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4 FAMÍLIA NO COTIDIANO: VIVE JUNTO TODO DIA, NUNCA PERDE ESSA

4.1 COTIDIANO E VALORES CONSERVADORES: QUANDO OS

Em Luckács (1966 apud NETTO, 2012), a cotidianidade apresenta como determinações fundamentais a heterogeneidade – as demandas do cotidiano são diversas; a imediaticidade – relação direta entre pensamento e ação, ações/respostas às demandas, fundamentalmente, imediatas – e a superficialidade extensiva – consideração do somatório dos fenômenos ou parte deles, sem considerar as relações que os vinculam (NETTO, 2012). O cotidiano, portanto, é

arena de produção e reprodução social que propicia que o indivíduo se perceba como ser singular, porém sem as mediações existentes e necessárias.

Pela sua peculiaridade pragmática, o pensamento cotidiano, que implica também em comportamentos fundamenta-se em juízos provisórios, pautados em estereótipos, na opinião, na unidade imediata entre pensamento e ação (HELLER, 1992). A tendência do (e no) pensamento cotidiano – imediato e acrítico – é considerar os valores, os comportamentos sociais, os modos de vida como algo abstrato, natural, fruto de uma construção no campo das ideias dos indivíduos. Contudo, conforme sinaliza Barroco (2012), os valores não são criados e reproduzidos naturalmente, ao contrário, são uma construção histórica objetiva, visto que atendem a determinadas necessidades em determinados períodos históricos, ou seja,

pode-se considerar valor tudo aquilo que, em qualquer das esferas e em relação com a situação de cada momento, contribua para o enriquecimento daquelas componentes essenciais; e pode-se considerar desvalor, tudo o que direta ou indiretamente rebaixe ou inverta o nível alcançado no desenvolvimento de determinado componente essencial. O valor, portanto, é uma categoria ontológico-social65; como tal é algo objetivo; mas não tem objetividade natural (apenas pressupostos ou condições naturais) e sim objetividade social (HELLER, 1992, p. 04).

Atrelada ao cotidiano, e como mecanismo de manutenção de valores, a moral se coloca como outro elemento importante neste processo. De acordo com Barroco (2007, p. 42), “a moral origina-se do desenvolvimento da sociabilidade; responde à necessidade prática de estabelecimento de determinadas normas e deveres, tendo em vista a socialização e a convivência social”. Assim, tal como os valores, a moral faz parte do processo de socialização dos indivíduos, reproduzindo- se através do hábito e expressando princípios socioculturais dominantes, numa determinada época histórica (IBID).

No âmbito da família, espaço contraditório de socialização e reprodução de indivíduos e de valores, estas dimensões da vida colaboram, muitas vezes, para a ratificação e fortalecimento daquilo que está posto, tornando cada vez mais desafiador para as famílias concretizarem seus projetos de vida, seus desejos, viverem suas experiências longe do crivo moral instituído e imposto socialmente.

No processo de socialização, os valores e princípios morais e éticos ao serem internalizados transformam-se em orientação de valor para o próprio sujeito e

65 Grifos da autora.

em juízos de valor em face de outros indivíduos e da sociedade. Nesse sentido, entra em cena outro elemento: o senso moral ou a moralidade, que se constitui como uma medida para julgar se os indivíduos estão socializados, ou seja, se são responsáveis pelos seus atos e comportam-se de acordo com as normas e valores socialmente determinados. Quando um indivíduo não cumpre com esse “dever” estabelecido ou vai contra uma norma moral, ele é julgado moralmente.

Nesse sentido, “a moral é parte fundamental da vida cotidiana, pois a reprodução das normas depende do espontaneísmo e da repetição para que elas se tornem hábitos” (BARROCO, 2007, p. 44), que se transformem em costumes, que, por sua vez, se firmem como necessidades. Nesse sentido, quando os indivíduos incorporam determinados valores, “papéis”, normas, comportamentos e reproduzem- nos espontaneamente, há a tendência, na vida cotidiana, das escolhas, dos direcionamentos dados à vida nem sempre significarem escolhas conscientes ou mesmo exercícios de liberdade.

