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Crítica dialética da dialética hegeliana: uma implicação crítica do tratamento marxiano das

Ao ascender do abstrato ao concreto e, assim, estabelecer uma totalidade por meio da qual seria possível reconstruir as categorias fundamentais da economia política burguesa a partir das suas próprias determinações atuais - o capital em geral - , Marx põe, na base mesma dessa reconstrução, uma contradição insolúvel do ponto de vista da sua materialidade: a dependência genética do capital (trabalho objetivado) com relação ao trabalho (atividade subjetiva) e a dependência histórica do trabalho com relação ao capital (expropriação universal dos meios de produção), de modo que 1- o capital busca - sem sucesso - eliminar a sua dependência do trabalho e se totalizar efetivamente enquanto sujeito autônomo do processo de valorização e 2- o trabalho busca - sem sucesso - se livrar do domínio do capital e se tornar sujeito autônomo do processo de produção da riqueza.

Como Marx pretende uma reconstrução dialética das categorias econômicas a fim de que o modo de produção capitalista seja apreendido na sua totalidade, ele recorre à dialética hegeliana, que é "a última palavra em toda filosofia" (MARX, 1978f: 561). Ocorre que, do ponto de vista dessa dialética, não há contradição que não se resolva por si mesma e que não se torne fundamento de uma nova contradição (HEGEL, 1995a: 236-238). Isso se põe frontalmente contra o diagnóstico de Marx a respeito da sociedade burguesa, segundo o qual a contradição fundamental da produção em geral historicamente determinada não só se mostrou insolúvel até a sua época, como não apresenta perspectivas de superação a partir de si mesma. Daí a necessidade de se pensar a negação prática do capital em geral enquanto estruturador social, econômico, político e cultural da sociedade moderna: infelizmente não se propõe uma forma positiva dessa negação, mas sabemos que a aposta política de Marx foi uma organização política da classe trabalhadora que busque construir uma revolução social, isto é, o "passo além" com relação à revolução política iniciada pela burguesia francesa em 1789. Como, então, se utilizar de uma filosofia que exige algo no plano ideal que não ocorre no real?

A resposta à essa questão é o tema deste último capítulo, qual seja, o desvirar da

dialética hegeliana. Entendemos esse tema como uma implicação crítica do tratamento

marxiano das abstrações em sua maturidade, na medida em que esse impasse surge do desenvolvimento da totalidade abstrata do capital em geral, cuja gênese e oposição é o

trabalho em geral estranhado. Ele será desenvolvido em dois momentos: 1- o sentido do

"desvirar a dialética"; e 2- o procedimento de desvirar a dialética.

3.1- A luva dialética de Hans Friedrich Fulda, ou o desvirar da dialética hegeliana como exercício crítico marxiano: o avesso do avesso.

Em função do tratamento dialético dispensado por Marx àquela contradição materialmente insolúvel indicada acima, a dialética hegeliana sofrerá uma transformação. A necessidade dessa transformação é afirmada por Marx na sua carta a Lassalle de 31 de maio de 1858: "Tão mais essa dialética seja incondicionalmente a última palavra de toda filosofia, tão mais é necessário, por outro lado, libertá-la (sie zu befreien) da aparência mística que tem em Hegel" (MARX, 1978f: 561). O sentido dessa "libertação da aparência mística" pode ser apreendido em pelo menos três menções:

1°- Marx (1974c: 538) escreve em carta a Ludwig Kugelmann de 06 de março de 1868: "[...] meu método de desenvolvimento não é o hegeliano, pois eu sou materialista, e Hegel, idealista. A dialética de Hegel é a forma fundamental de toda dialética, mas somente

após a esfola (Abstreifung) da sua forma mística, e isso distingue precisamente meu método";

2°- em carta a Joseph Dietzgen de 09 de maio de 1868 lemos o seguinte: "As leis corretas da dialética já estão contidas em Hegel; contudo em forma mística. Trata-se de esfolar (abstreifen) essa forma. [...]" (MARX, 1974d: 547);

3º- afirma-se no posfácio à segunda edição de O capital de 1873: "Nele [em Hegel], ela [a dialética] se encontra de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la (sie umstülpen), a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico" (MARX, 2013a: 91).

