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Crédito e manipulação simbólica

No documento Open O crédito na sociedade de consumo. (páginas 83-89)

CAPÍTULO II Sociedade de consumo e crédito

2.4 Crédito e manipulação simbólica

O segundo sentido do crédito relaciona-se com a própria concepção do que vem a ser sociedade de consumo, que pode ser definida pela referência ao commodity sign. Nesse recorte, há uma busca do consumidor em satisfazer seus ímpetos consumistas, inclusive com a aquisição da novidade, seja em experiências,

aventuras, seja em mercadorias. No que diz respeito tanto às experiências quanto aos produtos, os consumidores de crédito passaram a lhe dar diferentes significantes, e é nesse aspecto que entra a discussão de ser o crédito mais que um intermediador econômico, mas um objeto de consumo e, portanto, passível de ser manipulado simbolicamente pelo consumidor. Assim sendo, o caráter simbólico do crédito foi se estabelecendo no tempo, evidenciando um comprometimento diferente da estratégia primeira referente ao seu sentido de intermediador da atividade comercial. As associações simbólicas face ao crédito referem-se a muitas possibilidades que vão desde ser o crédito um mecanismo de reconhecimento e distinção social, como também de coesão dos valores morais apreendidos no seio familiar, evidenciando que a ação dos agentes se orienta predominantemente a valores24. Por conseguinte, não se pretende dizer que ambos os sentidos – o da

intermediação econômica e o da manipulação simbólica – ocorreram em momentos diferenciados, uma vez que ambos os sentidos coexistem e não se excluem. Mas é pertinente observar que, à medida que a sociedade de consumo se desenvolvia, o crédito nesse ambiente, além de se manter do modo primário, também se transformou em significados vários quando ocorreu a apropriação do crédito como produto a ser consumido e não mais, apenas, na qualidade de instrumento intermediário para o consumo. O crédito passou a ser a própria mercadoria e, nesse aspecto, é possível que o consumidor não se aproprie, apenas, do seu valor de uso, mas dos seus significantes.

Marx (1985, p.41-42) sugere que é a utilidade de uma coisa que a faz ter o seu valor-de-uso. Basta que o objeto sirva tanto para prover às necessidades quanto ao conforto do ser humano, sendo que “o valor-de-uso só se realiza com a utilização ou o consumo.” Assim também se compreende o crédito: este tem o seu valor-de- uso mensurado a partir do momento em que o consumidor o solicita nas instituições financeiras, independente da quantia em dinheiro que lhe seja concedido, pois se compreende que o próprio crédito é um objeto consumido por si mesmo, assim como o crédito enseja a possibilidade de ser usado no consumo de outros bens, tanto que “não importa a maneira como a coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio de subsistência, objeto de consumo, ou indiretamente,

24 Cf. WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. vol. I, 3.ed.

como meio de produção” (MARX, 1985, p.41-42). É como objeto de consumo e como mediador do consumo que se percebem as suas associações simbólicas.

Se se considerar a atividade creditícia ao consumo na qualidade de capital, que corrobora com a delimitação sobre quem pode ou não ser considerado consumidor nos moldes da sociedade de consumo – pela possibilidade de aquisição de bens e serviços – o crédito pode ser, portanto, a mercadoria que, além de permitir ser ostentada por si mesma, ostenta-se quando utilizada como meio de aquisição dos demais bens. Propõe Marx (1985, p.41) que “a mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas [...] provenham do estômago ou da fantasia”. Como sugere Slater (2002) se inexiste restrição sobre o quê pode ser consumido, pois tudo pode transformar-se em mercadoria, compreende-se que o crédito é uma mercadoria, no entanto, é uma mercadoria que assim se perfaz pela associação simbólica feita pelos consumidores.

