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A crítica desencontra o espaço na obra: “o Pantanal torna-se nenhum lugar” 87

CAPÍTULO 1 - O ESCRITOR PERAMBULANDO E A CRÍTICA ESCREVENDO: A

1.2 O molar e o molecular na crítica da obra de Manoel de Barros

1.2.4 A crítica desencontra o espaço na obra: “o Pantanal torna-se nenhum lugar” 87

Os diálogos com os autores que escreveram sobre a poética de Manoel de Barros, a partir das dinâmicas espaciais da poética, encontraram a análise de Andréia de Fátima Monteiro Gil, que fez do espaço questão central da pesquisa em “Pantanal e Poesia: o olhar mosaicado de Manoel de Barros” (2011). A autora reflete e “interroga especialmente o “espaço”, isto é, pergunta-se como a obra de Manoel de Barros reconfigura a geografia pantaneira ao especializar poeticamente a região e sua cultura” (GIL, 2011, p. 14). Geografia, região e cultura, foram tomadas como dados materiais da realidade espacial do Pantanal, para construção de uma “questão-problema”:

1. A plasticidade da palavra, o rompimento com a linguagem convencional, o embricamento prosa/poesia, as metáforas, as justaposições, as ambiguidades revelam correlações plurais entre Pantanal e poesia (...) 2. O Pantanal de Manoel de Barros privilegia, assim o espaço sobre o tempo ao fundar sua poesia numa lógica espacial. 3. Criando micro-espaços poéticos que desdobram macro-espaço pantaneiro, o poeta sugere a noção de “Pantanal-em-processo”. 4. Manoel de Barros constrói o espaço do Pantanal pelo confronto tenso entre pares opositivos – grandeza / pequenez; interior/exterior; continente/ conteúdo; palavra/ “despalavra” – que suscitam sentidos espaciais (GIL, 2011, p. 14).

“A plasticidade da palavra” e rompimento da linguagem convencional foi tema recorrente e necessário à análise da poética barreana (e aparecem em todos os trabalhos discutidos aqui), no entanto, o que desperta atenção, em nossa análise, foram os sentidos espaciais compreendidos na pesquisa de Gil. Como aqueles denotados para ver um pantanal que privilegiava a concepção opositiva entre espaço e tempo, aceitando a ideia de centralidade do espaço em detrimento do tempo, na construção poética. Valendo ainda, o destaque ao pensamento dicotômico dos “pares opositivos” de tensão na

poética, que afirmaram a existência antagônica entre “micros” e “macro-espaço” pantaneiro; grandeza/pequenez; interior/exterior, entre outros. Sugerindo acertadamente, a noção de “Pantanal-em-processo” para o pantanal.

O pensamento para identificar o espacial em Manoel de Barros, a partir do “binômio de pares opositivos”, não parece ser uma via coerente, sobretudo, por aquilo que demonstrou a análise de Souza (2010), onde há clara intenção de superar as concepções dualistas e opositivas da “forma” e “conteúdo”, operacionalizadas na relação sujeitos (designante) e coisas (representado), natureza e linguagem, quando todos são definidos por limites, que precisaram ser superados pela poética do “deslimite”.

O conceito de “deslimite” extravasou o próprio campo da poesia, e passou a funcionar pela força do fora, uma potência de investimento contra os próprios limites formais e substanciais dos seres, das coisas, do pensamento, da razão, da lógica, das ideias, da verdade, do normal, da regra, das estruturas, em busca de expressar as pluralidades da sensaçãointensiva e expansiva dos corpos.

Antes de construir a crítica sobre os caminhos da análise da autora, é necessário acompanhar algumas concepções espaciais discutidas:

Como o espaço, em Manoel de Barros, é pensado em sua multiplicidade, faz-se necessário criar um modo de apresentação que acompanhe suas transformações contínuas. Uma escrita poética fluida, com significados móveis, fragmentados e novas formas de (des)dizer o real, manifesta uma ambição declarada de Manoel de Barros de reordenar o espaço complexo circundante para transpô-lo em poesia. O espaço e os seres que nele habitam são identificados globalmente para, em seguida, serem desindentificados em suas particularidades. A anunciação do Pantanal se faz de modo metafórico e imagético. O silêncio, os ventos, o rio, o tempo e as águas são instituídos como sujeitos da ação (GIL, 2011, p. 17).

Ademais de o espaço ser pensado coerentemente, em sua multiplicidade, a autora está em busca de dizer sobre as novas “formas” do real, que poderiam ser aceitas como um exercício de “deslimite”, mas que parecem ter-se refletidas como realidade vivida, transposta em poesia, como o próprio movimento de “reordenar o espaço complexo circundante”. O pensamento dicotômico identificou espaços globalmente, para em seguida, perder identificação em suas particularidades, tudo combinado para criação de um Pantanal metafórico e imagético, propriamente, uma representação.