A transformação da dialética hegeliana aparece, então, como "libertação" e "esfola" da sua forma mística, como o seu "desvirar" para que, assim, se descubra o seu "cerne racional". Embora sejam utilizadas três figuras distintas, notamos que elas se referem a um só processo: à crítica da dialética hegeliana. Tentaremos aqui explorar o sentido desse "libertar-esfolar- desvirar" (befreien-abstreifen-umstülpen) por meio das considerações de Fulda (1975). Mas,

antes, problematizaremos esse sentido, notadamente o do "desvirar".

A citação mais conhecida a respeito da relação crítica que Marx estabelece com a dialética hegeliana é aquela já mencionada e presente no posfácio à segunda edição de O

capital, de 1873, onde lemos:

A mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impede em absoluto que ele tenha sido o primeiro a expor (dargestellt hat), de modo amplo e consciente, suas formas gerais de movimento. Nele, ela se encontra de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la (sie umstülpen), a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico. (MARX, 2013a: 91) (Grifos nossos)

Temos aqui - bem como nas referências mencionadas no segundo parágrafo deste tópico - uma testificação à época de O capital de que a dialética hegeliana é algo válido, desde que liberta da forma mística oriunda do tratamento teórico-filosófico de Hegel. Do ponto de vista de uma possível resolução crítica dessa mística, a dialética está de cabeça para baixo, enquanto o próprio ato crítico para com ela é definido como o seu desvirar. Por serem expressões figuradas, os dois termos em itálico protagonizam compreensões divergentes entre si e até mesmo incompreensões que impactam, de alguma forma, os textos de ciências sociais que tomam esse eixo teórico como referência.

Um exemplo é Celso Furtado em seu livro Dialética do desenvolvimento. Logo no início afirma o economista brasileiro:

O fato de que Hegel, em sua ânsia de integrar um sistema filosófico, fôsse buscar no desenvolvimento de uma suposta Idéia Absoluta o fundamento da dialética não tinha maior significação do ponto de vista da validade desta como método. Marx compreendeu muito bem êste ponto quando afirmou que Hegel havia concebido a dialética de cabeça para baixo, e que tudo que lhe coube fazer foi pô-la de cabeça para cima. (FURTADO, 1964: 14) (Grifo nosso)

Nesse texto, Furtado expressa uma compreensão da crítica marxiana à dialética hegeliana que se confunde em alguma medida com a crítica feuerbachiana, tal como comentamos na nota 29 desta dissertação. Ou seja, segundo essa leitura, Marx teria tão somente invertido a dialética de Hegel. O que antes estava de cabeça para baixo foi posto de cabeça para cima, o que se iniciava com o predicado se inicia agora com o sujeito, o primado da idealidade se torna primado da materialidade etc142. Grespan (2002: 30-31) explica que

uma inversão entre o material e o ideal implica tão somente em um inversão da ordem desses elementos, conservando, contudo, a forma da dialética. Se é possível, pois, inverter o conteúdo ao mesmo tempo que se mantém a forma, isso significa que forma e conteúdo estão separados e indiferentes entre si e, portanto, estão encerrados em uma relação dicotômica e não-dialética. Vale lembrar que Marx (2013a: 90) reconhece o seu método não apenas como diverso ao de Hegel, mas como diretamente oposto a ele, "[...] de modo que há também uma oposição formal entre eles" (GRESPAN, 2002: 31). Outro argumento que podemos apresentar nesse sentido é o trecho da carta supracitada de Marx (1974c: 538) a Kugelmann, na qual escreve: "A dialética de Hegel é a forma fundamental de toda dialética, mas somente após a

esfola da sua forma mística, e isso distingue precisamente meu método" (grifos nossos).

Portanto, quando abordarmos o processo mesmo de desvirar a dialética, levaremos em conta a forma e o conteúdo em relação recíproca.

Pensamos que essa compreensão que negligencia a oposição formal entre as dialéticas hegeliana e marxiana parte de uma confusão entre inverter (umkehren) e desvirar (umstülpen), a qual pode estar tanto associada a uma negligência com relação ao estudo da filosofia hegeliana como a uma tradução não problematizada e literal do termo alemão auf den Kopf

stehen. Literalmente e de fato, esse termo denota algo que está de cabeça para baixo, mas

pode conotar também algo que está fora do lugar, sem ordem, desorganizado. Vejamos, por exemplo, a fala de Mephistopheles entre os versos 11.735 e 11.738 na segunda parte de Faust, segundo a tradução para o português de Haroldo de Campos (1981: 21): "Maldição! Minha tropa se dispersa! / Satanazes caem de ponta-cabeça, / Aos trancos, de roldão, cabriolando, / De culatra, vão todos dar no inferno". Percebemos aqui que o verso "Satanazes caem de ponta-cabeça" (Satane stehen auf den Köpfen) indica não só a queda dos demônios, mas

