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2.2 – A CRÍTICA DE HEGEL A KANT EM SEUS ESCRITOS JUVENIS

2 A CRÍTICA DE HEGEL À MORALIDADE KANTIANA

2.2 – A CRÍTICA DE HEGEL A KANT EM SEUS ESCRITOS JUVENIS

Hegel foi um leitor atento da filosofia kantiana, em particular, pela sua pertinência histórica e densidade conceitual. A centralidade da figura do sujeito reúne Kant e Hegel no que diz respeito à determinação da realidade, mas eles se separam na medida em que o sujeito kantiano reconhece o objeto e, diferentemente de Hegel, não se reconhece aí. Em seus escritos de juventude, Hegel tem em mente mostrar os limites da filosofia prática kantiana no que tange à dicotomia sujeito e objeto. Textos como o Espírito do Cristianismo, Sobre as Maneiras Científicas de Tratar o Direito Natural, O Sistema da Vida Ética, encontramos a dicotomia sujeito e objeto que difere Kant e Hegel em seus sistemas filosóficos.

De fato, aponta Hegel, o sujeito é o ponto de partida e também o ponto de chegada. Toda e qualquer investigação tem início no sujeito, pois é ele que se indaga sobre o objeto; é ele que põe as questões, já que é ele que considera o objeto. Na ausência do sujeito, o que permanece não pode ser determinado, posto que não há quem o faça. Além disso, a conclusão pertence ao sujeito. As respostas são as respostas do sujeito. O sujeito é a voz do objeto, sua expressão e, poder-se-ia até dizer, sua existência.

Apesar disso, a tão comentada “revolução copernicana” operada por Kant significa um marco determinante para a ciência e a história. O mérito kantiano, segundo Hegel, é o de estabelecer a centralidade do sujeito no processo de conhecimento no que tange à realidade. Entretanto, o sujeito hegeliano não é um ser passivo, que somente recebe conhecimento

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Diferente da dialética hegeliana é impossível pensarmos a existência da contradição na teoria kantiana da moralidade. O princípio da moralidade, o imperativo categórico, constitui-se como critério de permissibilidade

determinativo da moral, próprio da razão prática. “A ética de Kant não é formalista no sentido de ser uma ética

abstrata, que nenhum compromisso possui com a realidade; é formalista no sentido de que a exigência da validade universal de seus preceitos não permite que eles sejam extraídos do empírico, mas do racional. Trata-se de uma ética a priori. É no sentido de ser a priori que se pode chamá-la de formal”. In: Salgado, J.C A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: UFMG, 1986, p.170.

externo, se comparado com a noção de sujeito em Kant. Em outras palavras, o sujeito não se restringe em ser o começo e o fim do conhecer.

Diante dessas considerações surge a seguinte questão: o sujeito jamais chega a conhecer o objeto ou jamais saberá algo dele? Para Kant, a resposta é obrigatoriamente negativa. Essa constatação torna-se o motor da ciência, que se esforçará o tempo todo para capturar a totalidade do objeto de forma absoluta. Contudo, a busca da ciência não será cega e desenfreada, pois Kant deixa uma lição importante: o objeto permanece sempre distinto do sujeito, ou seja, sempre inacessível aos sentidos humanos.

A captura do objeto não precisa tornar-se uma obsessão, se entender que o conhecimento que se pode ter do objeto será sempre e forçosamente o maior possível. Tal conhecimento é também conhecimento, e é o que o sujeito pode obter. O esforço de reduzir o objeto ao sujeito permite que o conhecimento do objeto seja tanto quanto o sujeito conseguir aproximar-se do objeto. A dicotomia sujeito-objeto fica, portanto, explicita. Não há reconciliação viável entre sujeito e objeto; no máximo pode-se pretender um convívio pacificado e convencionado. Diante desse contexto surge a oposição de Hegel ao filósofo de Königsberg.

Para Hegel, o sujeito não pode ser delimitado pelo objeto, por ser ele quem efetiva o objeto. Hegel não nega a exterioridade do objeto nem as suas especificidades, mas não aceita que o sujeito não possa tê-lo. Nesse sentido, Hegel indica que o sujeito não se põe por si só, mas através da relação com o seu outro, isto é, o objeto. Dessa forma, não somente o sujeito atribui ser ao objeto. Se, de fato, é a relação que funda sujeito e objeto, então um sem o outro não pode se sustentar. Por conseguinte, sujeito e objeto podem se reconhecer um no outro. Esse reconhecimento de si no outro é o que caracteriza a definição do em si no outro de si. A interioridade não se perde na exterioridade sem que possa aí também se encontrar.

