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A CORRUPÇÃO E A SUA RAIZ MORAL

Iniciaremos a nossa reflexão a respeito da interpretação do problema da corrupção, com Pocock e a sua obra El Momento Maquiavélico. Esta foi de grande impacto e

pioneirismo na reflexão sobre o republicanismo de Maquiavel, como apontamos inicialmente. Pocock (2008), ao abordar o pensamento republicano do secretário da república florentina, procura analisar qual a contribuição de Maquiavel para aquela etapa histórica. Para realizar essa tarefa, o autor recorreu às seguintes obras: O Príncipe, Os Discursos e a Arte da Guerra.

Antes de desenvolver a reflexão sobre a maneira como Pocock viu o problema da corrupção em Maquiavel, faremos uma pequena ressalva sobre a opção metodológica do autor para compreender o pensamento político de Maquiavel. Pocock busca compreender o pensamento político de Maquiavel a partir do impacto que as suas obras, ou mesmo o seu pensamento político, causaram à época histórica em que o autor está inserido.

Pocock, na passagem abaixo, orienta os leitores na maneira como abordará a reflexão sobre o que ele chama de “Momento Maquiavélico”, em que diz que não se trata de uma história de Maquiavel, nem de uma apresentação histórica do autor, mas sobre o contexto em que está inserido e sobre o seu papel em tal contexto:

El empeño de este libro es intentar aislar el “momento maquiavélico”: es decir, aislar una secuencia en el proceso continuo de la historia del pensamiento que nos parece el contexto más prometedor para tratar la contribución de Maquiavelo a aquella etapa histórica. (POCOCK, 1975, p. 271)

Podemos fazer ressalvas à opção metodológica de Pocock no sentido em que o impacto do pensamento de Maquiavel àquela etapa histórica, que corresponde ao tempo de sua vida, não teve relevância. Este impacto das obras de Maquiavel, em sua própria historicidade, não poderia ser medido levando em consideração apenas o estudo das ideias do autor. Portanto, esse impacto não poderia ser medido apenas do ponto de vista daquilo que foi escrito pelo autor, mas, sobretudo, pela recepção de suas ideias por parte dos seus próprios contemporâneos.

Esse olhar, de como as obras de Maquiavel foram recepcionadas em seu tempo de vida, não emerge da reflexão de Pocock, pois este pensador se preocupa apenas com os textos políticos que foram escritos por Maquiavel; estes, por si só, não são suficientes para medir o efeito de suas ideias naquela etapa histórica. Portanto, ao contrário de Pocock, não acreditamos que o pensamento de Maquiavel tenha sido relevante em sua aplicação, durante o seu tempo de vida. Pocock, estudando apenas o pensamento de Maquiavel, não se coloca a possibilidade de pensar a relevância da história de vida desse autor para compreender o seu próprio pensamento.

Maquiavel, com as suas reflexões políticas, estava respondendo aos problemas da sua existência vivida, aos sonhos diurnos de construção de uma vida feliz, porém as suas obras não causaram, nesse período, o impacto que causariam na história posterior das sociedades humanas. Podemos dizer que algumas dessas obras circularam apenas em forma de manuscritos. Francesco Vettori, amigo do secretário e primeiro leitor do Príncipe, foi incapaz de reconhecer o valor da obra ainda em forma de manuscrito. Na mesma condição de manuscrito, ao recebê-lo de presente, Lourenço de Médici deu mais atenção a um casal de cães dinamarqueses, que havia recebido também de presente, do que àquela que, posteriormente, seria uma das obras mais lidas da história humana.

A obra Os Discursos, também em forma de manuscritos, ficou restrita aos leitores dos jardins Ruccellai, onde ocorriam debates republicanos, em meio à atmosfera de intolerância política da cidade, em virtude do retorno da dominação dos Médici. Apenas a Arte da Guerra e a Mandrágora foram publicadas em seu tempo de vida. Quanto às outras obras, não estava certa ainda a sua publicação em forma de livro para a posteridade, com exceção da História de Florença, que possuía a sua publicação garantida41.