pode ter permitido a Furtado uma percepção teórica marxista da luta de classes que fosse, a um só tempo, conformada ao ponto de vista do capital em geral e consoante a uma teoria política da reprodução. Ou seja, na medida em que Marx tenha posto a dialética hegeliana "de cabeça para cima", a sua novidade se restringe a uma nova perspectiva lançada sobre a mesma forma, de modo que, mesmo em um contexto de luta de classes, o Estado mantenha a função positivamente conciliadora que tem em Hegel e esteja posto, em si mesmo, enquanto politicamente neutro. Nesse sentido e em condições "flexíveis" (leia-se "condições democráticas ótimas"), o Estado tende a absorver essa luta, transformando-a em desenvolvimento das forças produtivas: "Sem essa flexibilidade das instituições políticas, as lutas de classe não poderiam ter desempenhado o papel de instrumento propulsor do desenvolvimento das forças produtivas que lhes coube, nem o capitalismo teria alcançado o impulso que conheceu" (FURTADO, 1964: 41). É bom esclarecer que não questionamos o diagnóstico de Furtado, mas sim as implicações de sua interpretação da crítica de Marx a Hegel. Isso porque, caso a forma idealista se mantenha, ou nesse caso, o Estado mantenha essas características ideais e a propriedade de absorver as lutas sociais, mostrando-se, de modo idealista, como o momento da resolução das contradições entre capital e trabalho, essa análise tende a anular teoricamente os possíveis protagonismos políticos advindos da sociedade civil, isto é, da classe trabalhadora enquanto sujeito político.

também a desorganização típica de uma retirada de tropa ao fim de uma batalha perdida. Outro exemplo que podemos dar da literatura alemã sobre a nuance desse termo está no romance Jakob der Lügner, publicado em 1969 e escrito por Jurek Becker. A narrativa se passa na Alemanha durante o nazismo. A personagem Felix, ao reprovar a ideia de ter um aparelho de rádio no gueto judaico para acompanhar os avanços das tropas russas contra os nazistas, argumenta: "Quero dizer, uma vez que a Gestapo saiba que há um rádio no gueto, o que eles fazem? Colocam imediatamente cada rua de pernas pro ar, casa por casa, não darão sossego enquanto não tiverem encontrado o rádio"143 (BECKER, 1982: 59) (grifo nosso). Ou

seja, "colocar cada rua de pernas pro ar" ([stellen] jede Straße auf den Kopf) conota claramente que todos os lugares do gueto serão revirados pela polícia a fim de que se encontre o aparelho de rádio. Portanto, traduzir auf den Kopf stehen/stellen como "colocar/estar de ponta-cabeça" sem alguma nota de esclarecimento pode levar a interpretações tais como a que vimos acima, a qual, tomada isoladamente, pode sugerir um Marx maduro comprometido com a crítica feuerbachiana dos anos 1840, diferentemente do que afirmamos na nota 29 desta dissertação.

Se "estar de ponta-cabeça" não significa somente que algo está ao contrário de sua posição normal ou natural, então a sua resolução não pode estar restrita a uma "inversão", como vimos acima. Antes, o ato crítico de Marx é o desvirar (umstülpen), o qual se relaciona com uma desorganização tanto de forma quanto de conteúdo. Para Fulda (1975: 206),

"Desvirar" denota muito mais um processo, tal qual se o executa, por exemplo, em uma luva144. Ocorre também aqui que, o que antes - sob certas circunstâncias [se apresentava] de modo inverso - estava acima, agora veio abaixo. Ao mesmo tempo, contudo, ocorre que, o que antes estava fora, ainda que sob certas circunstâncias pertença ao interior, agora veio de fato para dentro; e aquilo que, nesse caso e de modo falso, estava dentro, veio para fora. Estando escondido, por exemplo, um caroço na luva, ele aparecerá, assim, por si mesmo com esse procedimento de desvirar; seu envoltório é "esfolado".145 (Grifos nossos)

143NT: Tradução nossa de: "Ich meine, auf einmal weiß die Gestapo, daß im Ghetto ein Radio ist. Und was machen die? Sie stellen sofort jede Straße auf den Kopf, Haus für Haus, sie geben nicht eher Ruhe, bis sie das Radio gefunden haben."

