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Cosmologia mesoamericana: a concepção do tempo

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 121-125)

8. A dissonância poética do tempo em Todas las familias felices

8.1. Cosmologia mesoamericana: a concepção do tempo

A nova linguagem hispano-americana é, conforme Carlos Fuentes (1998a, p.09), “uma busca constante de nossa identidade nacional, mestiça, herdeira por sua vez da civlização indígena e da civilização espanhola” 11. Portanto, a América reclama para si uma identidade verdadeiramente americana. O mito indígena americano é uma de suas marcas identitárias, sua raiz, muito anterior à chegada dos conquistadores. É justamente isso que afirma Rojas, personagem do conto “Fortuna lo que ha querido”: "la raíz helada y bárbara de la escultura indígena [...] la originalidad de México, el margen mínimo pero absoluto de nuestras vidas, es lo que no ha sido tocado por el Occidente" (FUENTES, 1964, p.52-53).

11 No original: “una búsqueda constante de nuestra identidad nacional, mestiza, heredera a la

vez de la civilización indígena y de la civilización española”. (Tradução nossa)

Não é necessário que a narrativa seja sobre um mito, basta somente que a gênese da composição literária esteja em conformidade com o pensamento pré- hispânico 12. Isso é o que passa com a noção de tempo que contitui as narrativas de Carlos Fuentes. O tempo cíclico já se fazia presente na cosmogonia mesoamericana, como nas culturas maias, mexicas, olmecas, mixtecas, otomís, dentre outras (Ávila Aldapa, 2008). Para eles, havia pelo menos dois calendários complementares que eram usados simultaneamente e se conectavam em um ciclo de cada cinquenta e dois anos. Chegamos, então, a uma interrogante: o que é o tempo e como este é percebido?

Referindo-se à primeira pergunta, Regina Schöpke (2009) realiza um extenso estudo sobre o tempo e suas diferentes percepções ao longo da história. A priori, a pesquisadora questiona se o tempo seria o correlato da morte (Schöpke, 2009, p.10): “seria mesmo o tempo apenas um carrasco, um inimigo de todo ser vivo e de tudo o que existe, aquele que sentencia todos à morte inexorável?”. Se isto é verdade, a morte não seria apenas um castigo, senão também uma liberação, porque de acordo com Schöpke (2009, p.11) o tempo “também é considerado o responsável pela geração de todas as coisas e é igualmente aquele que nos liberta das dores e aflições”.

No entanto, o principal para a nossa discussão é que “não é possível pensar a ideia das três dimensões (o presente, o passado e o futuro) como existindo plenamente e por si mesma. Enfim, é preciso que um instante deixe de existir para que outro ocupe o seu lugar” (SCHÖPKE, 2009, p.13). Esta concepção do tempo é uma invenção do Ocidente para tentar deter o tempo a partir de uma medida, cuja base é a duração das coisas. Daí, percebemos que o tempo não passa, mas que “as coisas” passam (o fruto nasce, madura e morre, por exemplo). Porém, em nenhum momento, nesta ideia de tempo apreendemos o tempo.

Em resumo, uma das teses de Schöpke (2009) sobre o presente é o “estar vivo no mundo” e, assim, enquanto uma pessoa vive, toda a sua existência é um presente por excelência. No entanto, o presente é transpassado por instantes, o que evidencia o passar do tempo e estabelece o “antes” e o “depois”. Isto é, o viver é um eterno presente que está constituído por pequenos instantes que criam o parâmetro de

12 Como exemplo, podemos citar Cien años de soledad, de Gabriel García Márquez e Pedro Páramo,

sucessão no tempo. O instante instaura uma anterioridade e uma posterioridade com algum evento e isso cria um passado e um futuro dentro do presente da existência. Porém, este presente é uma parte de um continuum de presentes anteriores, ou seja, há um macropresente e um micropresente. O micropresente, como já abordamos, está conectado ao viver e o macropresente é a reunião de micropresentes. Como afirma Schöpke (2009, p.131), “o passado e o futuro só existem em relação ao corpo e com esse presente, que não passa de um ‘agora’ dos corpos. Em poucas palavras, o presente é a própria existência”.