György Lukács (2003) sugere, com fundamento em Marx, que no momento em que os valores de uso surgem como mercadorias, tais valores ganham uma nova objetividade, sendo a substância primária e intrínseca ao valor de uso destruída a ponto de desaparecer. Desta feita, o autor chama a atenção para o fato de que o próprio objeto “é desfigurado em sua objetivação por seu caráter de mercadoria” (LUKÁCS, 2003, p.210), ocorrendo essa autonomização da mercadoria diante de seu valor de uso tanto em face do consumidor quanto do produtor. Assim sendo, entende-se que cabe ao crédito, enquanto objeto/mercadoria essa mesma lógica. Nesse sentido, propõe Baudrillard (1975, p.83):

Nunca se consome o objeto em si (no seu valor de uso) – os objetos (no sentido lato) manipulam-se sempre como sinais que distinguem o indivíduo, quer filiando-o no próprio grupo tomado como referência ideal quer desmarcando-o do respectivo grupo por referência a um grupo de estatuto superior.

A possibilidade da mudança do uso original do crédito encontra-se pautada justamente na manipulação simbólica realizada pelo consumidor, que deixa de percebê-lo na sua valoração original (intermediação financeira) para, então, propor- lhe uma alteração no uso, seja para utilizá-lo como mecanismo de distinção social através da credibilidade e poder, seja para estabelecer um estilo de vida, ou até

mesmo negando-lhe o uso por significar desprestígio. Abordar a possibilidade de associações simbólicas ao crédito enquanto mercadoria não se afasta do entendimento sobre a manipulação simbólica dos objetos pelo indivíduo, cujo debate encontra-se presente no que se denomina de cultura de consumo.

Em se tratando de dimensão cultural da economia pela simbolização dos bens, a possibilidade de o consumidor suprimir o valor de uso original de um bem e dar-lhe uma ampla variedade de associações e ilusões culturais é perfeitamente plausível. Neste sentido, Adorno (apud FEATHERSTONE, 1995, p.33), por exemplo, enfatiza que a mercadoria assume um ersatz ou um valor secundário, pois o valor de uso original dos bens é suprimido, ficando “livres para adquirir uma ampla variedade de associações e ilusões culturais”. A respeito dessa temática Baudrillard (1975) sugere que a lógica social do consumo não se perfaz na apropriação, pelo indivíduo, do valor de uso dos bens e dos serviços, nem da lógica da satisfação, porque é a lógica da produção e da manipulação dos significantes sociais que permitirá a análise do processo de consumo como processo de significação e de comunicação e, como processo de classificação e de diferenciação social.

Por outro lado, a possibilidade de o crédito apresentar-se sob o significado da experiência é plausível, justamente, porque o objeto de consumo também se reporta a esse sentido. Pode-se compreender que a sociedade de consumo moderna apresenta-se como uma sociedade em que os consumidores buscam por bem-estar e por prazer. Para Bauman (1998, p.10) “os mal-estares da pós-modernidade proveem de uma espécie de liberdade de procura do prazer (...)”. Lipovetsky (2007), por exemplo, propõe que houve uma mudança no perfil do consumidor que busca experiências emocionais e bem-estar, e o resultado desse comportamento seria a imprevisibilidade e a volatilidade dos sujeitos. Assim sendo, nada obsta que o crédito seja usado pelo consumidor como fonte de produção de experiências de prazer, na medida em que o faz acreditar que pode obter o que deseja consumir, bem como ser fonte de sensações que estimulem experiências prazerosas como, por exemplo, a cirurgia plástica. Conforme divulgado no sítio de notícias InfoMoney25 a maior

procura pela cirurgia plástica foi motivada pela oferta crescente do crédito ao

25 Cf. INFOMONEY. Crédito cresce e preocupa. São Paulo, 12 set. 2008. [São Paulo] Disponível em:

<http://web.infomoney.com.br/templates/news/view.asp?codigo=1301904&path=/suasfinancas/orcam ento/familia>. Acesso em: 02 jul. 2009.

consumidor. Neste sentido, o crédito pode proporcionar sensações e experiências prazerosas de consumo, incluindo o fato de servir para impressionar aqueles que o consumidor acredita estarem lhe observando no quanto e em quê pode gastar.