Não é por acaso que encontramos em muitos escritos de Hegel referências a essa dicotomia sujeito-objeto. Por exemplo, no Espírito do Cristianismo, Hegel manifesta contrariamente sobre a separação entre sujeito e objeto, Deus e homem. Além disso, o filósofo defende a tese de que, para superar a distancia entre homem e Deus, deve-se compreender tal distanciamento como algo historicamente realizado. A afirmação central do cristianismo é a de que Deus tornou-se homem e, este, por sua vez, tornou-se Deus. Desse modo, a maneira como o homem vê Deus é a mesma com a qual Deus vê o homem. No texto da maturidade, Hegel confirma suas ideias da juventude. “O olho com o qual Deus me vê, é o olho com o

qual eu o vejo, meu olho e o olho dele é um. Pela justiça eu tendo para Deus e ele para mim. Se Deus não fosse eu não seria e, se eu não fosse Deus não seria·” (HEGEL, 1970, p. 209).

Hegel entende que a aproximação entre o homem e Deus significa que o homem se reconhece em Deus, ou seja, a realidade do divino não é tomada como estranha ou desconhecida pelo homem. Pelo contrário, este se reconhece numa outra realidade que, assim, é posta dentro do domínio de sua atividade. O dualismo Deus-homem é superado pelo monismo deus humanizado ou homem divinizado. O acesso a Deus em Kant, no que diz respeito à demonstração e comprovação da existência, não se enquadra pelo campo da razão na experiência, mas sim pela fé. Deus não se encaixa nas exigências que possibilitam o conhecimento e, portanto, não pode ser objeto de consideração bem sucedida da razão. Certamente poderia ser dito que Kant se esforçou para provar que a razão trabalha em vão tanto em uma direção (a empírica) como em outra (a transcendental), e que ela inutilmente abre as suas asas para mediante a simples força da especulação ultrapassar o mundo dos sentidos (KANT, 1987, p.14-17).

Para Kant Deus não pode, por um lado, ser encontrado na experiência; ele não pode ser encontrado nem na experiência exterior, como Lalande descobriu quando varreu todos os céus e não encontrou Deus algum, nem pode ele ser encontrado na experiência interior; embora não haja dúvida de que os místicos e entusiastas possam experimentar muitas coisas em si mesmos, e dentre elas Deus, isto é, infinito. Por outro lado Kant argumenta para provar a existência de Deus, que é para ele uma hipótese necessária para a explicação das coisas, um postulado da razão prática (HEGEL, 1996, p.33).

A partir do exemplo da crítica de Hegel ao modelo dicotômico sujeito-objeto, elaborado por Kant, que se percebe a centralidade da oposição de Hegel a noção kantiana de lei. Dito de outro modo, mesmo que Kant afirme que a lei é a expressão máxima da racionalidade, ela não pode ser tomada como referência básica de defesa da liberdade. Atos e conseqüências da lei não são levados em consideração por Kant, pois qualquer ligação com uma manifestação empírica poderia desembocar no relativismo do princípio que pretende, por sua vez, ser universal. A variedade de conteúdos deve ser posta e orientada por um único critério. A razão, portanto, deve constituir-se como único critério do dever, não segundo determinações empíricas do querer individual, subjetivo. O conteúdo e motor da vontade deve

matéria da faculdade de desejar, que é sempre uma condição empírica dos princípios; deve poder determinar a vontade pela simples forma da regra prática” (KANT, 1977, p.132).

Hegel reconhece que a proposta kantiana se dirige ao mundo sensível, mas critica o fato de que Kant não retira a sustentação do empírico e sim do racional. Basta ao princípio o caráter formal para a sua realização e sua formalidade está na universalidade que somente é atingida se não houver condicionamento. Kant não discute se o mundo seria melhor se as pessoas observassem o princípio racional nem se o mundo seria pior. O que ele testifica é que o universalizável é melhor do que o que é particularizado.