Além de não valorizar a potência de expressão da poética de MB, tudo foi (de)limitado pelo real e suas formas, como se o poeta desejasse substituir as “formas” da realidade, por outro “olhar formal”, chegando a “reordenar o espaço”. A força da representação, ao mesmo tempo em que criou uma imagem de pensamento conservadora, capturou o poético fixando “identidades” ordenadoras, manifestadas em “forma” de “significados”.

Para Gil, Manoel de Barros “tenta adotar todos os pontos de vista possíveis para apreender a totalidade” (2011, p. 18). Contrariando o que foi visto nos demais autores, não é mais a diferença o principal horizonte de desejo da poesia, mas uma totalidade, que só pode ser exprimida como representação. A autora também afirmou que “o Pantanal torna-se espacialidade na qual as interações simbólicas e imaginárias, situadas fisicamente, temporalmente e existencialmente ou como forma de expressão, emolduram e são emolduradas pela paisagem” (GIL, 2011, p. 18).

Notou-se o uso de palavras já debatidas, como “expressão”, no entanto, os usos e sentidos atribuídos são distintos. Refere-se, na análise de Gil (2011), aos conteúdos físicos, simbólicos, imaginários e existenciais, prescritos todos, pelos limites da própria realidade, o espaço do Pantanal. Por esse sentido, deixa de ter função produtiva, servindo mais a uma “pilhagem” de coisas para emoldurar e ser emoldurado pela paisagem. A expressão do poético, assim, perdeu sua capacidade de anunciar o novo, o transfazer, que foi capturado em analogias, cópia, dos limites de realidades materiais, simbólicas e imaginárias, tudo convergindo para um mundo de representação.

Concluímos que a construção do espaço liga-se à construção cultural da humanidade que, por conseguinte, se empenha na construção de sua geografia. Barros considera o Pantanal não como um lugar pronto e acabado, mas como lugar de possibilidade de relacionar e transfigurar o natural e o humano. Acredita que a ele não se pode impor limites. Vale-se, portanto, da forma do fragmento para compor seus poemas, estruturando-os de modo aparentemente aleatório a fim de materializar a complexidade pantaneira e demonstrar que aquele espaço pode-nos ensinar a enxergar o mundo sob novos aspectos para promover redimensionamentos (GIL, 2011, p. 24).

As palavras acima representam muito do que diz a crítica sobre a obra de MB, quando aparenta, inclusive, aprofundar as amplitudes do fazer de poesia. No entanto, observando de maneira mais detida, se percebe que a representação captura aspectos formais e de conteúdos, sufocando o desejo transgressivo da poética.

Primeiramente, reiterou-se a importância de ligar a construção do espaço à construção cultural da humanidade colocando, como horizonte poético, a própria cultura, que se desdobra empenhada na construção de sua geografia. Tudo foi organizado de maneira racional e representacional (designante (humanidade) + designado (cultura) = significantes (representações culturais)). Também foi selecionado a “forma do fragmento” como órgão de composição dos poemas, “estruturando-os de modo aparentemente aleatório a fim de materializar a complexidade pantaneira” (GIL, 2011, p. 24). “Forma” e “estrutura” ganharam representação para “expressar” os “significados” do espaço como corpo “organizado”, que ensinaria (no máximo) a redimensionar o olhar, para enxergar outros aspectos da realidade.

As “formas” e “conteúdos” selecionados, a priori, tentam definir o espacial e, ao passo em que foram encontrando correspondentes nos fragmentos poéticos, foi apreendendo-os em uma “forma-conteúdo” que enfraqueceu as potências múltiplas de combate e reinvenção do poético, ao mesmo tempo em que cegou a análise, perante a luta silenciosa do poeta contra os clichês, dos ditames da razão, do comum, da totalidade, de macro narrativas e suas disciplinas de verdade, padrão, forma, estrutura, organização. Destes, apenas “o processo”, parece ser fundamental à poesia de MB.

Valeria a pena, ainda, observar que, pela “forma-conteúdo”, não se encontrou a expressão, e sim a representação, que foi criada para dar significado ao fazer da poesia e não a explicitação de seus desejos e obsessões.

