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Crédito como poupança

No documento Open O crédito na sociedade de consumo. (páginas 152-157)

CAPÍTULO IV O uso do crédito e reconhecimento social

4.3. Aspectos da racionalização do crédito e a mudança nas relações sociais

4.3.2. Crédito como poupança

A questão do reconhecimento passa pela racionalização do crédito, através da mudança de atitudes e de valores. Souza (2004) propõe uma explicação acerca da hierarquia valorativa das instituições modernas, que terminam por transpassar para a rotina dos sujeitos. Nesse aspecto, o autor faz alusão aos argumentos de Charles Taylor (2005) e às fontes do self moderno a fim de tratar da configuração de valores próprios do racionalismo ocidental. De acordo com Taylor (2005) as esferas práticas do trabalho e da família passaram a definir o lugar das atividades superiores. Taylor (2005) tenta com isso alcançar uma hierarquia social específica, bem como a noção de reconhecimento social singular baseado nessa hierarquia. Deste modo, quando os informantes alegaram que não utilizavam o crédito porque preferiam o pagamento à vista, e após a análise dos discursos, foi observado que os entrevistados estavam tentando, na verdade, remodelar o próprio discurso para demonstrar o posicionamento que acreditam ter na hierarquia social mediante a mudança de valores e atitudes.

Se os informantes encontram-se em uma situação entre iguais a tendência, portanto, é ter uma nova conduta para alcançar a distinção que os coloquem distantes do grande público que tem acesso ao crédito. Nesse sentido, os informantes ao invés de ressaltarem o valor tradicional da confiança [até porque atualmente o mesmo não faz mais sentido estrategicamente], passaram a se comportar na expectativa dos valores das instituições modernas. Tanto é que, apesar de negarem em um primeiro momento o uso do crédito, acabaram por admitir, depois de alguns minutos de entrevista, que o crédito ainda fazia parte de suas vidas. Todavia, muitos deles somente admitiram isso justificando que, para tanto, havia, na verdade, uma conduta voltada para a poupança vinculada ao uso do crédito. No entanto, a menção dessa economia é, na verdade, mais uma estratégia do discurso para se alcançar prestígio e reconhecimento sociais. Sobre ser o crédito

uma estratégia de economia a informante N.C. afirma o seguinte:

Eu acredito que é porque não tem dinheiro aí tá tentando no crédito. [Mas] nem sempre, nem todo mundo... nem todo mundo tem dinheiro e paga à vista, às vezes prefere guardar o dinheiro e entrar no crédito. (Comunicação oral)

De acordo com outro informante, o crédito também é considerado como poupança, apesar do entrevistado ter considerado que para muitos o uso do crédito é uma questão de “safadeza”, no entanto, interpreta-se esse argumento como uma reação à desvalorização do crédito devido à mudança de valores em consequência da racionalização, uma vez que esse mesmo informante relatou que quando teve acesso ao crédito pela primeira vez (ao receber o cartão de crédito do banco) se sentiu com poder, valorizado, reconhecido. Atualmente, o discurso do informante J.B. é no sentido de desprestigiar o uso do crédito, apesar de considerá-lo como poupança:

Eu acredito que não tem bastante dinheiro pra ter crédito, não. Se paga com cartão é porque quer fazer uma economia para posterior necessidade, entendeu? Esse é uma classe. Outra classe paga [com crédito] por safadeza. Safadeza mesmo. Tem dinheiro, mas não quer gastar o dinheiro. (Comunicação oral)

