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CAPÍTULO 1 - O ESCRITOR PERAMBULANDO E A CRÍTICA ESCREVENDO: A

1.2 O molar e o molecular na crítica da obra de Manoel de Barros

1.2.3 O deslimite espacial da poesia: fluxos moleculares que deformam a realidade

Em “Uma poética do deslimite: poema e imagem na obra de Manoel de Barros” (2009), Renato Suttana se ocupou da potência da imagem no pensamento barreano. Mais detidamente, se poderia afirmar que a questão central do debate foi à expressão do “deslimite”, que designou “certa relação do homem com o espaço onde vive – representado, principalmente, pela figura do pantanal – e, numa contrapartida, um modo de conceber a palavra poética, no âmbito da experiência artística” (SUTTANA, 2209, p. 13). Aqui reaparece o problema que a leitura de Waldman (1990) permitiu superar, a representação. A relação espacial das vivências em relação ao poético, são como expressões de vozes inaudíveis de uma “força obscura da terra”, o “desenho verbal”, o faz a poesia ir além da representação, tornando-se expressão de diferença da relação visceral do homem com o chão.

Pelo “deslimite”, o espaço extravasou as demarcações naturais mesclando-as com as experiências interiores à vida, que não cessa de se desenvolver e multiplicar.

“Deslimitado”, o espaço transcende as suas demarcações naturais e se mescla com a experiência interior do homem, tornando-se um espaço complexo, marcado de subjetividade. Da mesma forma, é um espaço onde a vida não cessa de se desenvolver e multiplicar, dando ao olhar que ali procure estabilidade a sensação inquietadora de que nada está começando nem se dispõe a terminar: de que não há fronteira no espaço da percepção (SUTANNA, 2009, ´p. 13).

O espaço passou a ser refletido como elemento central da crítica a poética barreana, e foi visto como mescla de um interior que expande, pela inquietude do “deslimite”, a natureza e as próprias percepções da realidade. Foi notório o esforço do autor em conduzir a análise espacial na reflexão da imagem poética, observando “imagem como conciliação de contrários”. Que gerou “uma dinâmica espacial do

sentido a partir de certas combinações de palavras” (SUTTANA, 2009, p. 29), descentralizando a própria imagem do espaço: “faz deslizar os signos28 como potências móveis sobre um espaço de coisas cujas relações, ocultas, só os signos podem revelar” (SUTTANA, 2009, p. 31). Criando imagens pela emergência da linguagem.

Tomando as lições de Bachelard ((1993) em “A poética do espaço”), a poesia de MB foi refletida como fenômeno de liberdade da linguagem, que encontra na imagem, a vida pulsante e da natureza da linguagem. O poeta fez uso não canônico da língua e encontrou o “bruto da linguagem na sua pura opacidade, constituindo um espaço próprio e distinto”, para o encontro da imagem. Espaço em que se desvelou a voz da natureza com multiplicidades de significações, que eliminaram a distância entre as palavras e as coisas, revelando a imagem do espaço pela conexão da imanente poética e o fora, à voz da natureza:

na imagem funciona algo mais que os estereótipos da linguagem, se a linguagem, nela, se dá como emergência e não como simples repetição, é porque tal ordem se estende na direção de uma vivência mais íntima e profunda da natureza, porque na imagem as coisas estão “próximas” e querem ser “falantes” na linguagem (SUTTANA, 2009, p. 51).

O emergir da linguagem poética agiu como filtro de vivências intimas e profundas com o espaço e a natureza, na produção de singular imanência, propriamente, como revelação “de uma profundidade do ser no espaço do jogo de invenção” (SUTTANA, 2009, p. 42), onde as coisas tornaram-se falantes. Pela espacialização das imagens, e encontro de vozes de natureza emprestada às coisas, o autor ressaltou o olhar de diferença expressiva da criação poética, reinventando um mundo próprio a poesia pela linguagem.

