• Nenhum resultado encontrado

2.3 – O PROJETO E A RESPONSABILIDADE

O projeto e a responsabilidade são as categorias com as quais Hegel acredita que a ação se expresse de modo mais imediato. Este primeiro momento da moralidade se caracteriza por pressupor um mundo já existente, cuja forma imediata de expressão é constituída por uma multiplicidade de circunstâncias. “Um dado, uma situação que ocorre é uma efetividade exterior concreta, que por causa disso é em si um número indeterminável de circunstâncias” (HEGEL, 2010, § 115). Dado a existência de um conjunto finito e cotidiano de causas e efeitos, o sujeito se interroga quanto à sua responsabilidade nas operações efetuadas sobre o real. Precisamente, para que a vontade subjetiva possa se efetivar na imediatidade, ela pressupõe, ainda, um projeto, um plano. Uma vez exteriorizada, a vontade subjetiva introduz uma alteração na realidade e deve, por conseguinte, ser responsável pelos seus atos.

Outra característica das noções de projeto e responsabilidade em Hegel é a consciência do resultado da ação produzida pelo sujeito. Dito de outro modo, perguntar se determinada ação produzirá ou não tal efeito introduz no sujeito um princípio de responsabilidade. A partir desse e de outros questionamentos, o sujeito poderá escolher os efeitos por ele produzidos no mundo. O indivíduo, além disso, poderá distinguir, na multiplicidade de circunstâncias que formam o real, aquilo que não pertence a ele, isto é, as ações que não competem à sua responsabilidade.

Mas é o direito da vontade não se reconhecer em seu ato como sendo ação, a não ser o que ela sabe, no seu fim, dos pressupostos do ato e de não ter culpa

a esse respeito, somente o que nesse ato residia em seu propósito. – O ato apenas pode ser imputado enquanto culpa da vontade; é o direito do saber. (HEGEL, 2010,§ 117).

Percebe-se, portanto, que há em Hegel dois tipos de consequências embutidas na ação: consequências conforme ao fim subjetivo e consequências que lhe são estranhas. No primeiro tipo, a vontade individual se reconhece naquilo que foi projetado inicialmente por ela 37. No segundo tipo, pelo contrário, a vontade do sujeito não se reconhece naquilo que foi por ela produzida antes. Consequentemente, na ausência de auto-reconhecimento da vontade nos efeitos de sua ação, no caso hipotético do delito, não seria razoável imputar culpa ao agente da ação?

Édipo, por exemplo, não pode ser considerado culpado, na perspectiva hegeliana, de cometer parricídio, na medida em que ele não conhecia (e dadas as circunstâncias, tão pouco poderia conhecer) a verdadeira identidade do homem que matou. Hegel se recusa a imaginar o projeto como algo separado das consequências de sua ação, pois o que prevalece para o individuo, em última instância, é a responsabilidade de assumir o seu ato. Deste modo, só posso ser responsabilizado pela minha ação até onde podia prever os resultados. O limite da responsabilidade sob os efeitos da ação é decidido pelo que foi projetado. O propósito é, portanto, a primeira e mais imediata noção da moralidade. A imputabilidade como

37 Nesse sentido, a própria tentativa de Hegel de efetivar a moralidade passa também pelo crivo da

responsabilidade. Na moralidade, o terreno da “vontade é a subjetividade e, na exteriorização desta vontade não

reconhece como seu mais do que já estava na vontade subjetiva: exijo ver nela novamente minha consciência

subjetiva”. Cf. HEGEL, G.W. F Princípios da Filosofia do Direito, trad. Orlando Vitorino, Lisboa, Guimarães,

responsabilidade pode ser atribuída à vontade subjetiva na medida em que essa se reconhece no feito.

Cada momento singular que se mostra enquanto condição, fundamento, causa de uma tal circunstância e que com isso contribuiu por sua parte, talvez visto como sendo culpado ou, ao menos, como tendo ali uma culpa. Por isso o entendimento formal, no caso de um dado rico (por exemplo, a Revolução Francesa) escolhe dentro de um inumerável multidão de circunstâncias aquela da qual afirma que seja culpada.. (HEGEL, 2010, § 115).

Mesmo assim, o indivíduo não pode desconsiderar a imprevisibilidade das consequências de seus atos. Imaginemos a seguinte situação: em retribuição a um mal que lhe fora causado, alguém decide incendiar a casa de um inimigo. Alheio ao seu propósito de vingança, o fogo se espalha incendiando, dessa maneira, todo o quarteirão. Sob a ótica do propósito é legítimo afirmar que o incendiário não pode ser responsabilizado pela destruição das casas. Hegel, no entanto, não defende a isenção de responsabilidade do agente com base na imprevisibilidade das possíveis consequências de sua ação. Pelo contrário, “o propósito, enquanto procede de um ser pensante, não contém somente a singularidade, porém contém essencialmente esse aspecto universal – a intenção” (HEGEL, 2010, § 119). Logo, o

incendiário deveria saber que em cada efeito singular existe a natureza do universal e, por isso, Hegel o considera culpado pelo incêndio cometido no quarteirão.

Portanto, Hegel não tem como intenção construir uma moral, semelhante à de Kant, onde o dever está acima de tudo 38. É somente percorrendo o conjunto das determinações morais – com a finalidade de traçar um novo caminho para a ação humana – que a vontade

vem a ser capaz de apreender a história de seus “sucessos” e dos seus “fracassos”. Pode

parecer contraditório, mas apesar do filósofo não almejar uma moral ao estilo de Kant:

O enfoque moral do mundo torna-se, para Hegel, uma via que nos seus impasses e contradições, indica uma consideração da efetividade do mundo a partir de um conhecimento (ainda a ser produzido) do que é o processo de autodeterminação do real. (ROSENFIELD, 1995, p.117).

38

Hegel tem consciência de que construir uma ética das intenções tendo como fio condutor a idéia de liberdade na sua efetivação é algo contraditório. Primeiro, caso a liberdade consistisse em realizar meus pensamentos no objeto, i.e. em meu outro, o resultado de minha prática estará sempre num outro, fora de mim, alheio a minha pessoa. E em segundo lugar, retira do sujeito a responsabilidade da efetivação daquele ato no mundo. A respeito do tema c.f Utz. K. O Existencial Da Liberdade: Hegel e Precondições da Democracia in: ethic@ Florianópolis v. 8, n. 2 p. 169 - 186 Dez 2009