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REPÚBLICA E GOVERNO MISTO

Partindo do que foi dito acima, podemos afirmar que um ponto de vista elucidativo, portanto, será compreender a opção de Maquiavel pela república romana, articulada ao sonho diurno do autor, de unificação política da Itália. Para o nosso autor, a república romana seria a mais adequada a essa finalidade histórica e, por isso mesmo, deveria ser imitada. Para justificar a sua opção, podemos começar falando do tema das repúblicas de caráter misto, aquelas que salvaguardam, ao mesmo tempo, na sua constituição, três formas de Estado – o principado, os optimates e o popular29.

Maquiavel havia compreendido, com o estudo da história das repúblicas, que aquelas mais duradouras, que preservaram a liberdade política dos cidadãos por mais tempo, eram repúblicas de caráter misto. Entre os seus exemplos, podemos fazer referência à experiência histórica das repúblicas de Esparta, Roma e Veneza. Esta última, no tempo de Maquiavel, já possuía quatro séculos de existência, e era o exemplo mais significativo de república pacífica e duradoura, para muitos dos republicanos contemporâneos de nosso autor.

O autor afirmava ser imprudente, para a construção de uma república, o fato de suas ordenações se organizarem em função de uma dessas formas de governo; pois, todos eles, isoladamente, poderiam degenerar para alguma forma perniciosa de governo. Neste sentido, um principado poderia se tornar facilmente uma tirania, os optimates, também, com facilidade se tornariam uma oligarquia (governo de poucos), e os populares, sem dificuldade, tornariam- se licenciosos. De forma isolada, cada uma dessas formas de governo, nocivamente, teriam

29 Sobre a república mista como melhor forma de governo, a partir de Políbio, ver: BOBBIO, N. A teoria das

uma duração efêmera. Assim percebe Maquiavel, no capítulo 2 do livro primeiro dos Discursos, refletindo a respeito de quantas as espécies são as repúblicas e de que espécie foi a república romana, afirmando, conclusivamente, a prudência de numa mesma república se preservar, ao mesmo tempo, essas três formas de governo:

Digo, portanto, que todos esses modos são nocivos, tanto pela brevidade da vida que há nos três bons, quanto pela malignidade que há nos três ruins. Assim, sempre que tiveram conhecimento desse defeito, aqueles que prudentemente ordenaram leis evitaram cada um desses modos por si mesmos e escolheram alguma que tivesse um pouco de todos, por o julgarem mais firme e estável; por que, quando numa mesma cidade há principado, optimates e governo popular, um toma conta do outro. Entre os que mais louvores merecem por semelhantes constituições, está Licurgo, que ordenou de tal modo suas leis em Esparta que, dando aos reis, aos optimates e ao povo suas devidas partes, criou um estado que durou mais de oitocentos anos, com supremo louvor para si e sossego para aquela cidade. O contrário ocorreu a Sólon, que ordenou as leis em Atenas; ele, por constituir somente o estado popular, o fez de tão breve vida que, antes de morrer, viu nascer a tirania de Pisístrato. (MAQUIAVEL, 2007a, p.17)

A história mostrou para Maquiavel que a obra de Licurgo, enquanto legislador da república mista espartana, pelas razões elucidadas acima, era mais digna de imitação do que o governo popular puro legislado por Sólon, que teve vida efêmera e logo desembocou numa tirania.

Essa ideia do nosso autor, de que estando todos os estados representados, um toma conta do outro, parece, de um ponto de vista do exercício do poder, antecipar a discussão travada na conjuntura política da Revolução Gloriosa, no século XVII, por Locke, e pelos iluministas no século XVIII, a respeito da divisão dos poderes, quando faziam a crítica aos governos absolutistas – em especial, a obra Espírito das Leis, de Montesquieu, que defende a máxima de que só o poder detém o poder e impede o próprio poder do abuso de poder.

A crença de Maquiavel na longevidade das repúblicas de caráter misto, em detrimento daquelas que apresentam uma única forma de governo, isoladamente, está longe de ser uma marca que singularize o pensamento do autor; pois, em seu tempo de vida, essa crença era defendida por muitos dos seus contemporâneos. Entretanto, para o nosso autor, a justificativa estava na história; e para muitos do seu tempo, era a experiência de Veneza que alimentava essa convicção. Era compreensível a admiração dos contemporâneos de Maquiavel pelas instituições da república de Veneza, pelo fato de os venezianos terem conseguido manter, por tão longo tempo, a paz duradoura da república, num período quando a maior parte delas se perdeu nos conflitos facciosos e privados, como foi o caso de Florença.

Para Skinner (1996), o fato de os venezianos terem conseguido garantir, no seu governo republicano, a liberdade política dos cidadãos, suprimindo as facções que assolavam a Itália, já atraía a atenção de muitos constitucionalistas, desde o século XIV. Skinner, seguindo os rastros de Felix Gilbert, aponta para o fato de Pier Paolo Vergeiro ter sido o primeiro a firmar uma resposta clássica a esse feito. A explicação teria sido desenvolvida numa carta ao chanceler de Veneza, em 1394, e desenvolvida, posteriormente, num Fragmento sobre a República de Veneza. Segue Skinner, apontando a existência desse elogio feito à República de Veneza, em sua obra As fundações do pensamento político moderno:

Fundava sua análise na tese de Platão, que encontramos nas Leis. Segundo a qual a melhor e mais segura forma de governo deve consistir numa combinação das três formas “puras”— resultando assim num amálgama de monarquia, aristocracia e democracia. A particular excelência da constituição de Veneza, dizia Vergeiro, decorria do seu sucesso na fusão desses três diferentes sistemas, numa forma estável de governo misto, com o Doge representando o elemento monárquico, o Senado o aristocrático e o Grande Conselho o Democrático. Concluía que foi essa clara compreensão “do que Platão dizia melhor convir às cidades” que capacitou os venezianos a conviver por tanto tempo “em paz e amizade”, e a reger seus negócios com um tal êxito que “não há cidade mais opulenta ou esplendida em toda a Itália, ou sequer no resto do mundo”. (SKINNER, 1996, p. 161; PP.103, 104)

Para Skinner, a partir do século XVI, o restante da Itália volta o olhar e desenvolve um interesse maior pela durabilidade da constituição da República de Veneza. Os florentinos, por exemplo, a partir de 1512, quando os Médici retomam o exercício do poder na cidade, vão se perguntar com mais intensidade a respeito do sucesso da constituição de Veneza, que garantiu uma paz duradoura entre os seus cidadãos. Donato Giannotti, republicano fervoroso de Florença, e amigo de Maquiavel, desenvolveu uma reflexão sobre a república mista, num tratado intitulado Diálogo sobre a república dos Venezianos. O tratado foi redigido no exílio, em Veneza, no ano de 1526, mas só foi publicado em 1540, quando este se encontrava novamente no exílio. Segue Skinner, fazendo um comentário à reflexão desenvolvida por Giannotti, sobre a República de Veneza:

Giannotti aqui analisa tanto a evolução quanto o gênio da constituição de Veneza entendendo que a combinação de liberdade e segurança alcançada pelos venezianos pode atribuir-se a duas causas principais. Uma é o equilíbrio entre o poder de um, o de poucos e o de muitos que se obtém combinando-se a direção dos negócios pelo Doge com o papel conferido ao Senado e ao Grande Conselho. (PP.50ss) A outra é o complexo sistema de votação adotado a fim de garantir que todo magistrado seja eleito e toda

decisão política seja tomada com o propósito de maximizar o bem comum, acima de quaisquer vantagens para alguma facção. (SKINNER, 1996, p. 162; PP. 91-17)

Podemos perceber que, mesmo com todo elogio feito pelos contemporâneos de Maquiavel à paz duradoura da República de Veneza, e apesar da complacência que os venezianos tinham consigo, quando elogiavam suas instituições republicanas, o nosso autor afirma a sua preferência pelos conflitos políticos da república popular romana, em detrimento da tão elogiada paz reinante e duradoura da república aristocrática de Veneza.

Para o nosso autor, o fato das repúblicas serem mistas era fundamental para a longevidade de suas instituições, mas além desse aspecto, se a república depositasse a guarda da sua liberdade nas mãos do povo, tornando-se uma república de caráter popular, em que os conflitos políticos fossem resolvidos nas regras institucionais (como fez Roma, ao criar os Tribunos da plebe e permitir a esta uma vida ativa politicamente, com participação decisiva no governo republicano), então, essa república seria perfeita.

No capítulo 2 do livro primeiro dos Discursos, Maquiavel valoriza a perfeição da república mista romana e o fato desta república ter adquirido a sua perfeição quando introduziu ogoverno popular em suas entranhas, inaugurando o caráter misto de sua república no momento em que criou os tribunos da plebe. Ao mesmo tempo, o autor anuncia o tema da positividade dos conflitos políticos, que iria chocar os seus contemporâneos e o diferenciar de toda uma tradição de pensamento político, ao ponto de podermos mesmo cogitar a existência de uma perspectiva republicana em Maquiavel, que por sua vez seria radicalmente diferente de todas as demais. Na passagem abaixo, dos Discursos, o nosso autor aponta o valor da república romana, falando a respeito da perfeição a que chegou essa república quando, através dos conflitos políticos, criou os Tribunos da Plebe, possibilitando, dessa maneira, a representação dos trêsgovernos na república mista de Roma:

Faltava-lhe apenas dar lugar ao governo popular: motivo por que, tornando-se a nobreza romana insolente pelas razões que abaixo se descreverão, o povo sublevou-se contra ela; e assim, para não perder tudo, ela foi obrigada a ceder ao povo a sua parte, e por outro lado, o senado e os cônsules ficaram com tanta autoridade que puderam manter suas respectivas posições naquela república. E assim se criaram os tribunos da plebe, tornando-se assim mais estável o estado daquela república visto que as três formas de governo tinham sua parte. E foi-lhe tão favorável a fortuna que, embora se passasse do governo dos reis e dos optimates ao povo, por aquelas mesmas fases e pelas mesmas razões acima narradas, nunca se privou de autoridade o governo régio para dá-la aos optimates; e não se diminuiu de todo a autoridade dos optimates, para dá-la ao povo; mas, permanecendo mista, constituiu-se uma república perfeita: perfeição a que

chegou devido a desunião entre plebe e senado, como nos próximos capítulos se profusamente se demonstrará. (MAQUIAVEL, 2007a, p. 19)

No próximo tema, discutiremos com mais propriedade essa valorização que Maquiavel faz dos conflitos políticos que são naturais aos regimes republicanos, em especial, os da república romana; conflitos estes que tiveram o efeito de tornar essa república perfeita. A partir de então, todos os estados agora se encontravam institucionalizados e representados na esfera do poder republicano.