As atividades humanas se realizam em esferas heterogêneas, sempre implicando escolhas entre alternativas de valor, não necessariamente, entre valor moral. Como a moral está presente em todas as atividades humanas, “existe a possibilidade de conflitos quando determinadas situações exigem escolhas, cujos valores se chocam com a moralidade dos indivíduos sociais; isso pode ocorrer, por exemplo, na relação afetiva e sexual” (BARROCO, 2007, p. 49).

Essas análises se articulam diretamente com o nosso objeto de estudo, na medida em que o desejo de adotar filhos/as, de casar civilmente, constituir família, muitas vezes figura como uma cobrança, transmutada na forma de desejo alheio, de desejo da família, e da própria sociedade, que passa a ser apropriado e reproduzido pelo indivíduo, visto que atualizando os valores vigentes, há a possibilidade de igualdade, de legitimação e de não julgamento moral.

Não estamos, com isso, desconsiderando o desejo de cada um dos pares homoafetivos em constituírem família e adotarem filhos/as, mas estamos considerando, também, que este desejo e sua subjetividade podem estar determinados mais profundamente e que, portanto, podem ser cooptados e direcionados por esse conjunto de normas de comportamento que dizem o que é “certo” ou “errado”; que dizem que “é” ou “não é”; que dizem que é “isso” ou “aquilo”.

A luta histórica dos segmentos feministas e homoafetivos, assim como os avanços no debate sobre família e relações afetivas e sexuais, trazem contribuição à

garantia de direitos e liberdade de orientação e expressão sexual, criam uma fissura na ordem estabelecida. No entanto, ao mesmo tempo em que isso ocorre, há, também, um processo de adaptação, de assimilação espontânea de um determinado valor ou de um determinado comportamento. O que não significa, necessariamente, uma adesão consciente, dada a naturalização dos processos sociais e a alienação destes processos.

Numa sociedade em que imperam as desigualdades, tal qual a sociedade capitalista, a moral cumpre uma função ideológica, ou seja,

contribui para uma integração social viabilizadora de necessidades privadas, alheias e estranhas às capacidades emancipadoras do homem. Pela sua natureza normativa e sua estrutura de ‘subordinação das necessidades de desejos e aspirações particulares às exigências sociais’, ainda que não diretamente, mas através de mediações complexas, a moral é perpassada por interesses de classe e por necessidades de (re)produção das relações sociais que fundam um determinado modo de produzir material e espiritualmente a vida social (BARROCO, 2007, p. 45).

À medida que, na vida cotidiana, o modo de vida ocidental, branco, cristão, heterossexual e dominante, é instituído como o critério e conceito da “verdade”, é identificado como correto, como útil e é apreendido como dogma, não permite questionamentos, não permite dissidências. Deste modo, “[...] raça, etnia, gênero, orientação sexual e muitos outros itens compõem a agenda de questões que historicamente estão no alvo da intolerância da não aceitação da diferença” (MESQUITA; RAMOS; SANTOS, 2001, p. 01).

Nessa perspectiva, limitante e limitadora, o conceito – de verdade, de moral, e de socialização – pré-estabelecido, e por isso, pré-conceito, se constitui não mais como um conceito “anterior” que é amplamente reproduzido, e sim como um preconceito, como

uma forma de reprodução do conformismo que impede os indivíduos sociais de assumirem uma atitude crítica diante dos conflitos, assim como uma forma de discriminação, tendo em vista a não aceitação do que não se adequa aos padrões de comportamento estereotipados como “corretos” (BARROCO, 2007, p. 47).

Como tal, esse pré-conceito de “verdade”, se coloca como uma manifestação particular do juízo provisório, como um juízo imediato, pragmático e depreciativo daquele/a ou daquilo que não condiz com o julgamento moral

dominante, ou seja, um pré-conceito que se transforma em preconceito. Heller (1992), nos adverte para o entendimento de que “o preconceito, via de regra, apresenta-se com conteúdo axiológico negativo”, ele é sempre moralmente negativo. Isso “porque todo preconceito impede a autonomia do homem [e da mulher], ou seja, diminui a sua liberdade relativa diante do ato de escolha, ao deformar e, conseqüentemente, estreitar a margem real de alternativa do indivíduo” (HELLER, 1992, p. 59).