Kant afirma, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, que seu empenho não

é outro que não seja a formalização do que já sabe o vulgo na sua prática cotidiana, “uma vez

que se queira percorrer o caminho analiticamente do conhecimento vulgar para a

determinação do princípio supremo desse conhecimento” (KANT, 1986, p. 18). O que o

indivíduo atualiza no seu dia-a-dia já está pressuposto na razão. Portanto, não se trata de algo posto pelo indivíduo ou que ele o construa, mas que tão somente já lhe é uma predisposição. Mas, isso seria insuficiente se não houvesse a justificação de sua validade. É precisamente

isso que Kant entende haver realizado na “Crítica da Razão Pura”.

Mas que a razão pura, sem mistura de qualquer princípio empírico de determinação, seja também prática por si mesma apenas, eis o que era preciso poder demonstrar-se, a partir do uso prático mais comum da razão, ao confirmar-se que o princípio prático supremo é um princípio que toda a razão humana natural reconhece como inteiramente a priori, independentemente de todos os dados sensíveis, e como lei suprema de sua vontade (KANT, 1986, p. 107).

Mas, como fica a questão da liberdade humana em Kant e Hegel? Para respondê-la, é necessário discernir e determinar como a noção de liberdade é praticada pelos dois filósofos. Nesse ponto, as divergências entre Kant e Hegel se acirram. Segundo Kant, a liberdade não é um direito, mas a condição para todo direito e, esforçar-se por preservar tal liberdade, implica em viabilizar os direitos da pessoa na sua diferença, alteridade. A defesa da liberdade somente chega a bom termo se é feita de maneira desinteressada, o que significa que se deve insistir mais na forma que no conteúdo. A forma ou o princípio deve ser preservado a todo custo, independentemente das circunstâncias e dos condicionamentos. Com isso, a razão, pela observância do princípio, seria a única instância confiável, posto que isenta de interferências particularizadas.

Ora, Hegel questiona Kant precisamente nesse ponto, pois não basta preservar ou seguir um princípio se não se sabe como proceder. O mundo, segundo o princípio, não existe. O que é real é o mundo que se tem e que propõe as direções possíveis através da eticidade já estabelecida. Enquanto Kant deseja construir uma ética, Hegel indica que esta já se encontra em andamento ou estabelecida. Se para Kant a liberdade é um fato da razão que permite a vontade agir livremente, para Hegel a liberdade é a razão de fato, isto é, um pôr-se da vontade que se sabe e se quer livre. Se a determinação da vontade da liberdade, segundo Kant, a condiciona, Hegel insiste que sem a determinação, a liberdade permanece na abstração e pode tornar-se uma espécie de “marionete” do livre arbítrio.

Não se pode concluir, todavia, que Kant seja favorável a todo procedimento que condicione a liberdade ao livre-arbítrio, pois ele não o é. O que Kant rejeita é a determinação histórica e localizada da liberdade. Como princípio, a liberdade é ponto de partida e não de adequação. É justamente por isso que, para Kant, a legitimação da lei vem de sua forma que é um a priori. A liberdade somente pode ser delimitada como medida para sua própria preservação. Caso contrário, por que alguém colocaria obstáculos ao seu agir? Para Kant não é a lei sustentada por qualquer conteúdo empírico, que sempre pode ser acidental. De fato, são as circunstâncias que fazem a diferença. Segundo Hegel, Kant aceita como único conteúdo para a lei moral a própria razão que precisa ser desvencilhada de todo e qualquer condicionamento. Hegel, portanto, situa a liberdade nos parâmetros da razão, o que significa dizer que a liberdade somente se torna real a partir do seu reconhecimento.

