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O enigma da visão

No documento Merleau-Ponty: uma ontologia do visível (páginas 66-70)

Merleau-Ponty afirma que o enigma da visão não é eliminado por Descartes, o que o leva a questionar um problema não explorado na Dióptrica122. A fim de não solidificar um argumento contra seu próprio projeto, o filósofo moderno dedica seus esforços para explicitar que “a visão é um pensamento condicionado, nasce por ocasião do que acontece no corpo, é excitada a pensar por ele” 123. Segundo Merleau-Ponty “o pensamento da visão funciona segundo um programa e uma lei que ele não se atribuiu, ele não está de posse de suas premissas, inteiramente atual, há em seu centro um mistério de passividade” 124. Segundo Merleau-Ponty (2013, p. 37):

Há a visão sobre a qual reflito, não posso pensá-la de outro modo senão como pensamento, inspeção do Espírito, julgamento, leitura de signos. E há a visão que se efetua, pensamento honorário ou instituído, esmagado

121 MERLEAU-PONTY, 2013, p. 32. 122

MERLEAU-PONTY, op. cit. p. 36. 123 Idem, ibidem.

num corpo seu, visão da qual não se pode ter ideia senão exercendo-a, e que introduz, entre o espaço e o pensamento, a ordem autônoma do composto de alma e de corpo.

Ao explicar o funcionamento da visão por meio do complexo sistema nervoso e a consequente inspeção do espírito, o filósofo moderno trata ligeiramente sobre um ponto lacunar de sua obra e que suscita uma crítica do fenomenólogo à interação mente corpo. A crítica merleaupontiana se inicia ao trazer para sua reflexão o modelo proposto por Descartes para se pensar o acontecimento que envolve o espírito e o corpo. Valendo-se do discurso VI da Dióptrica, ele diz:

Quando, por exemplo, se quer compreender como vemos a situação do objetos, não há outro recurso senão supor a alma capaz, sabendo onde estão as partes de seu corpo, de “transferir dali sua atenção”125 a todos os pontos do

espaço que estão no prolongamento dos membros. (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 36).

Neste sentido, o fenomenólogo diz que a explicação cartesiana “é apenas um modelo do acontecimento” 126, um modelo que levanta a seguinte questão: “esse espaço de seu corpo que ela estende às coisas, esse primeiro aqui de onde virão todos os ali, como ela o sabe?” 127. Desse modo, Merleau-Ponty traz à reflexão uma espécie de saber natural que se dá no corpo, um “pensamento imemorial inscrito em nossa fábrica interna” 128. Este saber não é o do entendimento, do cogito tal como foi pensado com sua essência imaterial e que toma distância da extensão para poder compreendê-la, mas de um saber que se dá no e pelo corpo. Merleau-Ponty (2013) cita Descartes ao indicar que o filósofo moderno já tateava o obscuro enigma que ocorre no corpo:

E isso nos acontece ordinariamente sem refletirmos nisso, do mesmo modo que, quando apertamos algo em nossa mão, nós a conformamos ao

125

Pour la situation, c'est-à-dire le côté vers lequel est posée chaque partie de l'objet au respect de notre corps, nous ne l'apercevons pas autrement par l'entremise de nos yeux que par celle de nos mains; et sa connaissance ne dépend d'aucune image, ni d'aucune action qui vienne de l'objet, mais seulement de la situation des petites parties du cerveau d'où les nerfs prennent leur origine. Car cette situation, se changeant tant soit peu, à chaque fois que se change celle des membres où ces nerfs sont insérés, est instituée de la Nature pour faire, non seulement que l'âme connaisse en quel endroit est chaque partie du corps qu'elle anime, au respect de toutes les autres; mais aussi qu'elle puisse transférer de là son attention à tous les lieux contenus dans les lignes droites qu'on peut imaginer être tirées de l'extrémité de chacune de ces parties, et prolongées à l'infini. à DE“Cá‘TE“,à2002, p. 45). 126

Merleau-Ponty, 2013, p. 36. 127 Idem, ibidem.

tamanho e à figura desse corpo e o sentimos por meio dela, sem que para tanto haja a necessidade de pensarmos em seus movimentos. (p. 37). 129 Trata-se de uma percepção visual realizada pelo corpo que, tal como acontece com o tato, se autoorganiza e assim possibilita o pensamento de ver enquanto expressão segunda. Ele questiona o modelo cartesiano ao apontar o desdobramento da visão, uma duplicidade que a envolve e que indica uma ordem da existência. Há uma visão compreendida enquanto pensamento de ver, acerca da qual ele se dedica a uma explicitação pormenorizada, visto que segue as leis do entendimento e do julgamento. Mas há uma ação que se dá no corpo, de ordem psicofísica, que não recebe a devida investigação por parte do filósofo moderno e aponta para uma visão enigmática que se efetua no corpo. Neste sentido, nos deteremos numa lacuna do pensamento cartesiano que o filósofo Merleau-Ponty se deteve. De uma ordem da existência que somos apresentados pela experiência do simultâneo, uma experiência que coloca em xeque todas as tentativas dualistas de apresentar o visível como algo experimentado pelo espírito, mas que se encontra posicionalmente afastado do real. No próximo capítulo nos deteremos nesta nova ontologia que busca reabilitar o sensível e de devolver à imagem o seu papel primordial de nos colocar em contato com a profundidade do mundo visível.