Os preconceitos, portanto, são criados e disseminados na esfera cotidiana, constituindo-se numa categoria de pensamento e de comportamento cotidianos, que precisam ser problematizados e desmistificados, visto que

[...] materializado[s] em diferentes formas de discriminação, é [são] uma realidade objetiva para amplos segmentos de homens e mulheres. Isso porque as diferenças no jeito de ser e viver tem significado uma arena fértil para manifestação de múltiplas modalidades de opressão (MESQUITA; RAMOS; SANTOS, 2001, p. 01).

Por serem (re)produzidos no cotidiano, as manifestações de preconceito podem ocorrer nas várias esferas da vida social; refletem-se na família, na escola no trabalho, nas amizades, nas ruas, nas artes, na política, em situações de conflito, nas atividades mais corriqueiras do dia a dia, até as mais complexas como um processo de adoção de filhos/as para constituição de família. Nesse sentido, duas perguntas se fazem presentes, por que existem preconceitos? E para que serve a sua reprodução?

Podemos encontrar “pistas” das respostas em Heller (1992), quando esta nos provoca a refletir que os preconceitos servem para consolidar e manter a estabilidade, a ordem social tal qual como está dada. Poderíamos, assim, afirmar, em linhas gerais, que ao reproduzirmos preconceitos na vida cotidiana, e nisso nos colocamos como parte deste processo porque não estamos isentas de suas determinações, estamos validando ideológica e moralmente a sociabilidade capitalista na qual vivemos, reforçando, independente da consciência que tenhamos acerca da nossa ação preconceituosa, a manutenção hegemônica de um projeto societário de exploração do trabalho e opressor em diferentes dimensões.

Intencionando verificar em que medida esses preconceitos incidiam nos processos de adoção homoafetiva realizados em Natal, bem como nas atividades cotidianas das famílias homoafetivas entrevistadas, se estes se configuravam como

possíveis obstaculizadores do acesso à adoção, questionamos se os sujeitos da pesquisa haviam enfrentado dificuldades para realizarem-na na cidade do Natal/RN. Todos/as os/as entrevistados/as responderam que não enfrentaram nenhum tipo de dificuldade durante o processo de adoção, ao contrário, ressaltaram o acolhimento da equipe técnica da 2VIJ – Natal, a clareza e a transparência das informações em todo o processo.

Também questionamos se, de alguma maneira, eles/as haviam sentido ou sofrido algum tipo de preconceito e/ou discriminação, em função da orientação sexual, durante o processo da adoção e mais uma vez as respostas de todos/as os/as entrevistados tenderam à afirmação de que não haviam sentido ou sofrido qualquer tipo preconceito pela equipe técnica da 2VIJ – Natal.

No entanto, a fala de uma das entrevistadas denota que ainda que prevaleça a ideia de que não houve preconceito no processo, sobretudo por parte da instituição, mas a própria entrevistada mantinha uma ideia pré-concebida de que se afirmasse a sua orientação sexual, seu processo poderia ser dificultado.

Eu não senti nenhum tipo de preconceito. Isso eu achei bacana.

Achei a última audiência muito bacana, o juiz deixa você super à vontade. Achei ele um cara show de bola! Agora... Não sei se eu tivesse entrado

“rasgando” como tem gente que entra....

Eu sempre fui uma pessoa muito reservada na minha vida e eu nunca sou de... [...] Eu não acho que você precisa estar gritando aos quatro

cantos do mundo, até porque uma demonstração de carinho você pode

fazer com um beijo no rosto ou um beijo na boca mesmo – acho até feio

casais heterossexuais que ficam se pegando no meio da rua – mas...

Voltando para o lado positivo... o que eu achei foi isso: Não tive nenhum tipo de preconceito, mas também não fui questionada. Não sei se tivesse sido como é que teria sido66

(ELLEN).

Desta forma, fica evidente que o preconceito, enquanto um juízo provisório de valor, também se faz presente naqueles/as que tendencialmente seriam sujeitos vítimas de preconceitos. Se, conforme verificamos em Heller, o preconceito é, via de regra, fundado e difundido com conteúdo axiológico negativo, é possível depreendermos que a reprodução destes preconceitos se faz nos interstícios e sutilezas cotidianas, seja pelo pensamento sobre aqueles/as que “entram rasgando” sua orientação sexual, seja sobre aqueles/as que expressam seus desejos e afetos em público, isto é, sobre aqueles/as que se colocam contra a ordem moral e valorativa instituída.

