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Crítica aos prejuízos do racionalismo cartesiano

No documento Merleau-Ponty: uma ontologia do visível (páginas 45-49)

Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), na terceira parte de sua obra O Olho e o Espírito, desenvolve alguns pontos controversos da filosofia cartesiana quanto às questões voltadas para o campo da sensibilidade, especialmente sobre o tratamento da visibilidade. Nesta parte de sua última obra publicada em vida, o fenomenólogo francês dirige sua crítica à Dióptrica de Descartes, um discurso inserido num extenso projeto cujos critérios metodológicos pressupunham os princípios matemáticos como a

ferramenta a ser utilizada pelas ciências para o domínio da natureza63. Merleau-Ponty critica a tentativa cartesiana “de reconstruir o visível, na base de representações meramente intelectuais, em lugar de considera-lo a partir de nossa relação insuperável com o mundo percebido” 64. Merleau-Ponty (2013) critica o “pensamento operatório” e a posição privilegiada do cientista ao lidar com o real sem reconhecer a sua mistura com ele:

Pensar é ensaiar, operar, transformar, sob a única reserva de um controle experimental em que intervêm apenas fenômenos altamente “trabalhados”, os quais nossos aparelhos antes produzem do que registram. Daí toda sorte de tentativas errantes. Jamais como hoje a ciência foi sensível às modas intelectuais. Quando um modelo foi bem-sucedido numa ordem de problemas, ela o aplica em toda parte. (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 16). A aplicação do método matemático visava proporcionar um conhecimento indubitável por meio das ideias claras e distintas, as quais serviam como critério da verdade, tanto para a realidade extensa (formada pelas coisas determinadas por sua matéria e movimento, verdadeiramente conhecidas somente em termos quantitativos para o sujeito cognoscente), quanto para a própria realidade subjetiva (a do cogito essencialmente determinado pelo pensamento puro e não extenso). Em contrapartida, para o fenomenólogo francês “o mundo é aquilo que nós vemos como a expressão de seu aparecer, e não o que é concebido como uma construção mental instituída pela clareza do pensamento” 65. Para Caminha (2010, p. 219), “essa relação marca a oposição de Merleau-Ponty ao modelo tradicional de tratar a visão, sustentado na Dióptrica de Descartes”.

Segundo a perspectiva intelectualista:

Apenas a mente pode ordenar as impressões isoladas e descobrir progressivamente o sentido do todo percebido. A percepção é, assim, um ato de julgamento que cria, de uma só vez, com a constelação dos dados sensíveis, o sentido que os religa. Para percebermos uma coisa, é necessário que o entendimento nos revele a forma permanente da matéria sensível que nos é dada empiricamente como uma realidade mutável. (CAMINHA, 2010, p. 89).

63 A tentativa do projeto a tesia oà visaà exata e teà livrar-se dessa relação para estabelecer, com precisão, a visão como uma operação do pensamento, independentemente do mundo que nossos olhos podem ver. Com efeito, vemos somente aquilo que pensamos, pois o visível é apenas uma projeção de um mundo pensado . (CAMINHA, 2010, p. 219).

64 CAMINHA, 2010, p. 219. 65 CAMINHA, 2010, p. 219.

Assim, Descartes alicerçou o edifício do conhecimento e o construiu utilizando como argamassa as evidências alcançadas pelos critérios da clareza e da distinção, os quais foram resultantes de seu empreendimento metafisico. A fim de eliminar a equivocidade do mundo apresentada pela sensibilidade e desenvolver uma filosofia cuja apresentação do mundo se dá “de um modo mais límpido” e “sem equívoco”, ele procurou deslegitimar o poder da visibilidade ao tentar “exorcizar os espectros, fazer deles ilusões ou percepções sem objeto, à margem de um mundo sem equívoco” 66. Seu projeto visava “exatamente livrar-se dessa relação para estabelecer, com precisão, a visão como uma operação do entendimento, independente do mundo que nossos olhos podem ver.” 67.

