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PARTE II – ESTUDO DE CASOS

5 IMPLANTAÇÃO DA BARRAGEM DE CORUMBÁ IV, EM GOIÁS

5.2 PROCESSO DECISÓRIO, AIA E LICENCIAMENTO AMBIENTAL

5.2.1 Corumbá IV: manancial para o abastecimento futuro de água do DF?

Os grandes empreendimentos de infra-estrutura, seja pelos vultosos investimentos que se anunciam, com recursos públicos, seja pelo alcance e abrangência de seus benefícios e/ou de seus impactos socioambientais negativos, são sempre motivo de questionamentos, das mais diversas naturezas. No caso de Corumbá IV, no período em torno do leilão da ANEEL para a construção e exploração da usina (realizado em outubro/novembro de 2000), as notícias sobre o interesse e a prioridade que o GDF conferia à obra, ainda que os investimentos estivessem sendo viabilizados mediante parceria com a iniciativa privada, motivaram muitos questionamentos acerca das justificativas do empreendimento.

O então Governador do DF, Joaquim Roriz, recorreu em diversas ocasiões à CAESB – Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal76, na pessoa de seu presidente,

Fernando Leite, para argumentar tecnicamente em favor da obra, como solução para a séria ameaça de racionamento de água que pairava sobre a Capital Federal. Essa argumentação foi bastante contestada por técnicos do setor77. A busca por novos mananciais para abastecimento

de Brasília não teria um caráter tão urgente quanto o que transparecia nas notícias sobre o empreendimento. E a escolha de Corumbá IV como a melhor alternativa carecia de estudos técnicos fundamentados.

O discurso em favor da construção de Corumbá IV enfatizava ainda que, segundo a THEMAG, a área a ser inundada era essencialmente rural, com paisagem natural já descaracterizada pelo uso antrópico, não se verificando notórias interferências com núcleos urbanos e malha viária (ANDRADE, 1999). Essa argumentação, bastante simplista, prevaleceria nos estudos ambientais realizados naquela época, aceitos pelo órgão ambiental de meio ambiente de Goiás que, ignorando o caráter regional — refletido, por exemplo, na argumentação sobre a importância de Corumbá IV para o abastecimento de água do Distrito Federal —, licenciou o empreendimento.

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Denominação assumida pela CAESB em 2005, com a Lei Distrital n.º 3.559.

77 Inclusive por este autor que, em VASCONCELLOS FILHO (2000), questionou os critérios de cálculo dos

números apresentados, com relação às projeções de demanda que estariam entre as principais justificativas para a a necessidade premente de se buscar um novo manancial para abastecimento: Corumbá IV.

Menos comuns eram as referências ao risco de o lago sofrer impactos dos esgotos sanitários gerados nas regiões oeste e sudoeste de Brasília, pois o eixo do barramento no rio Corumbá situava-se pouco a jusante das contribuições do rio Descoberto (a jusante do Melchior/Taguatinga) e do rio Alagado (a jusante do Ponte Alta). A CAESB, Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal78, dispunha, havia muitos anos, de projetos para

construção de duas novas ETE (estações de tratamento de esgotos): a do Melchior, atendendo a uma população de quase 1 milhão de pessoas da região de Taguatinga e Ceilândia; e a do Alagado, servindo a mais de 100 mil pessoas da região do Gama.

As características físicas do território do Distrito Federal, com uma hidrografia marcada por pequenos rios e córregos, das regiões mais distantes da foz dos rios em cuja bacia se inserem (no caso, a bacia do rio Paraná, formador do rio da Prata), tornava essa situação insustentável. Alvo de reiterados alertas da comunidade técnico-científica, o lançamento in natura dos esgotos gerados por mais de 1 milhão de pessoas nos cursos d’água da região constituía um atentado ao meio ambiente, pelas vazões limitadas que esses apresentavam, sem qualquer capacidade de diluição, e por abrigarem frágeis ecossistemas do Cerrado. Nesse sentido, a pressão social surgida com a proposta de construção de Corumbá IV foi decisiva. O GDF, com recursos próprios e também oriundos de empréstimo contraído junto ao BID, viabilizaria a implantação de ambas as ETE, concomitantemente com a construção da barragem.