66 Grifo nosso.

Ainda em busca destes interstícios e de possíveis expressões de preconceitos vividas, questionamos aos/às entrevistados/as se nas atividades cotidianas, eles/as haviam vivenciado manifestações de preconceitos e/ou discriminações e mais uma vez a resposta majoritária foi negativa. Contudo, durante algumas narrativas de atividades corriqueiras foi possível perceber situações claras de preconceito e discriminação, fosse racial ou por orientação sexual, conforme se verifica nas falas de Ellen e Renato.

[...] o primeiro São João dela – que ela estava no meu braço, a gente estava brincando. Eu encontrei uma colega minha de escola, de infância, que me cumprimentou. Eu senti preconceito não com relação à orientação sexual, mas com relação à cor porque a minha filha é morena – o meu filho também é moreno, mas é mais claro que ela. Mas, foi mais com relação à cor. Do tipo: É sua sobrinha? É filha de alguém da sua casa? Essas coisinhas assim que eu vivi e que acho interessante...

Já com Renato, o preconceito versou sobre a orientação sexual dele e de seu companheiro e também sobre a sua configuração familiar.

O Jean é arquiteto e estava vendo umas coisas para um projeto que ele estava fazendo. Eu estava com ela [Frida] no colo e veio a vendedora e disse: Que lindinha! Que fofinha!

Eu disse: Obrigado!

Ela disse: Ela já esteve outro dia com a mãe dela.

Eu disse: Não querida, ela não veio aqui com a mãe dela.

Daí ela disse: Ela veio sim, com a mãe e com o pai (e apontou para o meu companheiro assim)

Eu disse: Não querida, não é a mãe! Certamente... E ela disse: É a mãe dela sim!!

-Não é a mãe dela, é uma amiga nossa que [...] que veio com ela. Ela tem dois pais. Ele é pai e eu também sou pai. Não tem mãe.

Aí ela disse: Pobrezinha, mas ela é lindinha assim mesmo! (RENATO) Em ambos os casos, se explicita não apenas atitudes preconceituosas por parte da amiga de Ellen ou da vendedora da loja visita por Renato. Para além dos juízos provisórios depreciativos, verifica-se a materialização desses juízos por meio das falas e da atitude discriminatória para com a cor da pele da criança ou pelo fato dela possuir dois pais. A este respeito, podemos acrescentar análises ao debate acerca do preconceito ao afirmarmos que, juntamente com este, o segmento LGBT

vivencia cotidianamente, nos mais diversos âmbitos da vida social, a “materialização, no plano concreto das relações sociais, de atitudes arbitrárias, comissivas, ou omissivas, relacionadas ao preconceito, que produzem violação de direitos dos indivíduos e dos grupos” (RIOS, 2007, p.113), ou seja, a discriminação.

A orientação sexual não deve ser fator determinante quando pensarmos em parentalidade seja esta biológica ou social – no caso da adoção. Cabe aos homens e as mulheres o pleno exercício de suas faculdades e possibilidades humanas, intelectivas, afetivas, sexuais, sociais e parentais, sem distinção ou depreciação. A todos os indivíduos devem ser garantidas condições objetivas e subjetivas de vida e, aqui não se exclui a escolha de serem mães e/ou pais, seja por vias biológicas ou por via da adoção, pois.

Considerando que a vivência da sexualidade constitui uma das necessidades básicas dos indivíduos como negá-la, ocultá-la, obscurecê-la, abstraindo-a da condição de ser humano que, na sua objetivação enquanto tal, necessita responder a múltiplas dimensões de sua existência quer de natureza social, política, cultural, ética e sexual? (MESQUITA, 2001, p. 01).

O fato de pessoas relacionarem-se afetiva e sexualmente de forma diversa da heterossexualidade instituída não deve servir de argumento nem fundamento para serem discriminadas, tolhidas ou retiradas do processo de constituição de relações afetivas e familiares, uma vez que tais expressões de opressão constituem- se em situações evidentes de violência, violação e negação da diversidade humana.

4.2 DO QUE NÃO DÁ PARA DIZER TUDO NO PAPEL: EXPERIÊNCIAS COMO