através da multiplicação da alma, ou seja, do princípio de subjetividade.

Barcelos Neto (2004: 72) segue o uso etnográfico do conceito de alma na Amazônia indígena, que, diferente de seu equivalente na filosofia e teologia ocidentais, postula o problema da imanência da alma (e não transcendência, como para o ocidente). As etimologias wauja apresentadas mostram que a alma é antes um “outro corpo”, porém com propriedades ligeiramente distintas “desse corpo”. Ainda assim, o valor ontológico do corpo é tanto anímico quanto o da alma é corporal. Barcelos Neto (2004: 72) recorre a Viveiros de Castro, que acentua, num contraponto à leitura tradicionalmente platonizante feita do dualismo indígena do corpo e da alma (em que aparência se opõe a essência), que deve-se privilegiar uma “interpretação dessas duas dimensões como constituindo o fundo e a forma uma para outra: o fundo do corpo é o espírito, o fundo do espírito é o corpo” (Viveiros de castro, 2002: 444 apud Barcelos Neto, 2004: 73). Por esse viés, Barcelos Neto (2004: 73) explica que o corpo dos yerupoho não muda – exceto se forem expostos ao sol –, o que muda são suas aparências, as “roupas” que vestem. O que está por baixo da “roupa” só pode ser identificado pelo xamã. Nesse sentido, a “roupa” é a síntese de uma ontologia da ambigüidade, possuindo a capacidade de instaurar dúvidas.

Na discussão sobre a relação alma/corpo, surge a questão da materialidade do espírito, na qual temos que o sonho (passeio) do doente e o transe do xamã revelam a condição material do mundo dos apapaatai/yerupoho. O que a alma do doente come – ou seja, comida crua – durante o passeio com os yerupoho/apapaatai será rejeitado por seu corpo e, através dos vômitos do doente, os xamãs identificam com quais apapaatai/yerupoho sua alma se encontra. Assim, o mundo dos “espíritos” não pressupõe imaterialidade. A noção wauja de alma humana pressupõe um duplo material/visual do corpo, que pode ser multiplicado enquanto imagem (como um fractal) e subtraído enquanto substância vital (o que implica em adoecimento). Como vimos na parte anterior, a alma humana sobrevive ao contato direto com os yerupoho/apapaatai, enquanto seu corpo morre, o que indica uma incompatibilidade dos corpos dos humanos e dos yerupoho, mas não a incompatibilidade das suas almas, ou da alma humana com o corpo dos yerupoho.

Outra questão apontada se refere à idéia de corpo como matriz visual absoluta da alma – a alma leva consigo as mesmas características do corpo em sua última forma para o post-mortem. Em um outro sentido de causalidade, as experiências da alma também repercutem no corpo, como quando a alma está em companhia dos apapaatai.