• Nenhum resultado encontrado

Os tempos que correm secam as palavras Tornam-nos introspetivos ou hiperativos de um modo que mal podíamos supor em Março de 2020 quando, de um dia para

outro, todos os cenários que previam mudanças societais se puseram em marcha.

Maria do Céu Baptista Consultora Cultural da Mútua dos Pescadores

Subtilmente, as pessoas perguntaram-se, embora só por uma milésima de tempo, se haveria esperança quan- do parecia não haver futu- ro. Alguns acordaram em sobressalto com a possibili- dade de uma anunciada ex- tinção da Humanidade. Isto caso a desintegração arras- tasse consigo não uma po- derosa reorganização e uma integração de novos valores comuns, mas a confirmação de vidências antigas que declaravam a queda e a de- sintegração total, tal como a que aconteceu recentemen- te, em tempo planetário, ao Império Romano.

Quando os especialistas desenham modelos para a mudança da sociedade con- temporânea há sempre um primeiro momento em que se perde a fé no sistema in- dustrial e as crises pioram.

A reação mais comum tem sido a libertação pelo próprio sis- tema de recursos económicos e humanos com o fim de apoiar soluções de retoma. Na verdade, dizem também, nem todas essas retomas são inclusivas e muitos recursos e tempo são esbanjados em soluções ego e etno-centradas, e por tanto exclusivas por natureza, e sem qualquer interesse em termos planetários. Se a sociedade não estiver preparada para se to- lerar (sentir mas não reagir/sentir e agir em consciência com a sua responsabilidade, regressando a um lugar de calma) e se os valores não sustentáveis ganharem, o que postulam é o acelerar da desorganização sobretudo pela intensificação de conflitos provocados pela escassez e desumanidade. O fim ci- vilizacional global é, em geral, mais rápido do que o expetável. Interessa para este texto aclarar a importância do continuado trabalho de Bruno e Teresa em prol da cultura costeira, a partir

de Vila Chã, agregando ago- ra uma dimensão que mui- tos têm evitado colocar: a tomada de consciência das comunidades costeiras pode e faz sentido vir da expe- riência da praia, através das pessoas que amam a praia, a respeitam e têm uma fé inabalável no desenvolvi- mento de visões susten- táveis comuns. Para essas pessoas contribuir com o melhor de si é o processo de aprendizagem mais rico que os afasta da crítica mordaz e os ancora num coração quantas vezes fechado, por circunstâncias dramáticas ou sombrias, a sete chaves, mas sempre pronto a irrom- per em beleza, força e co- ragem.

A praia, a nossa praia, é uma obsoleta vitrina de práticas e objetos, valiosos, que testemunham desejos, consumos constantes insustentáveis, um Wasting Away, que deu título a um livro, já em 1990, que nos faz pensar duas vezes sobre os nossos maus hábitos.

Evidências que lhes importou observar, coletar em cada ca- minhada, ao mesmo tempo que se deixavam observar, cada vez que se baixavam, recolhiam ou guardavam essas coisas pequenas. Isso permitiu-lhes interrogarem-se sobre as suas práticas através de cada um desses olhares cruzados ou pala- vras sussurradas, que o vento lhes trouxe sobre eles próprios. Nós e a comunidade confundidos numa memória, divergen- tes numa ação? Espelhando-nos mutuamente? Suspendendo julgamentos? Atuando a partir da pura necessidade de tomar consciência? Será isto possível?

Os objetos que nasceram desta atividade remetem para a praia, aquele mar de Experiências e seus eventos, aquelas Fotografia: Anzol sob o Céu sombrio

Fotografia a cores de objeto construído com lixo recolhido na Praia, para a empresa Barbeau, firma portuguesa de design e moda, sediada no Porto, que cria vestuário a partir de lixo recolhido por pescadores.

Junho’21 41

caminhadas, aqueles usos, costumes e atividades, para as no- vidades importadas ou à mão de semear, para as vivências e consumos locais ou de sabe se lá de onde. Remetem em primeira instância pela matéria-prima do encontrado, pela sa- bedoria ou curiosidade do gesto da mão, por uma atração pela forma, cor ou brilho. Mas na forma e dimensão final falam a uma comunidade que pode falar com eles através de outros essenciais que advêm da relação que tiveram com a natureza das coisas representadas.

Incluir e transcender são palavras caras quando se quer cons- truir soluções sustentáveis ou perspetivar transições baseadas na coragem e no compromisso. O Bruno e a Teresa, desta vez, preferiram moldar o futuro com consciência e ética sabendo que a ignorância vive por natureza na ausência delas. Posicio- naram-se como aliados ativos que defendem o bem comum e para a necessidade de evitar danos e todos os riscos que a eles conduzem. Com as decifráveis palavras impressas nos objetos que recolhem ajudam-nos a datar e a perceber o lado escuro e criminoso das nossas práticas recentes e sobretudo falam-nos do desejo de uma vida para além do sustentável e como isso levou ao consumo descartável.

Nota: “Beachcombing” é uma palavra que já aparece em inglês no século XIX (Melville usa-a em Omoo, 1840) significando a actividade de alguém que percorre as praias do Pacifico do Sul em busca de conchas ou despojos trazidos à praia. A palavra “comber” tem raiz em “cembant” que significa examinar de perto.

Fotografias Jacques Costeau; Anzol e a consciência do futuro; Oceana Fotografias a cores de objetos construídos com lixo recolhido na Praia. © Bruno Costa, Vila Chã, 2020/2021 (fotografia e objetos)

Assim: o que é o lixo na praia, como acontece, porque nos inco- moda, apavora ou desafia e que podemos fazer de melhor por ele ou com ele resulta de um processo com o qual os dois fun- dadores de Mar de Experiências, agora em versão beachcomber (*) se confrontaram.

Em uníssono, com uma consciência ecológica que a forçada pausa pandémica nos impele a considerar, e com um olhar compassivo para com a comunidade humana produtora de tal desperdício, Vila Chã, sem o brio e brilho da pesca do bacalhau, olhando a diminuição diária da pesca local faci- litada pelo abate de embarcações e modos de vida menos arriscados, Vila Chã, um lugar voltado ao mar ou às bouças, de fixação de sobreviventes, de novos urbanos saudáveis que o metro leva e traz diariamente ou veraneantes de fim de semana em alojamento local ou em melhores moradias que a mudança de propriedade proporciona, Vila Chã oferece-se a todos para reflexão individual e sobre o enorme umbigo do mundo.

Tudo com uma certa candura e uma certa doçura quase que anunciando aos menos conscientes: A destruição, sabem,