Essa hipótese vai de encontro ao pensamento de Gaston Bachelard (2007, p.91) quando declara que “pelo próprio fato de vivermos, pelo próprio fato de amarmos e de sofrermos, estamos inscritos nos caminhos do universal e do permanente”. O viver é o que nos faz estar no tempo presente, mas o presente só é assim porque antes houve outros presentes, presentes-passados que fundaram o presente-atual. Passado e presente, então, se articulam intimamente, já que ambos passam a ser um e dois ao mesmo tempo.

Portanto, pode-se dizer que esse presente existencial foi fundado por outros presentes, já passados, que são da ordem do outrora e da lonjura. Agora uma pergunta nos é latente: como esses micropresentes estão inter-relacionados formando, assim, um macropresente? O laço entre os presentes é a memória, que não nos permite esquecer os fatos passados e, portanto, esses fatos seguem vivos na memória individual e/ou coletiva. Isto é, ainda que já passados, através da memória eles são “vivificados” e passam a ser presente, não o mesmo presente que o nosso atual, mas um presente que forma parte daquele.

Desse modo, “a memória desempenha um papel fundamental. Através da rememoração, da anamnesis, há uma liberação da obra do tempo” (ELIADE, 2010, p.83). O passado-lonjura é resgatado pela memória que o faz “passado-presente” e nos dá forma para o futuro. Por meio da memória, “nada muere por completo”, afirma Carlos Fuentes (1994, p.206). O passado não morre, é vivificado, ou seja, presentificado pela memória.

Quando falamos do tempo, falamos de uma das ideias comuns relacionadas a ele, a morte, como vimos anteriormente em Schöpke (2009). Porém, o tempo não é a morte, mas sim o esquecimento, como pontualmente observa Mircea Eliade (2010, p.109): “A fonte de Letes, o ‘esquecimento’, faz parte integrante do reino da morte”.

A memória do passado cria os mitos, que são a experiência vital do sagrado – a natureza em si mesma já é divina, como já estudamos em Eudoro de Sousa (1995) – cria realidades, verdades e significações (Eliade, 2010) que transcendem o passado- lonjura e cria, portanto, um presente contínuo, formado de passados e presentes, não justapostos, mas em perfeita harmonia de coexistência. O futuro também forma parte do micropresente, mas com uma pequena diferença do sentido comum que se tem sobre o futuro: “O futuro não é o que vem em nossa direção, mas sim na direção em que nos dirigimos” (Guyau apud BACHELARD, 2007, p.54).

Então, se o tempo pode ser compreendido como um macropresente, que é uma reunião de micropresentes inter-relacionados na memória, não há sentido estabelecer um início e um fim únicos para o tempo. Isto é, o tempo não é concebido como uma linha que tem um começo e um fim, e sim como um círculo, que embora tenha um início e um fim, eles estão interligados, apagando as fronteiras e criando uma perfeita continuidade dos acontecimentos. Mircea Eliade (1992, p. 79) constata que o pensamento que predomina nessas concepções cósmico-mitológicas é “a repetição cíclica do que existiu antes, ou seja, o eterno retorno”.

Especialmente em Carlos Fuentes, não é que toda a sua obra seja uma narrativa cíclica, o que acontece é que esta ideia é apenas o ponto de partida: o escritor mexicano elimina as divisões do tempo “passado”, “presente” e “futuro”, constituindo o que já nos referimos como macropresente. Já estudamos esse apagamento de forma bem marcada nos contos “Chac Mool”, “Tlactocatzine, del jardin de Flandes” e menos marcado em “Un fantasma tropical”. Passaremos agora ao estudo de três narrativas da coletânea Todas las familias felices, originalmente publicada em 2006.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 121-125)

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