Gil (2011, p. 29) também aproximou a ideia de “espaço” ao “corpo”, procurando valorizar as “percepções da sensibilidade”: “É pelo corpo que o sentido é aí percebido”, a representação do corpo, igualmente, passou pela noção de “forma-conteúdo”, tentando, pela percepção, criar significados à realidade vivida, por um corpo organizado: “Manoel de Barros desvela a presença do corpo ao ver, ouvir, tocar o Pantanal com/pelas palavras”, a palavra passou a ser usado como representação das percepções, um corpo perceptivelmente organizado, em detrimento do intensivo corpo sem órgãos (SOUZA, 2010, p. 76). Um corpo-espaço-ordenado, onde nem o Pantanal, nem a palavra, foram revelados como expressão/“reinvenção” pelo “deslimite”.

O Pantanal da crítica se limitou à cadeia de “saberes disciplinares”: “Toda poesia atravessa, e integra mais ou menos imperfeitamente, a cadeia epistemológica sensação-percepção-conhecimento-domínio do mundo: a sensorialidade se conquista no sensível para permitir, ultimamente, a busca do objeto” (GIL, 2011, p. 31). A análise

racionalizou a poesia para fazer do corpo “objeto” da cadeia epistemológica, - que tem por base de poder o discurso científico - não por acaso, o sensível representou conquista de conhecimento-domínio, à revelia do projeto poético de MB, foram tomados os limites como possibilidade de descoberta de novas realidades.

A origem desta “forma” de olhar para obra de MB foi sustentada em rasas e equivocadas leituras e escolhas teóricas. Em Brandão, apesar de apresentar quatro modos de abordagem do espaço na literatura (quais sejam: “representação do espaço”; “espaço como forma de estruturação do texto”; “espaço como focalização”; e “espaço como estruturação espacial” (BRANDÃO, 2013, p. 58)), a discussão ficou apenas no âmbito teórico, não foi realizada aproximação com a poesia, em nenhum momento do trabalho, onde apenas salientou-se que “o conceito de espaço na poesia de Manoel de Barros leva em consideração os modos de abordagem acima” (GIL, 2011, p. 17), atenuando raso tratamento das bases teóricas.

Em Mikhail Bakntin33, Gil (2011, p. 23), buscou noções sobre a inseparabilidade de tempo e espaço. O espaço como totalidade, as mudanças espaço-temporais, que acertadamente, garantem à poesia o direito de serem refletidas como processo que, como visto, converge para o devir.

O problema se tornou mais crítico na análise dos autores da Geografia, Milton Santos e Douglas Santos. No primeiro, recolheu as concepções de paisagem como acumulação de tempo (sem demonstrar como isso ocorre na poesia de MB), para, em seguida, afirmar: “Incorporando um pensamento filosófico, o geógrafo [Milton Santos34] indicou a importância de se investigar o espaço com base em três pilares fundamentais – forma, estrutura e função – que inter-relacionam objetos naturais e objetos sociais” (GIL, 2011, p. 23). As opções tomadas foram frágeis, sobretudo, pela escolha de um pensamento formulado sob a clara influência estruturalista, para compreender a sociedade urbano-capitalista do início dos anos 80 (SANTOS, 2004). Todavia, mesmo não sendo, caso fosse arrastado para poesia se produziria uma ação autoritária, enquadrando a poesia em estruturas estranhas às suas manifestações.

A segunda parte de uma citação de Milton Santos, apresentada por Gil (2011), explica o funcionamento autoritário da teoria no poético. Abre-se “aspas” para o Geógrafo: “A crítica geral do conhecimento nos ensina que o ato da posição e da

33 BAKHTIN, Mikhail (1895-1975), filósofo e importante teórico da linguagem e arte. 34

diferenciação espacial é a condição indispensável para o ato de objetivação em geral, desde que se estabeleça uma relação entre o objeto e sua representação” (SANTOS, apud. GIL, 2011, p. 23). Citar Milton Santos, crivado nestas circunstâncias, retoma o problema do pensamento dicotômico-opositivo (“sujeito-objeto”; “forma-conteúdo”, “significante-representação”), que tenta definir a posição de fala do sujeito em relação a seu objeto, passando a ter representação variável. O que acaba sendo uma instância superficial da análise poética, pois, criar representação das “formas” e/ou conteúdos, “sujeito” e “objeto”, não foi para Manoel de Barros, fim de poesia, sendo, propriamente, com a transfiguração das memórias, percepções e imaginações em que o poeta estaria interessado. Por isso, buscou criar sensação e sentido.

