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1 O MISTÉRIO DA IGREJA: ELEMENTOS ECLESIOLÓGICOS DA

2.1 O DEBATE ATUAL SOBRE A NATUREZA DO DIREITO CANÔNICO

2.1.3 A corrente jurídica

A terceira e última corrente principal da ciência do direito canônico pós- conciliar insiste no fato de que o direito canônico é verdadeiro direito. Essa tese inicial é, contudo, genérica. Presta-se às mais variadas interpretações se o modo de entender o direito não for esclarecido. Mesmo que existam outros autores que compartilhem com várias tonalidades da mesma concepção, para apresentar esta tendência escolheu-se a doutrina de Pedro Lombardía (1930-1986) e de Javier Hervada, porque esses canonistas, devido à amplitude e profundidade de suas propostas gerais sobre vários campos e níveis do conhecimento canônico, são cofundadores de uma autêntica escola canônica: a escola de Lombardía, assim denominada porque Lombardía foi mestre de Hervada.

As características dessa escola são descritas por Hervada75. Primeira: a

visão jurídica, daí a definição “ser canonista é ser jurista”. Segunda: a pureza metódica formal. Terceira: o método sistemático com a divisão em ramos do saber canônico. O professor Hervada parte da proposição de que o direito canônico é verdadeiro direito. Admitido o pressuposto, seguem as consequências. Quem estuda o direito canônico é verdadeiro jurista. A técnica e o método da ciência do direito

74 Cf. ROUCO VARELA, Teología y derecho, p. 240.

canônico devem ser jurídicos. A expressão “técnica jurídico-canônica”, no entanto, não deve ser confundida com formalismo legalista. O direito e a realidade social da Igreja são dois agentes inter-relacionados: “se é certo que a realidade social deve amoldar-se à estrutura jurídica, também é certo que a estrutura jurídica deve amoldar-se à realidade social”76. Ora, é precisamente a teologia que nos descreve a

realidade da Igreja (a sua natureza sacramental, a vocação batismal dos fiéis cristãos, a colegialidade episcopal e assim por diante). Por essa razão, sem teologia não é possível estudar a ciência canônica, nem desenvolver adequadamente a sua atividade. Ser canonista não é ser teólogo, mas sem teologia não se pode ser canonista. A partir daí, se entende também a dimensão pastoral do direito canônico. Legislar é parte da função do bom Pastor. Quem interpreta as leis deve ter em conta as exigências pastorais. Eclesiologia, pastoral e direito canônico são três ciências com o mesmo objeto material: a Igreja.

Estudar a ciência do direito canônico não significa apenas se ocupar de matérias canônicas, mas fazê-lo com método próprio. Ora, os dois pressupostos do método jurídico-canônico são o critério jurídico e a pureza metódica formal. A pureza no método permite a constituição de um saber canônico em toda a sua autenticidade e salvaguarda o canonista dos vícios: o teologismo, o pastoralismo e o juridismo77. O adequado método canônico é aquele que permite determinar o justo na Igreja. Hervada propõe rigor metódico formal. O termo formal quer dizer duas coisas. Por uma parte, significa não total, não excludente, não separado das demais ciências, porque a ciência do direito canônico necessita dos dados das demais ciências, principalmente da teologia. Por outra parte, significa que esses dados devem ser elaborados de acordo com a formalidade própria da ciência canônica a fim de se alcançar uma solução jurídica do problema.

A distinção em ramos do conhecimento canônico está relacionada também com o método. Ela permite entender e aplicar adequadamente os princípios contidos no CIC 1983: o da igualdade na dignidade de todos os fiéis cristãos, o da

76 Cf. HERVADA, Coloquios propedéuticos sobre el derecho canónico, p. 24.

77 Teologismo, processo de substituição dos conceitos jurídicos pelos teológicos. Pastoralismo,

processo de substituição dos recursos práticos do direito canônico pelos recursos práticos próprios da ciência pastoral. Juridismo, concepção que se limita exclusivamente ao aspecto jurídico, como se esse bastasse para a vida da Igreja, cf. HERVADA, Coloquios propedéuticos sobre el derecho

diversidade de carismas e funções, o da legalidade e assim por diante. A não diferenciação, ou a inadequada distinção em ramos na construção da ciência canônica, limita as possibilidades de tais princípios. E, consequentemente, diminui a vitalidade de instituições ou institutos canônicos herdeiros do ensinamento do Concílio Vaticano II, não apenas os organismos colegiais e a vida associativa, mas principalmente os direitos dos fiéis cristãos e as funções da hierarquia eclesiástica como serviço ao povo de Deus. De acordo com Hervada78, os ramos do saber

canônico são o direito constitucional, o direito da pessoa, a organização eclesiástica, o direito administrativo, o direito penal e o direito processual.

Com relação à noção de direito adotada sucessivamente por Lombardía e Hervada, num primeiro momento ambos empregam o conceito de ordenamento, herdado da ciência jurídica secular mediante a ciência canônica laica italiana79. Os dois canonistas procedem a um trabalho de reinterpretação, ao ressaltar a juridicidade do direito divino e ao superar o positivismo jurídico, definindo, a partir disso, o direito canônico como “estrutura da Igreja”. Segundo Hervada80, o

ordenamento canônico deve ser concebido como estrutura jurídica da Igreja: um sistema de relações jurídicas, mais do que um conjunto de normas.

Em um segundo momento, sob o ponto de vista da concepção do direito, aconteceu uma mudança muito significativa no pensamento de Hervada81. Tal alteração se deu graças ao seu contato com a tradição tomista e se reflete nas suas obras mais recentes82. Trata-se da redescoberta do direito como objeto da virtude da justiça, isto é, do direito como aquilo que é justo. Direito é a realidade, que sendo própria de um sujeito, lhe é devida por outro. Tal realismo jurídico foi aplicado pelo professor espanhol ao direito da Igreja, concebendo-o, por fim, como aquilo que é justo na Igreja83.

78

Cf. HERVADA, Coloquios propedéuticos sobre el derecho canónico, p. 64.

79 Sobre a escola laica italiana ou dogmático-jurídica, veja-se CATTANEO, Fondamenti ecclesiologici

del diritto canonico, p. 43-45.

80 Cf. HERVADA, Introducción al estudio del derecho canónico, p. 35.

81 Cf. ESCRIVA IVARS, Relectura de la obra científica de Javier Hervada, parte II, p. 579.

82 Cf. Coloquios propedéuticos sobre el derecho canónico. Pamplona: EUNSA, 1990. (2.ed. 2002). 83 Cf. ERRAZURIZ, Il diritto e la giustizia nella Chiesa, p. 88.