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4.2 Marco Zero I – A revolução melancólica

4.2.1 Crítica ao latifúndio

Caio Prado Jr., em seu ensaio de estreia, “Evolução Política do Brasil”, publicado em

1933, analisa na primeira seção o “Caráter Geral da Colonização Brasileira”, cujo cerne

consistiu na existência da colônia em função dos interesses do mercado externo que, em última instância, determinou o conjunto de ações e omissões praticadas pelos portugueses. O autor assinala como aspecto mais profundo da colonização a forma pela qual a terra foi distribuída, pois a existência do latifúndio para produção com fins de exportação definiu a concentração de riquezas, o regime de trabalho escravo, o domínio político dos proprietários rurais, além da própria estrutura de classe dessa sociedade (PRADO JÚNIOR, 1980).

Essa estrutura pouco mudou de um regime a outro, uma vez que tais movimentos ocorreram de cima, sem participação popular. Skidmore (1976) observa que os proprietários de terras, a princípio contra a abolição da escravatura, quando percebem a inevitabilidade do fato tratam de participar ativamente do processo para garantir que fosse feito da forma mais

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Ver artigo referente ao brasão no wikipedia:

124 segura aos seus interesses, bloqueando a ação de grupo mais radicais que pudessem propor distribuição de terras a ex-cativos.

Em Marco Zero I, Oswald procurar explorar aspectos da realidade que brota dessa estrutura: os conflitos de terra, mas também as práticas e mentalidades desses proprietários do café. Intenta mostrar a violência e a decadência que assolam tudo em volta. Logo na abertura do romance dois posseiros, Minguelona e Pedrão, conversam sobre a luta pela terra. Pouco depois Pedrão é assassinado:

- Garra a terra, Pedrão! - Não largo não!

- Tá arresorvido entra pro nosso bando? - Mecê é o Lampião do Sur...

[...]

- Como vai lá na serra? [...]

- Tô prantando. Às veiz dô um tiro pra espanta argum ladron. - Aqui é a poliça que judá robá.

Sacudiram a cabeça obstinadamente de disputadores da terra contra os senhores que tinham o papel selado com o selo do império.

- Bão. Té logo! Vô logo sabê do risurtado da vistoria. Vô do divogado. A velha recomeçara a marcha. Gritou já de longe.

- Defende a terra, Pedrão!

O homem, que erguera da estrada uma estaca arrancada por mãos inimigas, onde se via o piche recente, murmurou:

- O capitar empregado aqui não se perde. Prefiro saí aos pedaço...

Um tiro, vindo da baixada estalou na moita de bananeiras. (p.3-4, grifo meu).

A cena seguinte se passa no enterro de Pedrão, onde surge um “português”, um grileiro suspeito de ser o assassino do posseiro. Há confusão e acusações. O advogado dos

posseiros intervém: “- Nos Estados Unidos, dão as devolutas antes de griladas...” (p.5).

Seleciono duas falas que denunciam o latifúndio improdutivo:

“- Tão brigando por causa duma porcaria de terra. Eu já disse por Anjo Leite larga

mão dos Formoso. O Majó tem chão demais e não aporveita. E inda qué tirá tudo dos possero” (p.11, o grifo meu).

“O gosto dele é dize: “Mecê tá veno aquela montanha lá embaixo? Aquela azur... por detrais ainda é meu”. “E o que mecê pranta?” “Carrapato!”(p.12, grifo meu).

125 Em outros momentos o autor quer retratar a mentalidade desse grande proprietário, a violência e a perpetuação de práticas da casa grande, como o “senhorzinho” que vai se servir das negras (e depois das colonas) que trabalham na fazenda para realizar seus desejos e pulsões sexuais. Na primeira cena abaixo, o Major é entrevistado por Leonardo, que se indigna com o que ouve e vê, como os maus tratos sofridos pelo negro Tomé. A segunda trata do filho do Major, que estudava na capital em internato, participando do universo da fazenda onde ocorre sua iniciação sexual:

- o que é a morte? A morte não existe; é uma integração, uma passagem para o destino de cada um. Todos os habitamos a morte...

- É a realidade brasileira!... – exclamou Leonardo. - No Brasil, vivemos na idade da pedrada . - Na pedra?

- Não. Da pedrada... do bacamarte... - Evoluiremos um dia.