Interpretando o pensamento de Milton Santos, escreveu Gil (2011) “Santos (2007) concluiu, portanto, que modificações nas relações entre componentes da sociedade acarretam alterações de processos e de funções e, por conseguinte, causam mudanças de valores das formas geográficas” (2011, p. 24). Como seria possível aplicar ao poético esses princípios? O poeta seria parte dos componentes da sociedade que acarretam alterações de processos e funções, e causaria assim, mudanças de valores das formas geográficas? Não se saberá, pois quem fez alusão ao pensamento, para introduzir na análise da poesia, não concluiu a meta, limitando-se à reflexão da teoria separada da poesia.

Nota-se que a autora buscou semelhanças naquilo que interpretou de cada autor, e fez aproximações: “Reafirmando o pensamento do geógrafo [Milton Santos], Douglas Santos admitiu” (citando trecho do livro “A reinvenção do espaço”): “o que pensamos de espaço jamais poderá ser compreendido sem que se reflita sobre o próprio movimento que cria, recria, nega e, pela superação, redefine a espacialidade dos próprios homens” (SANTOS, apud. GIL, 2011, p. 24).

A comparação entre os autores precisa ser contestada, uma vez que, Milton Santos refletiu o espaço como totalidade, possibilitando, dessa maneira, vê-lo como resultado da acumulação de tempos. Em outra escala de manifestação espacial, foi construído o pensamento de Douglas Santos que, sem se amparar na abstrata noção de totalidade, priorizou o movimento e encontro de diferenças para elucidação do que venha a ser o espaço como resultado de embates entre forças que criam, definem e negam espacialidades dos próprios homens, um espaço que não responde apenas à

história, mas, fundamentalmente, à condição de devir35 geográfico. Por isso, não é possível concordar com a analogia das ideias dos autores, nem tão pouco, fazer dessa leitura material e de disputas da realidade social do capitalismo, o arcabouço teórico para análise do poético em MB.

A autora assinalou, assim, uma organização espacial e moral que pudesse conter e ordenar os fluxos de espacialização da poética sobre uma “geografia da razão”, que nega as forças e potências da terra, bem como a voz poética em guerrilha para cartografar os fluxos do devir:

[...] o movimento de guerrilha subverte o combate das potências por um combate na imanência como um movimento da Terra, orquestrado por uma composição de forças, de conexões e devires minoritários, por territórios e afetos cujo domínio marca a confluência de linhas que se conectam, entre meios divergentes e fronteiras. Trata-se, então, de um terreno móvel, uma cartografia de forças múltiplas advindas de outro lugar, uma ambiência em que se cruzam lugares distantes e moldam um mapa das flutuações do devir (SANTOS, 2013, p. 90). O movimento de guerrilha que Gil (2011) não viu em acontecimento, criou nova imagem de pensamento da espacialização poética, que não se opõe ao fora, à voz da natureza, aos fluxos do devir, ao agramatical da linguagem. O fora, impensável e não pensado, se alojou nele para produzir rachaduras, rupturas da configuração de um chão de múltiplas camadas em experimentações, agitações cartográficas, para construção de novas cartografias, que emergem a imagem de pensamento em espacialização por movimentos de transfiguração e não afirmação da realidade. Um terreno móvel como mapa das flutuações do devir.

Como concepção central da análise do espaço na obra de MB, Gil (2011) lançou a ideia36 do “mosaico espacial”:

Manoel de Barros faz pequenos recortes metonímicos da realidade e os cose metaforicamente, construindo, assim, um espaço mosaicado (...) “O Pantanal torna-se nenhum-lugar capaz de desvelar o conhecimento sobre todo-lugar (...) “o universo pantaneiro recém

35 Vale ressaltar as diferenças entre as noções de “processo” definidas por Souza (2010) e o emprego feito por Milton Santos. O primeiro alinha o processo ao devir, para considerar o poético, e a própria escrita, viva e em “desterritorialização” no mundo (seguindo interpretações das proposições de Gilles Deleuze e Felix Guattari), enquanto o segundo, apoiado no conceito de totalidade, refletiu o processo como a dinâmica de transformação histórica do espaço e tempo.

36 A ideia foi extraída de artigo de Marcelo Marinho (2004) sobre o filme documentário “Caramujo Flor” de Joel Pizzini. Cf. MARINHO, Marcelo. Cinema e literatura: o Pantanal como metáfora da arte em Joel Pizzini e Manoel de Barros. In: Ensaios farpados: arte e cultura no pantanal e no cerrado. Campo Grande: Letra Livre/ UCDB, 2004.

inaugurado deve ser entrevisto como uma representação além do tempo e espaço (GIL, 2011, p. 75).