Também tem destaque na análise de Suttana o que valorizou a expressão da diferença na imagem do espaço de abandono: o homem em estado de indigência. Que se alinha ao nível das palavras, penetrando no seio da linguagem, com espanto e fascínio,

28 Instigante captura fez o autor na afirmação: “faz deslizar signos espaciais como potência em movimento”, formulação que o aproxima ao problema da imagem de pensamento do rizoma: “cadeias semióticas de toda a natureza são aí conectadas a modos de codificação muito diversos (...) colocando em jogo não somente regime de signos diferentes, mas também estatutos de estados de coisas” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 15), o que permitiria perceber, que não são os signos que podem revelar as relações no espaço das coisas, mas a expressão intensiva de espacialização que foge do signo, do significante e do significado, para produzir outra imagem de pensamento do mundo. Porém, as opções teóricas conduziram o autor por outros caminhos de análise.

em movimentos nômades. Um ser errante que “tem seu espaço existencial alargado e habita um universo onde todas as coisas, rebeldes e ao mesmo tempo solidárias em relação à palavra, jamais preenchem a indigência” (SUTTANA, 2009, p. 49). Mas, por onde caminha este homem indigente? Para Suttana, no espaço interior. No entanto, a força da imanência poética, produzindo uma imagem de pensamento em inconformidade com o mundo, por isso, se fez como pensamento nômade, errante, para liberdade da linguagem.

Enquanto, para Suttana (2009), surgem imagens da experiência interior que pelo “deslimite” remove fronteiras criando rupturas que promovem a comunhão do ser com o espaço (p. 50). O sentido novo criado pela expressão poética pelo espaço da imagem, cria ruptura de uma possível dicotomia interno-externo, fazendo o poético se expandir para ser espaço nas palavras. O “deslimite” para além de romper fronteiras entre o interno e externo, também verte para deformação das formas/fronteiras do juízo de Deus, que estratificam o novo acontecer do mundo.

O autor discorreu que as conexões estabelecidas pela diferença e promiscuidade eliminaram os vestígios de separação (sujeito/objeto; isto/aquilo etc.) na criação da imagem. Por essa via, a relação do poeta com o espaço encontrou nas diferenças de natureza e linguagem, a potência do “deslimite”, removendo fronteiras entre o interior e o exterior, palavras e coisas, razão e linguagem, espírito e a matéria, a vida e a morte, entre a arte e natureza. Tudo pode ser transfeito no “deslimite” dos espaços da imagem poética.

Refletindo o poema como imagem o autor buscou a materialidade da dimensão espacial “que se aproxima do mundo, por via dos sentidos, mais do que pela racionalidade” (SUTTANA, 2009, p. 62), abarcando as coisas pelo desejo “de despir o mundo daquilo que a razão lhe pespegou” (SUTTANA, 2009, p. 63). Assim, organizou pontos de fuga no espaço, o “movimento” e o “repouso”. Pares de análise que procuraram apreender não a forma, mas o movimento que transforma. O modo como “as coisas que acontecem aqui, acontecem paradas” (SUTTANA, 2009, p. 64).

Sem ter criado, necessariamente, uma oposição dicotômica, as noções de “repouso” e “movimento” procuraram fazer referência ao inacabamento do mundo, colocando em movimento o espaço. E favoreceu, em certa medida, observar a composição semântica das coisas e “entes”, cuja característica “é a de não se parecem com nada exterior ou mesmo de não tomarem aparentemente nenhuma forma definida,

senão aquela em que se plasma a sua própria existência singular” (SUTTANA, 2009, p. 65).

Foi notório, na pesquisa do autor, apesar de refletir a imagem na obra de Manoel de Barros, o destaque do “movimento”. No entanto, também foi inserida a noção de “repouso”, que nada tem a ver com inércia ou inanidade, e se justificou pela vontade de revelar diferentes expressões do imagético na obra. Operando de maneira articulada, os pares de análise não devem agir por razão opositiva, nem exclusiva, pois, assim, se afastariam do que há de interdependência no movimento e repouso na obra de Manoel de Barros (SUTTANA, 2009, p. 64), devendo, portanto, funcionar como abertura para refletir o movimento no repouso e a atuação deste, sobre a mobilidade.

A oportunidade abre precedente para apresentar outro conceito espacial da análise de Suttana (2009), que apareceu na interceptação da mobilidade e do repouso: a noção de “promiscuidade”.

Não poderemos, por um lado, negligenciar o fato de que é nela que os seres aparecem na sua máxima opacidade e de que é nela também que o intransitivo do que eles são se liga ao espaço exterior. A promiscuidade no espaço do mundo nos faz pensar não em uma coisa de cada vez, concebida separadamente, mas em duas ou várias, tomadas no mesmo ato de apreensão, então nos ocorre outra frase que melhor defina o que pretendemos exprimir. Por outro lado, sabemos que, se os seres podem ser vistos e contrastados, é porque a promiscuidade é uma categoria do múltiplo: ela assegura o contraste necessário para que as coisas apareçam, unificando-as no espaço (SUTTANA, 2009, p. 74).