A experiência perceptiva, segundo os intelectualistas, carece de uma atividade intelectual capaz de discernir a estrutura inteligível que subjaz aos aspectos mutáveis que se apresentam à sensibilidade. Neste sentido, perceber a realidade significa alcançar a identidade do objeto por meio da faculdade de julgar, que em sua análise dos dados sensíveis elimina todos os elementos que não contribuem para a definição de um objeto verdadeiro e imutável. Desse modo, tudo o que for obscuro e confuso será considerado falso e tudo aquilo que for passível de mudança não será considerado como elemento estruturante do ser. Assim, a atividade intelectual necessária à experiência perceptiva deve necessariamente “possuir de antemão a estrutura inteligível das coisas para conhecer suas formas puras, que são a única garantia de um conhecimento claro e evidente” 68.

Na Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty critica os prejuízos da tradição, sobretudo a abordagem intelectualista da percepção, que a considerava como um ato de julgamento e deslegitimava a multiplicidade de apresentações do objeto. A fim de obter uma determinação precisa do objeto, a sensibilidade foi considerada insuficiente e carente de outro ato que a corrigisse. É o sujeito enquanto agente cognoscente que formata o caos sensível a fim de determinar precisamente o objeto percebido. Assim só faz sentido falar em algo percebido caso o sujeito estabeleça uma ordem no conjunto de dados confusos que são fornecidos pelos sentidos. Neste sentido,

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MERLEAU-PONTY, 2013, p.28. 67 CAMINHA, 2010, p. 219. 68 CAMINHA, 2010, p. 87.

a sensibilidade atua simplesmente como fornecedora de dados a serem ordenados pelo espírito. Após tal ordenação é que o espírito tem diante de si algo percebido. Logo, para Descartes “as sensações são somente a matéria prima da percepção; com efeito, elas nos servem somente de sinais para nós descobrirmos o que significa uma coisa” 69.

Conforme a filosofia cartesiana, a visão é entendida como um pensamento que nos conduz ao engano por nos fornecer falsas informações sobre a realidade da coisa extensa, uma vez que a realidade material só poderá ser plenamente conhecida por meio dos critérios matemáticos, pois, “(...), com efeito, vemos somente aquilo que pensamos, pois visível é apenas uma projeção de um mundo pensado” 70. Desse modo, distorcendo a doação originária71 dada pela sensibilidade e, particularmente a visão, “a intelectualização da visão anula a experiência radical que ela representa, experiência da relação verdadeira da visão com o visível, vivenciada de maneira privilegiada no corpo” 72. Neste sentido, diz Chaui (2002):

Não por acaso, diz Merleau-Ponty, filosofia e ciência, desde Platão, erigiram a matemática como paradigma do conhecimento verdadeiro, isto é, elegeram como ideal do saber o ta máthema, aquele modo de pensar que domina intelectualmente seus objetos porque os constrói inteiramente. A tradição filosófico-científica e seu efeito principal – a tecnologia como domínio instrumental dos constructos – é abandono do mundo, mais velho do que nós e do que nossas representações, e abandono do pensamento encarnado num corpo, que pensa por contato e por inerência às coisas, alcançando-as de modo oblíquo e indireto. (p. 157).

A visão, a imagem, a pintura e o reflexo são tratados na Dióptrica como fonte de engano, como ilusão, pois, sendo “dessemelhantes” aos seus respectivos objetos, sua apresentação sensível nos induz aos falsos julgamentos sobre o mundo essencialmente definida como extenso, o qual “é sempre visto de fora, como se, através de um pensamento de ver, que confere uma exterioridade radical ao mundo percebido, nós pudéssemos determinar a existência de um mundo transparente” 73.

69 Idem, ibidem.

70

Idem, ibidem.

71 Segundo Dupond (2010, p. 62,à Me leau-Ponty procura restituir a percepção em seu sentido o igi io,à ueà àoàdeà se à ossaàa e tu aà eà ossaài i iaç oàaoà u do,à ossaà i se ç o à u à u do,à numa natureza,à u à o poà a i ado .àMa te do-se na juntura da natureza, que é sua base, com sua história, da qual ela é a fundação ou a instituição ao fazer o tempo natural virar tempo histórico, a pe epç oà ,àpo ta to,àoà fe e oào igi io àe à ueàseàdete i a o sentido de ser de todo ser que possa osà o e e .

72 MATOS DIAS apud CAMINHA, 2010, p. 219. 73 CAMINHA, 2010, p. 219.

No documento Merleau-Ponty: uma ontologia do visível (páginas 45-49)