Quem dera os contemporâneos de Maquiavel o tivessem escutado e, de alguma forma, algumas de suas ideias pudessem ter sido praticadas naquela conjuntura política! Talvez a república florentina encontrasse outra sorte melhor. Afinal de contas, quando o nosso autor esteve mais próximo de concretizar os seus pensamentos, ao colocar em prática a construção do exército popular florentino – a fim de sanar a ruína certa das repúblicas italianas de se recorrer aos exércitos mercenários, como costumava fazer Florença –, foi insuflado contra ele o ódio e a desconfiança das famílias ilustres de cidade. E com a derrocada da república, em 1512, o que se segue é o forçoso isolamento do nosso autor e a impossibilidade de

41 Sebastián De Grazia sintetiza a situação das obras de Maquiavel em seu tempo de vida, dando-nos a ideia das dificuldades por que passaram até chegar entre nós. Maquiavel possuía consciência da existência dos leitores dos seus livros e manuscritos naquela conjuntura política, ainda que fossem poucos, e que muitas vezes não reconhecessem a grandiosidade dos manuscritos que folheavam. Mas, é preciso que se diga que o surgimento da imprensa em Florença encorajava novos esforços e possibilidades para os jovens escritores como Maquiavel: “Em Florença, a imprensa nasce na época em que Niccolò vê pela primeira vez a luz do dia. Mesmo quando rapaz, ao começar a escrever, já pensa na edição de suas obras. Tem sucesso inicial com o poema intitulado a

Primeira decenal.O Príncipe e os Discursos não são publicados em vida, embora circulem cópias manuscritas.

As referências cruzadas nas duas obras indicam que Niccolò acredita que ambas estão sendo lidas e que circulam em manuscrito ou impressas ainda durante algum tempo. O texto integral de Mandrágora é concluído, encenado e impresso no prazo de um ano. A primeira edição, simples, é publicada por um pequeno e desconhecido tipógrafo florentino. Poucos anos depois, a Arte da Guerra é impressa na edição cuidadosa dos herdeiros de Filippo Giunta, numa transação que foi promovida pelos jovens patrícios dos Orti. Nosso teatrólogo e especialista militar pode ser otimista em relação ao historiador: as Histórias Florentinas, subsidiadas pela clemência de Clemente VII, não teriam problemas para ser editadas e ‘entendidas melhor e a qualquer tempo’.” (GRAZIA, 1993, p.384)

vivenciar a atmosfera da vida pública que tanto amava. Fatos como esses não são relevantes para compreender o pensamento político de Maquiavel, conforme a opção metodológica de Pocock. Para este autor, a compreensão do problema da corrupção, a partir da tese de que o fundamento moral é o aspecto mais importante que foi desenvolvido por Maquiavel em suas reflexões sobre o tema, tem seu alicerce numa concepção da natureza do homem.

O autor analisa o problema da corrupção, em Maquiavel, partindo de uma concepção desta como sendo algo natural e inevitável, para construir uma concepção de fundamento moral, única capaz de colocar amarras e retardar o processo natural da corrupção. Pocock (1975) entende que, para Maquiavel, a corrupção surge a partir de um processo de decadência moral, impossível de resistir, onde a “matéria” da república – ou seja, os cidadãos – mostra-se contrária à “forma” das ordenações políticas e instituições do governo.

Na medida em que a ordem institucional se encontra enraizada na ordem moral, e esta se encontra corrompida, a boa ordem e as boas leis são incapazes de produzir o bem comum. Pelo contrário, aprofundam a ruína do governo republicano. Pocock, nesta passagem, aponta a inevitabilidade do processo da corrupção, que uma vez que entra em marcha, não pode mais ser parada.