Entretanto, em alguns contextos atuais, a negativa quanto ao uso do crédito apresenta-se na concepção de que o crédito é autônomo do fato de possuir dinheiro, e portanto, é negação da ascensão social simbólica (porque a mobilidade social real não se consubstancia na mensuração da quantidade de crédito e de bens adquiridos pelo crédito). Assim sendo, a mudança simbólica que sofreu o crédito desde o início de seu uso para o consumo consiste em que, antes, ter crédito era simbolicamente associado no sentido de ter status, como medida distintiva daquele consumidor que detinha credibilidade dos comerciantes, das instituições financeiras ou das lojas que ofertavam seus produtos no crediário, mas por outro lado, a negativa do uso do crédito apresenta outro sentido simbolicamente associado à ausência de poder econômico, o que equivale a associá-lo como retomada simbólica da condição de pobreza e de desprestígio social.

Percebe-se que crédito não é somente o mesmo que dinheiro. Pode ter sido elemento simbólico de ascensão e prestígio sociais, porque através dele pôde-se alcançar reconhecimento social. Era elemento que demonstrava a liberdade, o poder econômico, o poder de realmente dispor. Com mais ênfase no passado, e hoje com um caráter secundário, o crédito é uma estratégia do desejo, de se integrar ilusoriamente a uma realidade que pode ser que permaneça ou não, dependendo do poder de pagamento futuro do devedor. É a tentativa de perdurar a ideia de igualdade, seja pela quantidade de bens que se adquire, seja pela finalidade de reconhecimento social, mas que, como sugere Baudrillard (1975), essa concepção não passa de um mito.

Baudrillard (1975) sugere que o consumo possui um sentido, sendo atividade manipuladora de signos e, nesse aspecto, “transformou-se a relação do consumidor ao objeto: já não se refere a tal objeto na sua utilidade específica, mas ao conjunto de objetos na sua significação total” (1975, p.18). A transformação do modo como o consumidor utiliza o crédito decorreu do próprio capitalismo financeiro, da sua racionalidade na oferta de serviço financeiros diversos e inserido na ausência de restrição do que pode ser consumido, porque tudo pode transformar-se em

mercadoria (SLATER, 2002). O crédito não se tornou objeto de consumo a mercê do consumidor. Para Baudrillard (1975) o consumo não se apresenta como uma forma passiva de aquisição de mercadorias em face do modo ativo de produção das mesmas. Para ele, o consumo caracteriza-se como modo ativo de relação entre os objetos, a coletividade e o mundo, em que se pauta o sistema cultural. Argumenta que os objetos e os produtos materiais não são o objeto de consumo. Aqueles são o objeto da necessidade, da satisfação dos consumidores. O objeto, portanto, pode ser qualquer coisa, seja algo material quanto algo imaterial; pode ser um evento da natureza, bem como uma ideia. Assim sendo, o crédito enquadra-se na lógica da dominância do valor de troca suprimindo-se o seu valor de uso original e adquirindo associações simbólicas pelo consumidor.

No início da atividade creditícia a base do crédito era o próprio dinheiro. Mas o crédito autonomizou-se por encerrar aspectos simbólicos que consistem em poder socioeconômico e ausência desse poder. Nesse contexto, considerando o crédito um objeto de consumo e, portanto, manipulado simbolicamente, o que se deve conjecturar é que se “leva em consideração o caráter simbólico e comunicativo de todos os objetos”, cujo interesse repousa “na análise cultural do comportamento econômico e no modo pelo qual os bens de consumo carregam significado cultural. [...] meio para a expressão, transformação e mesmo inovação das ideias culturais” (MUKERJI apud McCRACKEN, 2003, p.28-29). Deste modo, os objetos não mais se vinculam a uma função ou necessidades definidas, “precisamente porque correspondem a outra coisa, quer ela seja a lógica social quer a lógica do desejo, às quais servem de campo móvel e inconsciente de significação” (BAUDRILLARD apud RETONDAR, 2007, p.41). E nesse entendimento que se insere o crédito tratado nesta Tese.

No documento Open O crédito na sociedade de consumo. (páginas 83-89)