Cumpre registrar que a CAESB contratou, em 2000, a revisão e atualização do Plano Diretor de 1990. O PLD 2000 (MAGNA, CAESB, 2003), um estudo técnico, econômico e ambiental de grande abrangência, foi elaborado entre outubro de 2000 e setembro de 2003, tendo sido aprovado pela Companhia e tornado público a partir de 2004. Não obstante as reiteradas declarações do Presidente Fernando Leite, corroborando a importância de Corumbá IV para a solução do abastecimento de água futuro de Brasília, o Plano Diretor não elegeu Corumbá IV como o principal manancial a ser utilizado no futuro. Segundo o Assessor de Planejamento da CAESB, Acylino Santos79, a área técnica da companhia não teve qualquer

participação no planejamento e projeto para a construção da barragem. Tanto que a CAESB,

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A sigla CAESB vem da denominação original da empresa, Companhia d e Água e Esgotos de Brasília. Em 1999 a Lei Distritial n.º 2.416 alterou essa denominação para Companhia de Saneamento do Distrito Federal. Em 2005, a Lei Distrital n.º 3.559 ampliou as áreas de atuação da empresa, autorizada a atuar no tratamento e destinação final de resíduos sólidos no Distrito Federal e fora dele. A denominação da empresa foi novamente alterada, para refletir essas mudanças, e a CAESB hoje intitula-se Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal.

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hoje, após a conclusão da barragem, viu-se obrigada a contratar sua revisão — pouco mais de 1 ano depois de sua conclusão, apesar de o estudo propor soluções para um horizonte de até 30 anos.

Cabe registrar a resistência que técnicos do setor de Saneamento ofereceram à proposta de utilização de Corumbá IV como manancial para abastecimento de água de Brasília, refletida em campanhas realizadas junto ao público pelo SINDÁGUA-DF, Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Purifiação de Água e em Serviços de Esgotos no Distrito Federal. Congregando os empregados da CAESB, o Sindicato tem suas ações respaldadas por uma forte representatividade, tendo como filiados 1.810, de um total de 1.845 trabalhadores ativos. Em sua homepage, o SINDÁGUA-DF anuncia a “luta contra o encarecimento da água no DF e contra a privatização da água em obra faraônica” (SINDÁGUA-DF, 2006).

Em janeiro de 2006, o Sindicato entrou na Justiça com Ação Popular contra a CAESB (ainda pendente de decisão da Justiça), visando a anular o Edital de Concorrência CP- 029/2005, para a “contratação de empresa especializada para elaboração da complementação e adequação do Plano Diretor de Água e Esgotos do Distrito Federal (PLD) 2000, dos estudos de viabilidade e do projeto básico para ampliação dos sistemas de abastecimento de água para o Distrito Federal e municípios do entorno, a partir dos mananciais disponíveis na região, em especial o Rio São Bartolomeu e o reservatório da UHE Corumbá IV, levando em consideração as premissas do Plano Diretor de Água e Esgotos do Distrito Federal – PLD 2000” (CAESB, 2006).

Radicalismos à parte, esse embate entre o Sindicato dos trabalhadores da CAESB e a direção da Companhia contribui para mostrar que a argumentação do Governo do Distrito Federal em favor da construção de Corumbá IV não estava fundamentada em análises técnicas conclusivas ou consensuadas sobre a situação do abastecimento de água no Distrito Federal. “Vender” Corumbá IV como o manancial de que Brasília necessitava para o abastecimento de água nos próximos 90 anos (como tantas vezes anunciado na mídia, antes mesmo do anúncio da decisão da ANEEL, de leiloar sua construção) foi, portanto, um posicionamento eminentemente político em favor do empreendimento. Esse posicionamento está mais respaldado no interesse econômico de uma empresa pública do DF, a CEB, em associação com uma grande empreiteira nacional, a Serveng-Civilsan, e outras empresas públicas e privadas, do que em um problema social concreto, tecnicamente bem caracterizado.

No entanto, é evidente o peso que essa argumentação teve no processo relativo à decisão de empreender, em detrimento da AIA, limitada a questões específicas referentes a ações de proteção ao meio ambiente — posto que não menos importantes. O equívoco do licenciamento junto à AGMA e as disputas que se seguiram, na Justiça, pela assunção do projeto pelo IBAMA, desviaram a atenção do foco das decisões de natureza política e econômica — não alcançadas pela AIA, mormente no caso dos grandes empreendimentos de infra-estrutura.