Los mecanismos institucionales pueden reforzarse y renovarse y están en condiciones de prevenir los síntomas de la corrupción cuando ésta realmente todavía no ha comenzado, pero una vez que la corrupción ha comenzado posiblemente resulten impotentes. [...] Lo que sucede a medida que se desarrolla la corrupción, nos dice Maquiavelo, es que la materia sufre una mutación y la razón que hace que las viejas leyes pierden su eficacia cuando esto ocurre, es que una misma forma no puede ser impuesta de la misma manera a una materia diferente, como tampoco puede ser extraída de ella. (POCOCK, 1975, p. 293)

Para Pocock (1975), o problema da corrupção, em Maquiavel, não poderia ser entendido apenas como um prolongamento da fortuna; ou seja, como o prolongamento de uma sucessão irracional de atos que ferem a norma estabelecida. Porém, a despeito desta interpretação, podemos dizer que não há passagem, nas obras de Maquiavel que foram estudadas, que relacionem a análise da corrupção ao prolongamento da fortuna. Mas, uma vez trazendo a questão de Pocock para o plano moral, em que a compreensão desse autor busca fundamentar a explicação da corrupção em Maquiavel, podemos dizer que essa corrupção se realiza como decadência moral da matéria da república. Neste sentido, o que acontece é uma transformação moral da matéria da república; os cidadãos – neste caso, enquanto matéria corrompida da república – transformam as leis dessa forma de governo, que até então eram

boas, em maléficas, incompatíveis com a matéria moralmente corrompida, na nova situação em que se encontra a república.

Analisando o capítulo 17 do livro primeiro dos Discursos, Pocock vai afirmar que, para Maquiavel, a única raiz da corrupção é moral; que esta não possui outra causa que não seja a imoralidade generalizada dos homens. Enquanto os homens forem moralmente bons, as leis aplicadas a eles serão boas. No momento em que os homens se tornam moralmente maus, corruptos, as ordenações e as leis deixam de ser boas.

Para Pocock, quando o autor faz ressalva à existência, na cidade, de uma acentuada desigualdade entre os homens, como uma das causas da corrupção, essa desigualdade não pode ser interpretada como uma diferença de riqueza entre eles, mas, sobretudo, como uma desigualdade moral entre os cidadãos. Estes, moralmente desiguais, constituem a matéria corrompida da república. Seguindo esse raciocínio, Pocock, em El Momento Maquiavélico, abordando o tema da desigualdade moral como única geradora da corrupção, legou-nos a seguinte reflexão:

Pero si lo dicho constituye una manifestación del aumento de la “desigualdad” (inequalità), un término que em Maquiavelo no implica ni desigualdad em la riqueza ni em la autoridad política — no hay razones para suponer que Maquiavelo tuviera objeciones contra ninguna de las dos — sino una situación em la que algunos hombres dirigen su atención a otros hombres (los

particulari de Guicciardini) cuando debieran dirigirla al bien e a la autoridad

pública. [....] La corrupción surge del ascenso de las facciones y de la aparición de ciudadanos poderosos como a sus clientes; por el momento y ateniéndose a este ejemplo, sus raíces son exclusivamente morales: un cambio a peor en las costumbres romanas. (POCOCK, 2008, p. 203)

A passagem dos Discursos, sobre a desigualdade geradora da corrupção, é a razão de interpretações diferentes e, por vezes, contraditórias a respeito da sua natureza; encarada como desigualdade moral, política ou mesmo econômica. Evidentemente, precisamos reconhecer que o aspecto moral é relevante, no pensamento político de Maquiavel, para pensar a corrupção, mas Pocock quer atribuir a esse aspecto o papel de maior importância, o de único gerador da corrupção e, também, o único capaz de lhe impor freios e retardar o seu processo.

No entanto, não percebemos, nos Discursos de Maquiavel, ou em outras obras abordadas, essa hierarquia valorativa como o aspecto fundamental no autor para se pensar o problema da corrupção política. Não há esse aspecto fundamental, pelo contrário, a perspectiva que iremos desenvolver é a de que Maquiavel constrói, ao mesmo tempo, uma

leitura “realista” e outra, “moral”,42 no sentido valorativo a respeito do problema da corrupção política.

Podemos dizer, de antemão, que temas como o da corrupção natural inevitável, o aumento da riqueza privada, as ordenações e as leis, estão relacionados a uma concepção mais realista a respeito da corrupção em Maquiavel; enquanto os temas como a religião e a educação estão situados numa dimensão mais moral a respeito do problema. Neste sentido, nenhuma dessas esferas se sobrepõe à outra, enquanto leitura que se pretende capaz de compreender e superar o fenômeno da corrupção, apesar da maioria dos discursos do autor apontar para uma leitura realista e não moralista a respeito da geração da corrupção.