144NI: Vale mencionar que, em outro texto, Fulda (1978: 188) utiliza, além da imagem da luva, a de uma manga de camisa (Ärmel) dobrada.

145NT: Tradução nossa de: "'Umstülpen' bezeichnet vielmehr einen Vorgang, wie man ihn zum Beispiel an einem Handschuh vornimmt. Auch dadurch kommt, was vorher - unter Umständen verkehrterweise - oben war, nun nach unten. Zugleich aber kommt, was vorher außen war, obwohl es unter Umständen nach innen gehört, nu tatsächlich nach innen; und das, was in diesem Fall fälschlicherweise innen war, kommt nach außen. War etwa im Handschuh ein Kern versteckt, so wird er bei diesem Umstülpverfahren ganz von selbst zum Vorschein kommen; seine Umhüllung wird 'abgestreift'."

O movimento de desvirar envolve, portanto, segundo esse exemplo, pelo menos três sentidos: de cima para baixo, de fora para dentro e de dentro para fora. Bem mais profundo que um mero "colocar de cabeça para cima", o desvirar provoca uma mudança não só de perspectiva - do que o objeto é para o observador -, mas também do objeto em si. Tomando o exemplo da luva de Fulda: se em um primeiro momento se trata de uma luva de couro com forro de lã, ao virá-la do avesso ela se torna uma luva de lã com forro de couro. Alteram-se aparência, função, denominação, etc.

Devido o grau de abstração do exemplo, não tomaremos aqui os sentidos desse movimento como indicações metodológicas a serem rigorosamente cumpridas, mas apenas como indicadores de que o que Marx propõe extrapola a imagem de algo que, uma vez de cabeça para baixo, basta que seja tornado de cabeça para cima. Entretanto, a partir do argumento de Müller (1982: 26), podemos notar um desenvolvimento mais concreto do sentido proposto por Fulda:

Não basta inverter, uma segunda vez, aquilo que a especulação já inverteu, com a intenção de fazer a dialética hegeliana andar com os próprios pés, para que ela revele um potencial de racionalidade que a projete além de seus limites idealistas. É preciso, além de invertê-la, virá-la do avesso, como exige a outra significação presente na palavra alemã "umstülpen", mostrando que as contradições presentes nos fenômenos não são a aparência de uma unidade essencial, mas a essência verdadeira de uma "objetividade alienada" [...], e que sua resolução especulativa na unidade do conceito é que representa o lado aparente, mistificador, de uma realidade contraditória. Virando ao avesso a realidade invertida, alienada pelo capital, "enquanto figura objetiva consumada da propriedade privada", a contradição que estava do lado de fora, transforma-se no seu verdadeiro interior, [...] e o que estava por dentro, a unidade resolutiva e integradora das contradições, revela-se como o seu exterior aparente, o seu envoltório não só místico, mas mistificador. (Grifos nossos)

Essa longa citação se fez necessária na medida em que, a partir da discussão etimológica realizada por Fulda (1975; 1978), põe claramente aqueles elementos que se movem de dentro para fora e de fora para dentro, os quais iremos desenvolver no próximo ponto, a saber a contradição e a sua unidade resolutiva e integradora. O importante por ora é, no entanto, tão somente ressaltar a significação do desvirar marxiano da dialética hegeliana, a saber: se, para Hegel, a sociedade moderna vive - em termos sociológicos - um momento de dilaceração dos sentidos e de diversificação dos papéis sociais, nos quais se produzem

conflitos e múltiplas visões de mundo, ao mesmo tempo que conserva dentro de si, enquanto essência, algo que a mantém em unidade, "a unidade resolutiva e integradora das contradições" (como o Estado, por exemplo)146; então resulta desse exercício crítico de Marx -

desenvolvido durante toda sua trajetória intelectual, mas que apresenta seus traços mais marcantes, do ponto de vista do método, na década de 1850 - que essa unidade resolutiva seja

externa, aparente, o fenômeno de um núcleo racional, real constituído pela contradição. Assim

atesta Cressoni (2014: 113):