A noção de “promiscuidade” como categoria do múltiplo expressa sempre um acontecimento de transformação, criado pela poesia, que é balizado por movimento e repouso, o primeiro revelando indigência, despojamento, gratuidade diante do mundo, enquanto o segundo, pela multiplicidade, torna-se acontecimento em movimento, o contraste, que poderia sugerir a condição de inércia das coisas em suas diferenças e particularidades, faz repouso no movimento de inacabamento do mundo. Apesar de não ser mencionado pelo autor, movimento e repouso são noções que vazam em direção ao devir. Na “promiscuidade”, o repouso foi permeado de incompletude, processo inacabado do mundo que, pelo movimento, vai se transfazendo e plasmando o espaço de experimentação da poética.

A “promiscuidade” se aproximou do que Waldman (1990) chamou de força de “ajuntamento” das coisas no espaço de construção poética e ao Castro (1991) observou

como uma capacidade de absorção do circundante, que afetaria a linguagem poética, contaminando-a por um fora.

Ao que parece, a “promiscuidade” permite aprofundar as reflexões sobre essa força invisível e inaudível, “um sonho de proximidade a todas as coisas e de todas as coisas entre si” (SUTTANA, 2009, p. 74), que moveu tudo para “comunhões”, “encontros”, “ajuntamentos”, “absorção”, “misturas”, “mimetismo”, “sinestesias”, que deformaram as formas do mundo, abrindo-as, molecularmente, para experimentos (do ser) “sendo-espaço” promíscuo.

A manifestação da “promiscuidade” na poética cria no espaço força de conexões de diferenças entre coisas imprestáveis, natureza e linguagem em misturas que criam imagem do espaço em trânsito, movimento transformador do repouso, que liberta as bordas do dizer das formas e conteúdos: na “promiscuidade, o uno se comunica com o múltiplo, sem perder a suas especificidades” (SUTTANA, 2009, p. 75).

Sendo a “promiscuidade” conceito ligado ao múltiplo, para radicalização dos termos, poder-se-ia afirmar que nem uno, nem múltiplo, estão para se comunicar, e nem ter suas especificidades mantidas, pois os movimentos de aproximações e mistura expandem o corpo da linguagem poética em direção à multiplicidade.

Asilando o poema como imagem, Suttana (2009) refletiu a espacialidade da obra de Manoel de Barros como espaço de/para linguagem nomeadora, de recriação e jogo:

[...] acreditamos que se abra então um espaço de leitura: o dizer do poema instaura-se como jogo, imagem nunca suficientemente localizada, que nos dá o fundo sem ser ela mesma esse fundo, mas que só pode fazê-lo porque está a ele conectada. A poética à qual chamamos de poética do deslimite, como estratégia para estabelecer um horizonte de referência e um núcleo possível de raciocínio, é poética da linguagem como possibilidade nomeadora (...) somos convidados a participar, na aventura maior de um gesto de leitura que é recriação e jogo, avanço e recuo num movimento incessante (SUTTANA, 2009, p. 119).

Para criar uma leitura do “deslimite” na obra de Manoel de Barros, Suttana (2009) fertilizou significativas contribuições à reflexão do espaço. Pela perspectiva imagética, observou um jogo (multiplicidade) de manifestações espaciais, “que nos dá o fundo da poética sem ser ela mesma esse fundo”. Um espaço predominantemente de conexões. O “deslimite”, curiosamente, foi usado como horizonte de referência e raciocínio, todavia, o pensamento se fez como fluxo molecular que revelou a potência de liberdade, transgressão, invenção, transformação do sentido, eliminação de

fronteiras, o lado opaco e intenso das imagens. Tudo isso, reiterado por leitura atenta aos procedimentos de criação poética. Mas, claro, sem explicar a poesia, se colocando, contudo, na aventura do devir e recriação (avanço e recuo em movimentos incessantes), das reflexões da poesia de MB ao mundo.

Em perspectiva diferente, a experiência estética do “deslimite” também rendeu interessantes consequências à pesquisa de Elton Luiz Leite de Souza. Em “Manoel de Barros: a poética do deslimite” (SOUZA, 2010), que fez do conceito expressão que expandiu o próprio fazer e pensar filosófico29. Uma vez que, a ideia de “deslimite se expressa a partir da inclusão”, na compreensão do próprio limite, “de uma virtualidade que se lhe torna imanente ao mesmo tempo em que abre a processos semioperceptivos que lhe reinventam o sentido”, e possibilitam traçar linhas de uma Teoria da expressão em detrimento de uma Teoria da Representação, renovando e avançando para lugar solitário em que poucos refletiram a obra barreana.