O “mosaico espacial” proposto pela autora foi uma cópia. Resultado da interpretação de representação, criada pela linguagem cinematográfica, o que levou a autora a valorizar as imagens e fragmentos da poética, para extrair significados do lugar Pantanal de poesia. Que se tornou “nenhum-lugar, capaz de desvelar o conhecimento sobre todo-lugar”, chegando a uma “representação além do espaço e tempo” (GIL, 2011, p. 75), que fez todo o debate das teorias da Geografia sobre o espaço, perder o sentido. Pois, não foi articulada a concepção de “mosaico espacial”. O que reitera a ação de imitar e não capturar, uma vez que o “mosaico espacial” não foi experimentado no poético, servindo apenas de citação copiosa, de uma concepção inventada a partir da análise de outras linguagens que criaram expressões sobre a obra de Manoel de Barros, como a análise de Marcelo Marinho do curta-metragem “Caramujo Flor” de Joel Pizzini.

Além desta concepção “atemporal” e “aespacial” definida para obra de MB, Gil (2011), procurou redimensionar o espaço da poesia, a partir da indeterminação, do contraste, das ambiguidades, da lógica de pensamento binário.

Manoel de Barros possivelmente faz uso desse tipo de composição inspirado nos fortes contrastes encontrados no espaço pantaneiro. As enchentes violentas e os estios prolongados, o erudito e o primitivo, o espírito preservacionista do pantaneiro típico e o espírito exploratório, os aglomerados humanos e os vazios retratam realidades ambíguas e paradoxais da região. O poeta apropria-se dessas divergências que acabam por se confluir e realiza, com rupturas, poemas (GIL, 2011, p. 76).

O “contraste” e as “ambiguidades” foram representações extraídas de um olhar que valorizou o aspecto fragmentário da obra. Impressionou como o espaço perdeu rigor, e passou a ser algo inteligível, porém, aprisionado em representações (“enchentes violentas”, “estios prolongados”, “primitivo”, “preservacionismo” e “exploração”) que gerariam “divergências”. A autora não consegue aceitar a busca da diferença como característica do fazer poético: “Manoel de Barros, portanto, emprega em seus poemas a linguagem oral pantaneira que brota do envolvimento do homem com a natureza” (GIL, 2011, p. 78).

Deste ponto em diante, o trabalho centrou-se em exemplos para confirmar a tese de que o espacial deve ser apreendido pelo cultural local, pelas especificidades das

relações homem e natureza, representadas no regionalismo linguístico. Apareceram também, definições “revelando o poeta enquanto ser buscador, questionador, investigativo (...) poeta, contemplador ávido do real, sopra no mundo objetos estranhos, revisitando a tradição para propor o novo” (GIL, 2011, p. 93).

Tudo foi arrastado para um campo interpretativo-subjetivo, fazendo da poesia algo subordinado apenas ao ponto de vista, quando se apoiou em definições que nos parece reduzir e simplificar o labor de criação poética na/pela palavra: “a singularidade da poética [de Manoel de Barros] reside em combinar a aguda percepção urbana com um repertório primitivo e rural” (CAPINEJAR, 2001, apud GIL, 2011, p. 91). Assim, a obra vai se tornando contemplação e esvaziamento de potência, o nenhum-lugar que explica o espaço da poesia, a partir da representação da realidade.

O Pantanal, em Manoel de Barros, torna-se metáfora da poesia: “ocupação da palavra pela Imagem e ocupação da Imagem pelo Ser” (GA, p. 263); “raiz entrando em orvalhos”; “livre como um rumo nem desconfiado” (CUP, 109-110) (...) Manoel de Barros desfigura o espaço existente, desarticula-o para instaurar uma nova realidade, desvê o mundo para reencantá-lo. Permite-nos um novo entendimento de poesia, promove a sensibilização, a humanização, o senso crítico de seus leitores (GIL, 2011, p. 96).

Novamente, na conclusão de seu trabalho, a autora procurou se afirmar pelos dizeres da poesia, colocando o Pantanal (questão central de sua pesquisa), como metáfora. Um espaço metafórico, de “ocupação da palavra pela Imagem e ocupação da Imagem pelo Ser”, definindo-o, apenas, por abstração, encanto, fantasia. Porém, no fundo, se crê ter ocorrido outra experiência espacial mais oculta, agora, totalizante: perda total do “objeto” perseguido.

No “desencontro” da espacialização, pregada às linhas de segmentação molar, percebeu a dimensão do espaço sendo deformada, colocada em fuga por fluxos moleculares, se encantou em não sentir a espacialização e apenas ver “nenhum-lugar, representação além do tempo e do espaço” (GIL, 2011, p. 75). Sem refletir o sentido, buscou os significados genéricos de ambiguidades que desfiguraram o espaço existente, “instaurando nova realidade”, tudo na procura de mascarar que a pesquisa não