A determinação kantiana (Kant Doutrina do Direito, Introdução) e também universalmente admitida, segundo a qual o momento principal é a "delimitação de minha liberdade ou arbítrio,de modo que possa coexistir com o arbítrio de qualquer um, segundo uma lei universal"- de uma parte apenas contém uma determinação negativa, a da delimitação , e de outra parte o [aspecto] positivo, a lei universal ou a chamada lei da razão , a concordância do arbítrio de um com o arbítrio do outro, o que vem a ser a conhecida identidade formal ou a tese da contradição. a definição mencionada do direito contém o parecer, principalmente difundido por Rousseau, segundo o qual o que deve ser o fundamento substancial e o primeiro não é a vontade enquanto sendo em si e para si, enquanto vontade racional, o espírito não é enquanto espírito verdadeiro, mas como indivíduo particular, enquanto vontade do indivíduo singular em seu arbítrio próprio. segundo esse princípio, uma vez admitido, o racional apenas pode manifestar-se enquanto delimitando essa liberdade, assim como não pode manifestar-se como o que é racional de modo imanente, mas somente como um universal exterior, formal. (HEGEL, 2010, § 29).

Outra chave de leitura dos escritos de Hegel que faz referência à filosofia kantiana é o artigo de 1802-1803 Sobre as Maneiras Científicas de Tratar o Direito Natura l. Nele, o filósofo critica as teorias correntes, de sua época, que trataram o direito natural 33. Tais correntes são o jusnaturalismo empírico e o jusnaturalismo transcendental kantiano. A respeito do segundo, Hegel encontra problemas nessa teoria. O problema desse segundo tipo de abordagem é que inicia a argumentação a partir de algo abstrato, vazio de conteúdo. Enquanto que o empirismo tomava como ponto de partida as determinações finitas da realidade e as colocava como fundamento racional de todo o sistema, o formalismo, por sua vez, parte da infinitude pura (vazio de conteúdo empírico) a fim de torná-la o fundamento desse todo 34.

Com efeito, o tratamento da ciência formalista na análise do direito natural resume- se no seguinte aspecto: o formalismo científico não parte de uma pluralidade de leis, ou seja, de fatos jurídicos; ele tem como ponto de partida uma vontade pura, que não possui determinações externas. Nesse sentido, a única lei reconhecida pelo formalismo científico é a vontade pura, a qual não tem determinações ou matéria, já que é pura forma. Percebe-se, portanto, que a critica de Hegel atinge Kant. O filósofo de Königsberg engendra o direito da pureza da lei, da autonomia desta única lei que reconhece ser o imperativo categórico, não permitindo que qualquer afecção externa se sobreponha à vontade puramente moral. A crítica de Hegel ao formalismo kantiano faz sentido quando reconhece que atribuir ao imperativo categórico um estatuto de legalidade, é reconhecê-la apenas como um lado do movimento dialético que o espírito perfaz, constantemente, em sua objetivação.

Para Hegel, a lei construída pelo formalismo científico é uma “abstração inferior”,

que visa preencher àquela necessidade própria do múltiplo a que o empirismo já anunciara, a necessidade de que o finito, em sua diversidade, venha a ser superado por algo que paire acima de si, enquanto verdade absoluta, infinita. Entretanto, a abstração inferior que o formalismo apresenta não logra tal intento, pois se limita a repetir a prática do empirismo, ou

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É a partir deste artigo publicado entre 1802-1803 que encontramos uma tensão, conflito, entre Direito e

Eticidade, já que neste contraste “o direito sempre representa o momento da abstração; a eticidade, o da

concretude viva.” Bobbio N. Estudos sobre Hegel: Direito, Sociedade Civil, Estado. 2. ed. São Paulo: UNESP: 1991. Brasiliense, p. 72.

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O interesse de Hegel em mostrar o limite do formalismo científico não está no fato de que é constituído de pura forma, ou seja, vazio de conteúdos empíricos. O problema se encontra, de fato, é de que “sua essência não é nada mais do que o ser contrário de si mesmo; ou numa palavra, ela é o negativamente absoluto, a abstração da forma que enquanto identidade pura, é imediatamente pura não identidade ou absoluta posição – enquanto ela é

identidade pura”. C.f HEGEL. G.W.F. Sobre As Maneiras Científicas de Tratar o Direito Natural. São Paulo,

seja, enquanto este se fixava na multiplicidade posta, aquele se fixará em seu oposto, na abstração pura.