E quando apontamos a possibilidade deontológica, na perspectiva de ir além da mera compreensão dos fenômenos históricos que caracterizam a corrupção, para a superação desse mal que afeta os governos republicanos, tanto as leituras realistas, bem como as de caráter moral, são indispensáveis ao secretário para a superação de tal problema; construir os remédios adequados à doença da corrupção, como veremos melhor no próximo capítulo.

Pocock dá continuidade à sua análise da corrupção abordando a república popular dos cidadãos guerreiros, e procura desenvolver a ideia de que todos os cidadãos guerreiros necessitam de sua autonomia econômica para não se tornarem clientes de outros que são poderosos, vindo dessa forma a se corromper e corromper a república; argumento estranho que parece contradizer a perspectiva que o autor desenvolveu sobre a corrupção, em Maquiavel, de que o aumento da riqueza privada e da desigualdade entre os homens não têm importância na explicação da corrupção, pois esta é fundamentalmente de cunho moral.

Para o autor, Maquiavel não explica como a corrupção nasce nos cidadãos guerreiros de Roma Antiga. Segundo Pocock, quando se quer colocar como evidente o surgimento de uma sociologia da liberdade, que procura abranger uma concepção do papel das armas na sociedade e do viver civil, “El concepto de corrupción tienda a reemplazar el carácter meramente aleatório de la fortuna.”(POCOCK, 1975, p. 298). Novamente, o problema dessa afirmação de Pocock é que ela não se referencia naquilo que foi dito por Maquiavel,

42 Norberto Bobbio, em sua obra O Filósofo e a Política, discute as relações entre filosofia política e ciência política; e, a partir do conceito de filosofia empregado, as relações entre ambas as formas de conhecimento se modificam. Quando seguimos o raciocínio de Bobbio (2003), que toma como parte das relações entre ambos o seu sentido de diferenciação, podemos dizer que Maquiavel, ao tratar o tema da corrupção, posiciona-se tanto como cientista político quanto como filósofo da política. Sobre a relação entre ambas, segue Bobbio: “Observando esses diferentes tipos de relações, pode-se fazer mais uma consideração: mantendo firme o caráter não valorativo da ciência política (ou a ciência não é valorativa ou não é ciência), a maior distância entre a filosofia política e a ciência política aparece ali onde a filosofia política assume um caráter fortemente valorativo.” (BOBBIO, 2003, p.61)

pois não há, no autor, uma única passagem que afirme este ponto de vista, como mostra Bignotto.43

Além do mais, a perspectiva de Pocock tem o efeito de supervalorizar, em Maquiavel, a concepção de natureza humana como fundamento para explicar tanto a geração da corrupção, como a sua superação. Mas, em Maquiavel, a concepção da natureza humana não é determinante nem para compreender a geração da corrupção e nem mesmo para fundamentar os remédios para a sua superação.

No capítulo V do livro terceiro de História de Florença, ao lembrar aos florentinos os malefícios provocados pelos conflitos facciosos, para que estes pudessem lhes servir de remédios para curar os conflitos que inflamavam a cidade no presente, o nosso autor vai condenar aqueles que responsabilizam a natureza humana como a responsável pela corrupção reinante na cidade; em vez de prestar atenção na ação dos tempos, pois estes é que mudaram. E a cidade, diante da mudança dos tempos, só poderia adquirir melhor fortuna construindo novas ordenações. A passagem abaixo, que será explorada no capítulo a seguir, possibilita uma reflexão de como Maquiavel encarava a natureza humana:

E, embora a corrupção nela seja grande, debelai agora essa doença que nos aflige, essa raiva que nos consome, esse veneno que nos mata; e não imputeis as antigas desordens à natureza dos homens, mas aos tempos; e, como estes mudaram, podeis esperar melhor fortuna para vossa cidade, por meio de melhores ordenações. (MAQUIAVEL, 2007b, p. 168)