– Temos que ter ainda Napoleão, Luís XVIII, Carlos X,...

- E depois?

- Luís Felipe. Depois eu morri. Dentre todos os bichos da mata ou do quintal, do carnívoro ao réptil, o homem é o mais desanimado e o mais infeliz porque sonha em viver em estado tribal. Por isso eu resido aqui, longe de minha taba urbana.

O major apanhara uma vara de marmeleiro.

Tomé aproximava-se. O comunista havia se levantado, pensando que, contra certas exaltações da burguesia, só se pode conversar com uma metralhadora na mão. O latifundiário gritou solenemente para o preto:

- Cante o hino Nacional, crioulo. Cante! Tomé abriu a boca.

- Eu não sei. Só sei os pedaços... (p.37, grifo meu).

Depois de longos anos de internato com as férias na casa de São Paulo, tivera a primeira impressão da fazenda. Viera ansioso, encontrara na estrada a avó num trole puxado por dois cavalos. Aproximara-se reverente para lhe beijar a mão e ela lhe perguntara: - Você já viu seu pai? Ele está na cocheira, castrando animais. – encontrara dois potros amarrados pelas pernas, deitados no chão. Sofriam a operação que o Major, em mangas de camisa, executava acompanhado por dois peões. Perto havia um ferro em brasa.

Pouco a pouco integra -se naquela rudeza cultivada da Formosa. Viera a iniciação sexual adolescente na bestialidade dos contatos do campo. Era o senhorzinho. A negra desdentada sorria na cozinha.

Não conto nada! Mecê pode forgá! (p.46, grifo meu).

Em outra passagem, trata dos efeitos ecológicos nefastos do latifúndio, da monocultura que destruiu a natureza primeira. Com a crise do café reiniciam outros plantios.

Nenhuma árvore de horizonte a horizonte. A primeira vestimenta da terra desaparecera com a primeira gente. Tinha morrido nas mãos latifundiárias do café sob o lençol de chumbo na monocultura. Deitados, jequitibás e perobeiras, na derrubada e no inocêncio, a força da terra criara o café licoroso. Só agora com a crise, os valados começavam a ver o plantio da cana-de-açúcar, dos cereais carbo- hidratados, do tungue oleaginoso. O maior esforço agrícola do mundo! (p.48, grifo meu).

126 O conflito de 1932 é visto por Oswald como gerado pela crise do latifúndio cafeeiro. Em diversos trechos do livro ele evidencia que o problema não era apenas a Constituinte que

ainda não tinha sido realizada, nem tão somente o “orgulho paulista” ferido, mas, sobretudo, a

mudança de prioridade econômica do novo governo. Diferente da República Velha o café não era mais subsidiado. Assim Leonardo reflete sobre as verdadeiras causas da decadência do café e sua civilização:

As causas são muito mais profundas. Primeiro a monocultura. O café fornecendo todas as letras de exportação. Fazia a finança do país. Dele dependia o câmbio. O fazendeiro diferenciava-se do industrial como classe. Era pioneiro, mas também era dilapidador. Abriu novas terras, a Noroeste, a Alta Sorocabana. Mas queria o bom preço do produto, por artificial que fosse. Entregava-se economicamente. Hipotecava as terras ao imperialismo inglês e vendia o produto ao imperialismo americano, esses dois anjos... Contanto que bebesse champanhe nas pensões e andasse de automóvel cheio de francesas. É claro que o movimento de 30 que se fez contra a hegemonia paulista não ia salvar São Paulo... (p.111).

Adiante, ele conclui que, apesar dos traços de modernidade aparentes, do avanço da

“civilização da máquina”, a base agrária da sociedade permanece e com ela a mentalidade

feudal. Não só em São Paulo, mas também no Nordeste.

A mancha feudal persiste em São Paulo. É isso que produz a revolução. Nos modos e nos hábitos há progresso aqui. A civilização da máquina dilui e apaga as culturas. Mas a cultura campesina do planalto persiste. Carlos Marx já disse que vivemos na pré-história. Aqui é a mancha agrária oriunda do café que dá o tom. No nordeste, a mesma coisa, vinda da cana e dos currais. Toda essa gente se veste pelo cinema mas tem alma ainda da selva selva ggia... (p.140).