Ao entendimento, que procede pela fixação abstrata de um dos lados da oposição, não consegue pensar o absoluto, cuja essência é o puro movimento. “A passagem do absoluto ao seu oposto que é a sua essência, e o desaparecimento de cada realidade em seu contrário,

não pode ser freada” (HEGEL, 1990, p.30). Isto implica o seguinte: quer um, quer outro lado

da relação dialética contém já o seu oposto, como única forma de tornar-se possível o movimento, que é, em Hegel, a essência do absoluto. Assim, o formalismo porque fixa apenas

um lado da relação dialética, não pode conceber “o infinito como a passagem do absoluto ao

seu oposto e o desaparecimento de cada realidade em seu contrário” (HEGEL, 1990, p.30). O limite do entendimento não é algo enxergado apenas por Hegel. Para Marcuse, o entendimento:

É uma entidade limitada e, como tal, relacionada a outras entidades igualmente limitadas. Ele concebe, pois, um modo de entidades finitas, governado pelo princípio de identidade da oposição. Cada coisa é idêntica a si mesma e nada mais. (MARCUSE, 1988, p.54)

Isso sem falar que, no formalismo do jusnaturalismo transcendental kantiano ocorre também uma oposição entre a autoconsciência pura e a consciência real do sujeito, ou seja, entre a liberdade universal de todos e a liberdade individual de cada um. Tais oposições resolvem-se, de forma sistemática, apelando à coerção (constrangimento) sendo esta quem fixará, de forma arbitrária, o que é ou não de direito. Na teoria formalista de Kant, por exemplo, nos Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito, define-se o direito como a

faculdade de coagir, uma vez que tanto “o direito e faculdade de coagir significam uma e mesma coisa” (KANT, 2003, p. 25). Portanto, o requisito essencial que se exige a uma norma,

para que esta se constitua em direito é que ela inclua o recurso à coação como garantia do próprio Estado.

Bourgeois defende a tese que o direito natural, de cunho formalista, no qual Hegel critica em seu artigo configura uma universalização abstrata da realidade que pode ser descrita em três níveis: A) A moralização do direito; B) A legalização do Direito e C) A privatização do direito (BOURGEOIS, 1992, p.73). Os dois primeiros tipos não nos ocuparemos na presente exposição. Já o último, Borgeois identifica a crítica articulada por Hegel à chamada

privatização do direito praticada pelos modernos. Esta privatização será dada em relação a temas fundamentais do direito, como:

1) A instrumentalização ou subordinação do direito público ao direito privado – pela qual o direito público passa à condição de instrumento para a realização do direito privado dos indivíduos.

2) A fundação do Estado sobre um contrato – como o contrato é um instituto eminentemente de natureza privada, nada mais sintomático da sobreposição do privado sobre o público do que esta concepção.

Em relação ao segundo tipo, fundamentar o Estado sob a égide do contrato, há autores que criticam ardorosamente esta relação. Dentre eles, encontra-se Bobbio. Para ele, relacionar o Estado a um mero formalismo contratual foi o principal erro cometido pelos contratualistas, visto que não expressa de forma plena a totalidade ética da liberdade. Tal crítica não se limita apenas a Bobbio. Tanto nos escritos políticos de juventude – Direito Natural e Sistema da Vida Ética – como na Filosofia do Direito, Hegel aponta os principais erros cometidos pelos contratualistas.

No artigo sobre o direito natural, a lição extraída da dissolução do império alemão se transforma na crítica da doutrina do contrato social, que ousou

introduzir o contrato, esta “relação subordinada” (naturalmente subordinada ao direito público), na “majestade absoluta da totalidade ética”. Parece que,

aos olhos de Hegel, não há nada mais de deletério “no sistema universal da

eticidade” do que o fato de “ o princípio e o sistema do direito civil, que se

refere à posse, à propriedade, se elevarem acima de si mesmos a ponto de se considerarem uma totalidade em si, incondicionada e absoluta (BOBBIO, 1991, p. 70).

Nessa passagem cabe esclarecer que Hegel não combate o direito privado por si só, ao qual reconhece uma função específica, desde que nos limites traçados pelo direito público, o qual, por sua natureza, garante a possibilidade harmônica da existência do todo. A reprovação dessa teoria dá-se quanto à posição doutrinária que “eleva o direito privado a categoria suprema do sistema do direito e que, por causa disto, não consegue explicar a realidade de uma totalidade que tem precedência sobre as partes” (BOBBIO/ HENRIQUES, 1991, p. 70-71).

Por este e outros motivos, o jusnaturalismo 35 é criticado por Hegel. Ele é criticado