É necessário, se não quisermos ser levados a concluir que Marx foi ingênuo quanto à relação de forma e conteúdo, [...] que a unidade especulativa, que enreda a contradição e a resolve harmoniosamente, dê lugar à contradição, e aí sim tratarmos Marx como autor de uma dialética de fato revolucionária - o que Marx vinha buscando desde sua juventude. Deste modo, o contraditório deixará de ser um momento na elaboração da unidade especulativa da ideia lógica, para constituir-se, de fato, enquanto fundamento que põe e, por isso, enreda a unidade lógica almejada do capital. (Grifos nossos)

Isso não significa, contudo, que a obra de Hegel seja falsa do ponto de vista desse processo crítico. São interessantes, nesse sentido, os apontamentos de Schmied-Kowarzik (1981: 70) sobre os desenvolvimentos marxianos na Crítica da filosofia do direito de Hegel, através dos quais ele afirma que Hegel, em sua filosofia do Estado, teria expressado a verdade

das relações efetivas, mas

[...] a verdade do presente, [de] que [1] o Estado assumiu uma existência independente com relação aos indivíduos sociais, [de] que [2] eles se confrontam na sociedade burguesa em um total isolamento: não é essa a efetividade racional, a qual vem à luz nesses elementos como crê Hegel, mas sim a verdade nua das relações presentes e estranhadas.147 (Grifos nossos)

As relações presentes e estranhadas pela ação alienante do capital teriam sido, assim, tratadas

146NI: Aqui se faz particularmente interessante a recuperação que Habermas ([1985] 2000: 31) faz de Hegel: "'Quanto mais progride a formação, mais diverso é o desenvolvimento das manifestações vitais em que a cisão pode se entrelaçar, maior é o poder da cisão... e mais insignificantes e estranhos ao todo da formação são os esforços da vida (outrora a cargo da religião) para se reproduzir em harmonia'. Essa frase provém de um escrito polêmico contra Reinhold, o chamado Differenzschrift, de 1801, em que Hegel concebe a harmonia dilacerada da vida como sendo o desafio prático e a necessidade da filosofia". Tal "desafio prático" e "necessidade da filosofia" parecem ter sido consumados em Hegel a partir da ideia de eticidade, uma unidade especulativa constituída a partir de formas substanciais de harmonização social das relações intersubjetivas, quais sejam, a família, a sociedade civil e o Estado (HEGEL, 1995c: 295-336).

147NT: Tradução nossa de: "[...] die Wahrheit der Gegenwart, daß der Staat sich gegenüber den gesellschaftlichen Individuen verselbständigt hat, daß diese in der bürgerlichen Gesellschaft sich in totaler Vereinzelung gegenübertreten, doch ist dies nicht die vernünftige Wirklichkeit, die hierin zum Vorschein kommt, wie Hegel glaubt, sondern die nackte Wahrheit der gegenwärtigen entfremdeten Verhältnisse."

por Hegel como relações efetivas não estranhadas, uma vez que elas teriam encontrado no Estado a unidade resolutiva para suas contradições148. Assim sendo, completa mais adiante:

"Tarefa da crítica é, portanto, revelar a verdade do presente, a qual Hegel afirma como racional, no seu estranhamento e na sua gênese efetiva como [verdade] estranhada [...]149"

(SCHMIED-KOWARZIK, 1981: 70-71) (grifos nossos). Ou seja, a "verdade do presente" não é considerada como falsa, mas como ponto de partida necessário a partir do qual o exercício crítico se desenvolve na direção do desvelamento da gênese efetiva daquilo que é dado, bem como da percepção de seu caráter estranhado atual. Não podemos deixar de notar uma certa similitude entre essa "verdade do presente", a "representação natural" tratada criticamente por Hegel na sua Fenomenologia e a "representação caótica" mencionada no capítulo anterior.

Desvirar a dialética hegeliana e evidenciar, assim, a "verdade do presente" como uma "verdade estranhada", teria, portanto, o sentido de alocar a contradição no interior da sociedade burguesa, na sua "anatomia", ao mesmo tempo em que a unidade conciliadora, antes interna ao objeto, seria posta para fora, como aparência desse objeto. Desse modo, Marx teria tornado a dialética hegeliana adequada à realidade social que ele buscava ler, o que demonstra uma primazia do objeto sobre o método: como o objeto de Marx, o capital em geral, a totalidade distintiva do modo de produção moderno, apresenta uma contradição que não se soluciona por si só na materialidade, o método que irá apreendê-lo e expô-lo deve ser capaz de conceber uma contradição que, do ponto de vista das suas próprias determinações,

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