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O DIREITO CANÔNICO NA VIDA DO CRISTÃO E DA IGREJA

1 O MISTÉRIO DA IGREJA: ELEMENTOS ECLESIOLÓGICOS DA

3.5 O DIREITO CANÔNICO NA VIDA DO CRISTÃO E DA IGREJA

Frequentemente se pensa que o direito canônico interessa exclusivamente aos canonistas, ou seja, aos especialistas na ciência e na técnica jurídico-eclesial. A necessidade de especialização nessa área, como em tantas outras na vida da Igreja, está fora de questão, mas não se deve perder de vista que o direito canônico é uma realidade eclesial que, por sua própria natureza, interessa a todo fiel cristão. Sob vários aspectos, o fiel cristão desempenha uma função de protagonista no direito canônico. O fiel cristão deve ser justo em seu agir eclesial. Deve respeitar os direitos dos demais: em primeiro lugar, o de viver na comunhão eclesial e de exercitar a sua legítima autonomia na Igreja.

O fiel cristão é titular de direitos inerentes a sua condição de batizado (cf. cânones 208-223 do CIC 1983). Às vezes se teme que esses direitos sejam entendidos na forma de contraposição com as exigências da comunhão eclesial e da constituição hierárquica da Igreja. Tal orientação pode ser favorecida por uma visão do direito como faculdade de exigir (direito subjetivo), sem vinculação com o objeto que o fundamenta. Diversa, no entanto, é a visão do realismo jurídico: a exigibilidade da parte do titular do direito é apenas uma consequência do débito, não o elemento constitutivo do direito. O direito é aquilo que é justo. Ser justo com relação aos outros e à Igreja é uma exigência moral e jurídica de todos os fiéis cristãos. Os atos injustos do fiel cristão afetam os vínculos de comunhão que o ligam à Igreja (palavra de Deus, sacramentos e regime eclesiástico) e, por consequência, a relação com os bens da salvação. O direito canônico, entendido como aquilo que é justo na Igreja, está em função da salvação da pessoa (cf. cânon 1752).

A Igreja busca não somente assegurar a justiça em seu interior, mas também a salvação de todos. É necessário, porém, evitar confusões entre direito e moral, entre justiça e caridade. A visão jurídica examina os problemas sob a perspectiva daquilo que é externamente justo. As exigências do bem moral superam amplamente as jurídicas. O amor significa doação generosa de si mesmo, que vai muito além dos direitos dos demais. A caridade, porém, não elimina a justiça, mas deve informar o conjunto da vida do fiel cristão e da Igreja, inclusive o modo de viver a justiça. A justiça, no interior da Igreja, como toda virtude, deve ser animada pela

caridade. O ser justo na Igreja é um aspecto da vocação do fiel cristão à santidade e ao apostolado134.

A justiça intraeclesial se insere, como uma dimensão intrínseca, no conjunto da vida da Igreja. O direito está muito ligado ao poder de governo, mas não se identifica com ele. As funções de legislar, administrar e julgar, constituintes do poder de regime, são certamente extremamente importantes no âmbito canônico. As leis eclesiásticas determinam direitos e deveres dos fiéis cristãos, os atos administrativos fazem com que o governo incida sobre as situações concretas, as sentenças dos tribunais eclesiásticos declaram o que é justo ou estabelecem sanções. O caráter jurídico dessas funções, porém, se fundamenta não tanto sobre o poder de regime, quanto sobre a conexão entre tal poder e os direitos dos fiéis cristãos. As funções de legislar, administrar e julgar são jurídicas na medida em que concorrem para configurar e tutelar os direitos das pessoas e das instituições na Igreja. Com relação aos direitos dos fiéis cristãos, é importante destacar inicialmente duas coisas. Primeira: os direitos dos fiéis cristãos dependem essencialmente do direito divino. Segunda: neles, a liberdade tem um papel relevante. Os fiéis cristãos livremente contraem matrimônio, seguem outras vocações na Igreja, se associam e escolhem onde e como participar dos bens da salvação.

Pela primeira vez na história da legislação canônica, o CIC 1983 (e também o Código oriental) contém uma declaração de direitos e deveres dos fiéis cristãos. Essa novidade legislativa é um dos frutos da redescoberta da condição de fiel cristão, condição comum prévia à de clérigo, leigo ou religioso. Essa redescoberta se deu graças à eclesiologia do Concílio Vaticano II. A condição de fiel cristão é uma condição de dignidade e liberdade, própria da pessoa humana com a específica qualificação transmitida pelo sacramento do batismo. Da condição ontológico- sacramental deriva a condição jurídica, que converte o fiel cristão em sujeito de direitos e deveres, com uma esfera de liberdade e autonomia. Os fiéis cristãos, incorporados a Jesus Cristo pelo batismo, constituídos como povo de Deus e, assim, feitos participantes do múnus sacerdotal, profético e régio do Senhor, são chamados a exercer no mundo a missão que Deus confiou à Igreja (cf. cânon 204).

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O elenco dos cânones que constituem o estatuto jurídico do fiel cristão termina com uma referência à regulação e aos limites do exercício dos direitos e deveres. O cânon 223 tem origem na Declaração conciliar sobre a liberdade religiosa (cf. DH 7) e considera o bem comum como critério geral que deve ser levado em conta, tanto na regulação do exercício dos direitos por parte da autoridade eclesiástica, quanto no próprio exercício desses direitos por parte do fiel cristão. Antes de tudo, esse dever de observar o bem comum se concretiza na obrigação de cumprir a comunhão com a Igreja (cf. cânon 209), porque a communio é o bem comum próprio e específico da Igreja135.

O governo da Igreja inclui também muitos aspectos que são distintos das funções estritamente pertencentes ao poder de regime. Em todos os níveis, mas especialmente na Igreja particular, o governo comporta ações de planejamento, promoção e avaliação que, por sua vez, exigem o uso de múltiplos meios, como, por exemplo, o diálogo pessoal, a reflexão em equipe e a comunicação institucional136. É preciso gerar um ambiente de confiança recíproca em vista do bem comum da Igreja. Trata-se de trabalhar conjuntamente pelo reino de Deus. Os próprios pastores são destinatários, enquanto fiéis cristãos, do cuidado pastoral da Igreja. Isso se opõe a qualquer concepção que contraponha dialeticamente hierarquia eclesiástica e liberdade dos fiéis cristãos. Além disso, a vida da Igreja, enquanto instituição, deve se reger sempre pela justiça animada pela caridade, não apenas no que se refere aos bens da salvação (a palavra de Deus e os sacramentos), mas também no âmbito dos bens ligados à vida humana natural (especialmente a saúde e a educação). A ação da Igreja se abre a todas as pessoas que se encontram em necessidade, principalmente os mais pobres. A promoção da dignidade da pessoa humana é aspecto essencial da missão da Igreja no mundo.