129 Et ceci nous arrive ordinairement sans que nous y fassions de réflexion; tout de même que, lorsque nous serrons quelque corps de notre main, nous la conformons à la grosseur et à la figure de ce corps, et le sentons par son moyen, sans qu'il soit besoin pour cela que nous pensions à ses mouvements. à (DESCARTES, 2002, p. 48).

CAPÍTULO TERCEIRO – A ontologia do visível em Merleau-Ponty.

Talvez agora se perceba melhor todo o alcance dessa pequena palavra: ver. A visão não é um certo modo de pensamento ou presença a si: é o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir por dentro à fissão do ser, ao término da qual somente me fecho sobre mim.

Maurice Merleau-Ponty, O olho e o espírito (1961)

No presente e último capítulo iniciaremos nossa reflexão com algumas questões que marcam a direção contrária seguida pelo filósofo Maurice Merleau-Ponty em sua pesquisa sobre a percepção, a qual o conduziu a um confronto com a ontologia tradicional, bem como a uma dedicação na elaboração de uma nova ontologia distinta dos moldes dualistas cartesianos. Algumas das questões que nortearão este capítulo são as seguintes: O que a sensibilidade, a experiência com o próprio corpo e com as coisas nos ensinam sobre o mundo e sobre nossa relação com ele? Quais os enigmas que foram abandonados por Descartes e retomados por Merleau-Ponty ao interrogar a visão de fato? A sensibilidade, especialmente a visão, surge como primeiro enigma a ser interrogado por uma filosofia que propõem o desenvolvimento de uma nova ontologia. Sua proposta visa desfazer os preconceitos de uma tradição que não quis adentrar nas obscuridades do mundo sensível, o qual evidencia uma ordem da existência que põe em xeque o dualismo pensado por Descartes. Este, por negar o que a sensibilidade nos apresenta, descredenciou as imagens em nome de uma ontologia que define o Ser pelo Ser-objeto, um ser isolado de nossa experiência com ele, e, consequentemente distinto das imagens que nos relacionamos pela sensibilidade. O filósofo moderno nega a sensibilidade como fonte universal das construções humanas130 e elege o cogito como

130 Ou se entende, por física ou por ciência, certa maneira de operar sobre os fatos por meio de algoritmos, certa prática do conhecimento, de que são juízes somente os que possuem os instrumentos – e, então, são eles também que os únicos juízes do sentido em que tomam suas variáveis, não tendo, todavia, nem a obrigação nem mesmo o direito de darem a elas uma tradução imaginativa, de decidirem em nome delas da questão do que há, nem recusarem um eventual contato com o mundo. Ou, ao contrário, a física pretende dizer o que é, mas então não tem hoje mais fundamentos para definir o Ser pelo Ser-o jeto,à e àpa aàisola àaàviv iaà aào de àdeà ossasà ep ese taç es ,à oà seto àdeà ossasà u iosidadesà psi ol gi as ;à àp e isoà ueà e o heçaà o oàlegíti aàaàa liseàdosàp o edi e tosàpelosà quais o universo das medidas e das operações se constitui a partir do mundo vivido considerado como fo te,àeve tual e teà o oàfo teàu ive sal. à(MERLEAU-PONTY, 2005, p. 28).

aquele que sobrevoa e define o mundo sem se misturar com ele. Contrariamente, Merleau-Ponty fala que é preciso interrogar a visão de fato e os enigmas que ela nos apresenta, dentre os quais o da presença simultânea do corpo e das coisas. Ele defende a necessidade de questionar a experiência da sensibilidade e começar a filosofar sobre o mundo existente, o qual é mais antigo do que as nossas representações. Sendo assim, passaremos pelas noções que o filósofo contemporâneo apresentou sobre a experiência sensível, o corpo como vidente visível, bem como as implicações de um exame pormenorizado do caráter ontológico da pintura, visando uma nova reformulação do conceito de imagem na contemporaneidade.

No documento Merleau-Ponty: uma ontologia do visível (páginas 66-70)