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PARTE II – ESTUDO DE CASOS

5 IMPLANTAÇÃO DA BARRAGEM DE CORUMBÁ IV, EM GOIÁS

5.1 HISTÓRICO: ETAPAS INICIAIS DO PROCESSO DECISÓRIO

5.1.3 Os pródromos da AIA: um começo equivocado

A Via e a RV, no entanto, deram seqüência aos trabalhos, com a contratação dos Estudos de Viabilidade de Corumbá IV com a mesma THEMAG, além da contratação da elaboração de EIA/RIMA com o CTE, Centro Tecnológico de Engenharia Ltda.

Registra-se, a essa altura do processo decisório referente ao empreendimento, um direcionamento da AIA que afetaria todas as decisões subseqüentes: a solicitação, ao órgão estadual de meio ambiente de Goiás — a FEMAGO, em vias de ser sucedida pela AGMA —, da licença ambiental prévia para o desenvolvimento do projeto. O momento, consoante com o que prevê a Resolução CONAMA n.º 237/97, era ainda de planejamento e projeto, em fase preliminar. A apresentação da solicitação ao órgão estadual, no entanto, era injustificável. Tanto à luz dessa resolução, como à luz da antiga Resolução n.º 001/86 (cujos princípios já

estariam mais bem consolidados entre os técnicos das áreas de infra-estrutura e de licenciamento ambiental).

A quem teria cabido essa decisão ou direcionamento? Teoricamente, ao empreendedor que, no caso, eram as empresas de Brasília, do ramo da construção civil, que se encarregaram do desenvolvimento dos estudos inicias para a implantação dos aproveitamentos hidrelétricos previstos para o alto rio Corumbá. Em princípio, poder-se-ia reputar aos responsáveis técnicos da Via Engenharia e da Construtora RV o desconhecimento do marco legal ambiental, que atribui ao IBAMA a competência para acompanhar, licenciar e fiscalizar a implantação de projetos e obras cujos impactos, negativos ou positivos, possuam caráter regional, extrapolando o âmbito das unidades da federação onde se localizam. Ao invés disso, o critério utilizado foi o da dominialidade das águas do rio Corumbá — no caso, do estado de Goiás.

Está claro que a dominialidade das águas de um rio não são, em qualquer hipótese, critério decisivo, e muito menos exclusivo, para a determinação da competência sobre o licenciamento ambiental de um projeto de infra-estrutura hídrica (diferentemente do que ocorre com relação aos instrumentos para o gerenciamento dos recursos hídricos, como a outorga e a cobrança pelo uso da água). Há rios que, por constituírem, em determinados trechos, divisores entre os estados, são de domínio federal. Não obstante, percorrem grandes extensões no seio desse ou daquele estado, e empreendimentos situados às suas margens, nesses trechos, ainda que utilizando, captando ou desviando uma determinada parcela de água (desde que pouco significativa), podem ter seus impactos, dependendo de sua natureza, inteiramente restritos ao âmbito da unidade da federação na qual se inserem.

Por outro lado, há rios de domínio dos estados que nascem e se desenvolvem inteiramente no âmbito de seu território, mas que, por suas características naturais, desempenham importante papel regulador no âmbito da bacia hidrográfica maior na qual se inserem, abrangendo duas ou mais unidades da federação. Nesses casos, determinados empreendimentos, ainda que de porte limitado, podem, por sua natureza, gerar impactos ou desequilíbrios que irão repercutir em regiões distantes, de outros estados.

No caso do licenciamento ambiental da barragem de Corumbá IV, solicitado ao OEMA/GO em 1999, não se poderia deixar de considerar a proximidade de Brasília, e a importância econômica, social e ambiental do reservatório e usina para a região metropolitana integrada da Capital Federal — afetando, portanto, diversos interesses do público no Distrito Federal e em Goiás. Caso o quadrilátero do Distrito Federal se situasse alhures, distante dos

sertões de Goiás, a competência do órgão estadual para avaliar e licenciar a implantação de um barramento no alto Corumbá seria inquestionável. O empreendimento, no entanto, poderia não ser economicamente viável, sem a demanda por energia e água que a presença de Brasília induz em toda uma vasta região, outrora pouco ocupada.

Tais questões, antes de dizerem respeito à regulamentação estabelecida em resoluções do CONAMA, advêm dos princípios que regem a Política Nacional de Meio Ambiente, também consagrados no texto constitucional de 1988. Assim sendo, a inépcia desse ou daquele representante das referidas empresas não poderia ser determinante de tal equívoco, face ao papel de, no mínimo, três outros atores desse processo: a ANEEL, que autoriza, orienta e direciona os estudos necessários; a FEMAGO/AGMA, um dos mais antigos órgãos estaduais de meio ambiente do País e, como tal, de cunho eminentemente técnico; e a empresa contratada para a elaboração do EIA/RIMA, a CTE Ltda., cujo acervo técnico incluía o desenvolvimento de estudos ambientais referentes a grandes obras de infra-estrutura.