É o que Taylor (2005) denomina de self pontual, ou seja, um novo sujeito moral que se desprende de contextos particulares e remodela sua ação (SOUZA, 2004). Concorda-se que os sujeitos antes orientavam suas ações em vista da confiança do outro, posto que, no passado, em relação ao consumo mediado pelo crédito, suas ações eram conduzidas para aquele valor tradicional, porém atualmente, os informantes remodelaram suas ações orientando-as de modo diverso para assegurar o reconhecimento social. Quando Taylor (apud SOUZA, 2004) sugere que a ordem religiosa tradicional foi desvalorizada através do espírito reformador, a hierarquia social àquela vinculada também foi rejeitada, assim como foram rejeitados os valores que estavam sob a influência daquela ordem religiosa tradicional. Assim sendo, o surgimento de uma nova hierarquia social deu-se com base no self pontual, em que se consolidam o cálculo, o autocontrole e a autoestima, sendo este último o valor que importa como condição do reconhecimento aqui

tratado. No entanto, a concepção tayloriana converge para uma condição igualitária entre os sujeitos, posto que “em vez da 'honra' pré-moderna, que pressupõe distinção e privilégio, a dignidade pressupõe o reconhecimento universal entre iguais” (TAYLOR apud SOUZA, 2004). Nesse norte Taylor (2005, p. 29-30) propõe que:

Nossa “dignidade”, na acepção particular que emprego aqui, é nosso sentido de merecer respeito (atitudinal). [...] O que, precisamente, julgamos constituir nossa dignidade? Pode ser nosso poder, nosso sentido de dominar o espaço público; ou nossa vulnerabilidade diante do poder; ou nossa autossuficiência, o fato de nossa vida ter seu próprio centro; ou o fato de sermos queridos e admirados pelos outros, um centro das atenções.

Concorda-se com Taylor (2005) no sentido de considerar que os sujeitos buscam o respeito dos outros, mas, discorda-se no ponto em como esse respeito é adquirido. Sugere Taylor (2005) que a dignidade é o fundamento da autoestima e o reconhecimento social dar-se-ia na igualdade entre os sujeitos. Realmente, o crédito é possibilitado pela ideia da acessibilidade democrática, reportando a uma condição entre iguais. Entretanto, é justamente por causa dessa igualdade que os informantes buscam o reconhecimento social através do pagamento à vista, que é situação que os distingue da maioria que utiliza crédito. Por outro lado, o que os informantes denominam de poupança não consiste naquela economia de dinheiro para o consumo a posteriori: o consumo é imediato através do crédito, pois na prática inexiste uma poupança real. A necessidade de reconhecimento social é tamanha que os informantes pretendem justificar o uso do crédito mediante o ponto de vista de uma economia que, em termos práticos, inexiste. Por outro lado, perseguindo a esteira de Hegel, porém se distanciando em aspectos fundamentais do entendimento de Taylor encontra-se Axel Honneth com sua concepção acerca da luta pelo reconhecimento. Sugere Honneth (2003, p.207):

Nas sociedades modernas, as relações de estima social estão sujeitas a uma luta permanente na qual os diversos grupos procuram elevar, com os meios da força simbólica e em referência às finalidades gerais, o valor das capacidades associadas à sua forma de vida.

respectivamente, as oriundas das relações de amor41, as que decorrem das relações de direito e as que surgem pelas relações de solidariedade. Tratando-se do crédito, de acordo com os valores das instituições modernas, verifica-se que a acessibilidade ao crédito consiste nos “princípios morais universalistas construídos pela modernidade” (ARAÚJO NETO, 2011, p.143), uma vez que é o sistema jurídico que proporciona o acesso democrático à atividade creditícia através das leis que tanto protegem o consumidor quanto lhe garantem o respeito à sua dignidade enquanto pessoa. É a última categoria do reconhecimento, segundo Honneth (2003), que consiste nas relações de solidariedade que se referem a valores. Sugere Honneth (2003, p.198):

Para poderem chegar a uma auto-relação infrangível, os sujeitos humanos precisam, além da experiência da dedicação afetiva e do reconhecimento jurídico, de uma estima social que lhes permita referir-se positivamente a suas propriedades e capacidades concretas.