Concebeu a poética como pensamento expressivo da arte sobre a linguagem, o humano, as coisas e o próprio mundo.

Apoiando-nos em Deleuze, efetivamos uma gênese do conceito de deslimite à luz da ideia de devir. Nesse caso, objetivamos mostrar como a ideia de devir se apresenta, na obra de Manoel de Barros, como o elemento genético que confere à matéria de sua poesia um caráter de processo: processo de perda dos limites do humano, processo de perda dos limites da linguagem representativa, processo de perda dos limites utilitarista que as ações interessadas sobre as coisas transformam em hábito (SOUZA, 2010, p. 16).

O deslimite surge com força de investimento contra a própria “forma” do limite, aberto pelo movimento processual do devir. Ao conceber a escrita poética pelo devir, o deslimite foi apresentado processo “que faz do inacabamento o estado sempre renovado” (SOUZA, 2010, p.16), que não significa destruir-se ou negar-se, - pois quem faz isso é o próprio limite, capturando o desejo da invenção, - mas à afirmação de uma “experiência com a Vida” (SOUZA, 2010, p.17). A experiência do deslimite, por sua vez, só pode ser “objeto” de experimentação para o encontro da diferença.

29

A leitura filosófica da obra de Manoel de Barros, realizada por Souza (2010), a partir de Deleuze, apoiou-se na ideia de um plano comum “à filosofia e à não-filosofia, à filosofia e à arte” (SOUZA, 2010, p. 18). Como composições de pensamentos que se expressam por meios distintos, mas se encontram. A poesia, pela incorporação da Vida, cria conceitos, que “a filosofia [Pop´ Filosofia] só incorpora quando se torna a expressão de um pensamento que, em seu deslimite, une-o à poesia” (SOUZA. 2010, p. 19, In. Op. cit. p. 25 à 39, “A expulsão do poeta da República da Razão”).

O devir em processo de deslimite superou e foi além do binômio caro à análise da poética barreana, composto, de um lado, pelo pensamento clássico que, localizou a “forma”, o “limite”, o “padrão”, o “lógico” (como horizontes amplamente refutados pelo fazer poético de MB), e, do outro pelo Romantismo marcado pelo “sentimento”, a “emoção”, o “psicológico”, o “devaneio” (que é o campo cuja maioria da crítica centra o debate do fazer poético).

Nas palavras do autor, desses dois campos de encadeamentos, inteligíveis e imagináveis, haveria outro espaço de possibilidades: “O mérito de Deleuze é buscar um elemento que expressasse a pluralidade, uma pluralidade que não deixa reduzir a uma totalidade abarcável pela razão ou pela imaginação” (SOUZA, 2010, p. 54). O nome do elemento que expressa pluralidade é sensação. Que não pode ser definida nem pela forma nem pelo conteúdo, mas, atravessando-os. A sensação trabalha por dentro, conecta-os a um fora:

A forma ganha uma potência de expressão que o clichê impedia de nos fazer ver. O mesmo se passa com o Afeto, que liberta a emoção de sua vinculação puramente psicológica, dotando-a de uma natureza que transborda todo o vivido, lançando-nos em uma experiência na qual o “objeto” é o próprio sentir (SOUZA, 2010, p. 55).

“Forma” e “conteúdo” foram conectados a um fora, para poder expressar a sensação na poesia. No “deslimite” da “forma” e “conteúdo” foi criada conectividade que expandiu o próprio espaço, a fuga do limite se fez pela conexão com espacialidade de diferença. O autor seguiu a dica do poeta em experimentar as coisas (natureza, linguagem) com o corpo, para não apenas perceber, refletir e imaginar, mas criar outra dimensão própria do sentir, liberando a sensação para passar além das dicotomias sujeito objeto (de conhecimentos teóricos e empíricos, eruditos e populares, clássicos e românticos, artísticos e filosóficos) rompendo seus limites. A espacialidade, por essa via, além de se libertar das forças do pensamento, que opera por oposição, foi transfeita para inaugurar à sensação de expressão no deslimite espacial vivido. Confirmando que a arte existe porque vida não basta30.