A discussão sobre o peso político na atuação de órgãos públicos, tanto no âmbito federal como no dos estados, e sobre como esse peso teria afetado essa ou aquela decisão, careceria de fatos que pudessem fundamentar a pesquisa acadêmica. O trabalho técnico de uma empresa que atua na área de meio ambiente, porém, fala por si. O EIA de Corumbá IV, elaborado pela CTE em 1999 (concomitantemente com o desenvolvimento dos Estudos de Viabilidade, pela THEMAG), traz, em sua apresentação, o seguinte texto:

CTE – Centro Tecnológico de Engenharia Ltda., apresenta o Relatório de Estudos de Impacto Ambiental - EIA, referente ao projeto de implantação do Aproveitamento Hidrelétrico Corumbá IV, situada no rio Corumbá, no Estado de Goiás, mais precisamente na região denominada de Entorno de Brasília, na área mais ao sul do Distrito Federal.

O presente relatório, elaborado em conformidade com a legislação ambiental vigente e em especial à Resolução CONAMA 001/86, tem por objetivo a obtenção da Licença Prévia - LP para o empreendimento.

Em função da legislação vigente, caberá a FEMAGO – Fundação Estadual do Meio Ambiente do Estado de Goiás, a responsabilidade pelo licenciamento (CTE, 1999a, vol. I, pág. 2).

Nota-se que, ao contextualizar o trabalho, os técnicos não deixaram de referir-se, em primeiro lugar, à proximidade do Distrito Federal — que, por certo, condiciona todo o desenvolvimento do projeto. Apesar da referência à Resolução CONAMA n.º 001/86, que disciplinou por primeiro o licenciamento ambiental dos empreendimentos de infra-estrutura, não se fez, nessa apresentação, menção à Resolução CONAMA n.º 237/97, então vigente há mais de um ano. A resolução de 1997 teve como preocupação tornar mais claros alguns

princípios, inclusive no sentido de dirimir eventuais conflitos de competência entre o IBAMA e os órgãos licenciadores de meio ambiente, na esfera dos estados e municípios.

Ademais, o texto do relatório apresenta, em seu terceiro parágrafo, como que um pressuposto: o de que a responsabilidade pelo licenciamento caberá à FEMAGO, “em função da legislação vigente”. A afirmação causa espécie, pois não está fundamentada, como requer a natureza do trabalho — e nem poderia. Com um texto curto e sem maiores explicações, os autores como que se eximem de responsabilidade com relação ao tema.

Uma abordagem mais clara da questão, porém não menos indefensável, consta um pouco adiante do EIA:

Licenciamento ambiental deve ser feito junto à FEMAGO - a competência do órgão foi demarcada de acordo com a extensão dos impactos ambientais segundo a resolução 237/97 - expedida pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente: “compete ao órgão ambiental estadual ou do Distrito Federal o licenciamento ambiental dos empreendimentos ou atividades: cujos impactos ambientais diretos ultrapassem os limites de um ou mais municípios.”

Cite-se ainda: “das competências (FEMAGO) fiscalizar, licenciar e controlar as atividades poluidoras, bem como analisar os impactos ambientais promovidos por empreendimentos públicos ou privados, aplicando penalidades e exigindo medidas mitigadoras, de acordo com a legislação ambiental.”, como o empreendimento em questão tem seus impactos restritos ao âmbito estadual apenas, as respectivas autorização e licença ora expostas afiguram-se adequadas (CTE, 1999-A, vol. I, pág. 7).

A afirmação de que os impactos estariam restritos ao âmbito estadual não se sustenta nem no próprio texto do EIA/RIMA (como seria denunciado depois pelo MP), apesar de uma redação cuidadosa nesse sentido. De quem seria, então, a responsabilidade de fato pelo licenciamento no âmbito do Estado de Goiás? A Via Engenharia e a Construtora RV, ao se retirarem do processo (como exposto a seguir), dificilmente seriam responsabilizadas. Não obstante, o empreendedor, o Consórcio Corumbá Concessões S.A., que hoje opera a barragem e a usina, argumentou, nas negociações com o Ministério Público, durante a fase de implantação do projeto, que recebeu a concessão do empreendimento já licenciado junto à AGMA. Ele não poderia, destarte, ser responsabilizado pela falta de licença ambiental junto ao órgão competente — o IBAMA.