É nessa última dimensão do reconhecimento tratado por Honneth (2003) que reside o conflito dos informantes. A estima social para os informantes não é assegurada pelo uso efetivo do crédito, mas pela possibilidade de ter crédito. Por esta razão, os informantes desvinculados daqueles valores tradicionais tão caros ao personalismo em consequência da racionalização, passaram a adotar como conduta de reconhecimento a negativa do crédito ou, simplesmente, justificando em seus discursos que o crédito é usado para economizar aquele valor que seria usado de imediato, ou seja, por exemplo, pelo discurso dos informantes eles querem dizer que muitas vezes o cartão de crédito é utilizado da seguinte maneira, ao invés de pagar R$ 100,00 (cem reais) paga-se em quatro parcelas mensais de R$ 25,00 (vinte e cinco reais), e por mês estar-se-ia “poupando” R$ 75,00 (setenta e cinco reais). Contudo, essa poupança retratada pelos informantes não é a mesma tratada na ética protestante de Weber (2004). Segundo o teórico o consumo teria sido estrangulado pela ascese protestante que ganhou espaço sobre o enriquecimento pautado na ética tradicionalista, rompendo com o apego aos bens e ao uso irracional

41 Segundo Suzana Guerra Albornoz (2011) Honneth recomenda um uso mais neutro da palavra

amor, posto que as relações amorosas devem ser entendidas como aquelas que possuem uma ligação emotiva entre poucas pessoas, podendo ser uma relação erótica entre parceiros, amizade, relação pai e filho, entre outras.

das posses. Para os poupadores de Weber (2004) a razão e os valores orientavam os ganhos e o seu emprego estava em conformidade com os mandamentos divinos. Nesse sentido, condenava-se a ostentação do luxo e enfatizava-se a concepção puritana do trabalho e na ascese vocacional. Weber (2004, p.160) cita John Wesley, cuja passagem serve para comparar o comportamento daqueles poupadores e o dos informantes: “não nos é lícito impedir que as pessoas sejam laboriosas e frugais; temos que exortar todos os cristãos a ganhar tudo quanto puderem, e poupar tudo quanto puderem; e isso na verdade significa: enriquecer”. Deve se ter em mente que há diferença entre esses poupadores citados por Weber e os informantes. A economia a qual se refere os informantes é real porque inexiste poupança. O que há, na verdade, é um discurso que se utiliza de um recurso para o informante assegurar o reconhecimento social, mesmo utilizando o crédito (uma maneira de não “ficar por baixo”). O argumento dos informantes de que o crédito é um mecanismo de poupança é, na verdade, uma forma de driblar a opinião alheia de constatações negativas pelo fato de precisarem utilizar o crédito. Apesar disso, em momentos distintos das entrevistas os informantes terminaram por confessar que, além de usar crédito, outrossim não fazem poupança:

Eu não gosto de dinheiro. [...] Quando eu tenho eu compro. Eu não guardo. Eu não faço, por exemplo, poupança. [Informante J.B.] (Comunicação oral) Eu nunca tive [poupança]... porque eu gosto [de não poupar]. [...] O mundo de hoje força você a tá devendo. [...] Você fica refém dele [do crédito]. [Informante V.A.S.] (Comunicação oral)

Se bem que eu não tenho muito amor, aquela questão de amor, eu apenas administro, tem gente que tem aquele amor ao dinheiro... Dá uma prioridade... eu não. [...] Agora essa questão de poupar... eu não tenho aquela preocupação de ter dinheiro e poupar, de ter aquela reserva, de ter aquela vaidade, não é pra isso não, eu tenho que ter qualquer importância reservada para suprir uma necessidade, minha e da minha família, como já teve de família já... Até porque esse dinheiro nunca chega a ser uma grande importância. [Informante A.M.F.] (Comunicação oral)

Assim sendo, foi constatado que apesar de os informantes terem argumentado ser o crédito um mecanismo de poupança, entretanto, tal não se confirma nem pelos discursos, nem pela própria natureza do crédito, haja vista ser este uma maneira de postergar o pagamento e não de economia.

No documento Open O crédito na sociedade de consumo. (páginas 152-157)