Souza (2010, p. 71) não operou olhar acostumado, buscando dar vazão à diferença na análise do poético. No caso do prefixo “des”, que não foi compreendido na primazia do “conceito linguístico” (“negação”, “privação”, “afastamento”), mas do

30 Em alusão a imortal expressão de Ferreira Gullar (1930-1916, poeta, escritor e crítico de arte): “A arte existe porque a vida não basta”.

“instinto linguístico” do poeta, fazendo-o funcionar como ação de “transfazer” a poesia: “Mais do que negar ou significar uma privação, “des” expressa potencialização: um “transfazer” da coisa em outra” (SOUZA, 2010, p. 73). O “des” ganhou ideia de ação, potência de acontecimento para transformação, mesmo não sendo nada, algo sem significação, “nasceu do instinto como potência”, resultado de “vontade estética”.

O uso do prefixo “des”, diferente da proposição de Carpinejar (2001) - que viu o prefixo como tentativa de salvar a língua do clichê -, gerou potência para transfazer, colocar o espacial em transe, agitado por forças contínuas para transformação, um espaço de fluidez para além das “formas-conteúdos”.

O espaço vivificado surge na análise do poema “Agroval” (em “Gramática Expositiva do Chão”), no qual despontou beleza e consistência na expressão do “deslimite”:

Sob o “ventre” que duplica abaixo de si o infinito de relações que o pantanal engendra, misturam se plantas e bichos, pólens e sêmens, sangues e seivas, como se cada ser individuado perdesse, sob esse novo ventre, as suas diferenças específicas ou os limites que separam e determinam a essência de cada espécie de seres. Pois são abolidas não só as diferenças específicas, são também as diferenças entre os reinos animal e vegetal (SOUZA, 2010, p. 74).

Primeiramente, foi conferida a “matéria de poesia” como natureza em plena pluralidade coletiva, manifestação vital que priorizou a multiplicidade de relações em detrimento das diferenças específicas. O “ventre”, como espaço que “duplicou abaixo de si o infinito de relações”, abolindo as individualidades específicas (espécie + fixa) para multiplicidade que colocou fim nas dicotomias.

Nada mais de indivíduo e espécie, matéria e forma, vivo e não vivo: desapareceram todas as dicotomias que organizavam a percepção da natureza segundo a perspectiva do pensamento representativo e classificatório, uma vez que a nova natureza que pulula sob o ventre da arraia deixa ver apenas agenciamento singulares de diferenças pré-individuais que afirmam um mesmo plano de imanência vital. Cada singularidade é, a seu modo, uma atualização de uma mesma virtualidade intensiva: a Vida. A arraia se transforma na imagem biológica de uma Alma do mundo pousada no barro – no ventre da qual pulula molecularmente uma natureza em luxúria (SOUZA, 2010, p. 75).

A “nova natureza”, no deslimite dos limites naturais, se fez apenas por encontros, que tiraram as naturalidades da natureza, fazendo convergir em potência de

afirmação da Vida. Deu-se, assim, a constituição de um plano de imanência vital no ventre da arraia.

A crítica mais rasa da obra de MB trataria tudo como metáfora, expositora das coisas ínfimas, valorizando todas as formas de vida, inclusive, as de pequenas escalas. Traria à confirmação da percepção atenta (do poeta) aos detalhes, e assim, já se estaria aberta a via, para “parafernália” infinita de analogias e tentativas de enfiar conteúdo na metáfora da vida.

Por essa linha, toda a potência do fazer poético se perderia, pois o que está em jogo não é a imagem metafórica da vida, ou o poder da poesia em copiar, comparar, compor mimese, representação ou classificação da realidade, nenhuma forma ou conteúdo de indivíduos ou espécies foi afirmada no plano de imanência vital.

Ao contrário, pela confirmação da força do próprio plano de imanência da Vida, a natureza que pulula sob o “ventre da arraia” (em agenciamentos singulares de diferenças pré-individuais, ocultas e imperceptíveis) foi revelada a voz inaugural da natureza/poesia, como sensação da “imagem biológica de uma Alma do mundo pousada no barro”. As diferenças de análises são sensíveis. Enquanto uma abordagem caminha para os clichês31, a outra tem na Vida a afirmação da potência do deslimite, encontrando na sensação do Caos-germe o nascimento do mundo.

O deslimite da natureza se erigiu por essa linha molecular de diferenciação intensa da matéria, na composição de um grande corpo sem órgãos: “O corpo sem