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Os antolhos da crítica social : um estudo sobre o papel da abstração na teoria crítica de Karl Marx

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Academic year: 2021

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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

HYURY PINHEIRO

OS ANTOLHOS DA CRÍTICA SOCIAL:

um estudo sobre o papel da abstração na teoria crítica de Karl Marx.

CAMPINAS 2016

(2)

OS AI{TOLHOS DA CRÍTICA SOCIAL: UM ESTUDO SOBRE O PAPEL DA ABSTRAÇÃO NA

TEoRrÀ cRÍTICA on Knnr, MARX

Dissertação apresentada

ao

Instituto

de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual

de

Campinas

como

parte dos

requisitos exigidos para a obtenção do título de

Mestre em Sociologia.

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE

A

VERSÃO

FINAL DA

DISSERTAÇÂO DEFENDIDA

PELOALT]NO HYTIRY PIN}IEIRO, E ORIENTADA PELO PROF. DR. JESUS JCISE RANIERI.

CAMPINAS 2016

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Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Izabel Cristina Barbosa dos Santos - CRB 7078

Pinheiro, Hyury,

P655a PinOs antolhos da crítica social : um estudo sobre o papel da abstração na teoria crítica de Karl Marx / Hyury Pinheiro. – Campinas, SP : [s.n.], 2016.

PinOrientador: Jesus José Ranieri.

PinDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Pin1. Marx, Karl, 1818-1883. 2. Abstração. 3. Capital. 4. Dialética. I. Ranieri, Jesus José,1965-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: The blinders of social critique : a study on the role of abstraction in the critical theory of Karl Marx

Palavras-chave em inglês: Abstraction

Capital Dialectic

Área de concentração: Sociologia Titulação: Mestre em Sociologia Banca examinadora:

Jesus José Ranieri [Orientador] Sávio Machado Cavalcante Mauro Castelo Branco de Moura Data de defesa: 28-03-2016

Programa de Pós-Graduação: Sociologia

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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 28 de março de 2016, considerou o candidato Hyury Pinheiro aprovado.

Prof. Dr. Michel Nicolau Netto

Prof. Dr. Mauro Castelo Branco de Moura

Prof. Dr. Sávio Machado Cavalcante

Profa. Dra. Maria Orlanda Pinassi

Prof. Dr. Sílvio César Camargo

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

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Agradeço aos meus pais pelo suporte material e espiritual. À Patrícia, por despertar amor nos momentos em que predominava a racionalidade, por demonstrar o valor do positivo frente à efemeridade do negativo e por provocar vários insights que compõem esse trabalho. À Helyda e ao Diego, pelas intermináveis discussões políticas e teológicas. À Hyara e ao Roni, pelos lanches de sexta-feira e conversas sobre direito. À Valentina, por me tirar da frente do computador e me fazer sair vez ou outra para o quintal.

Agradeço ao Prof. Dr. Jesus José Ranieri, que não só é o meu orientador, como foi também quem me despertou o interesse por uma abordagem de Marx que levasse em conta o processo de formação do seu pensamento crítico. Ao Prof. Dr. Fernando Lourenço, cujo incentivo, orientação e apoio foram marcantes. Ao Prof. Dr. Sílvio César Camargo, cujas aulas sempre me provocaram a explorar outros olhares teóricos. Ao Prof. Dr. Paulo de Tarso da Silva Santos, que, junto aos professores Francisco Orlandini, Fábio Eduardo Iaderozza e José Renato Polli, criou ilhas de pensamento crítico na grade disciplinar da graduação em Ciências Econômicas que cursei no Centro Universitário Padre Anchieta.

Agradeço ao grupo de estudos de O capital, por meio do qual vários pontos deste trabalho foram desenvolvidos. À Tábata e Murillo, por me fazerem achar normal discutir divergências teóricas nos corredores do Instituto; ao Neto, por sempre chamar a atenção para as implicações políticas da teoria; à Érika, agitadora de bares e entusiasta (no melhor sentido do termo!) de uma terra sem amos; ao Luiz Fernando, que sempre traz consigo uma erudição cultural subversiva do real; à Laura Alberti, pelas anotações da minha qualificação e pela companhia de cantina; à Laura Luedy, companheira de estudo de alemão e tentativas de tradução; ao Raphael Silveiras, por sempre me lembrar de duvidar da ciência; e ao Vitor Queiroz, pelos papos provocativos que ajudaram a encaminhar o tema desta dissertação.

Agradeço ainda à profa. Norma Wucherpfennig, à profa. Anisha Vetter e ao CEL-Unicamp, que me deram acesso à língua alemã. Ao CNPq, sem o qual seria inviável o trabalho que aqui se apresenta. E, por fim, às trabalhadoras e trabalhadores que vendem sua força de trabalho na Unicamp e nas agências de fomento de pesquisa no Brasil, sem as quais e os quais não teríamos nenhuma estrutura para fazer avançar a compreensão e a crítica da tragédia que vivemos.

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não vi é que me clareou.

Mia Couto

Quem adoeceu uma vez de hegelianismo [...], jamais volta a ser completamente curado.

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O estudo das nuances do papel da abstração na formação do pensamento crítico de Karl Marx (1818-1883) sugere um viés da complexidade do fazer teórico do autor. Percebe-se que, ao comparar partes significativas da sua produção de juventude e de maturidade, esse papel ganha novos contornos. Longe de significar ruptura, esses novos contornos demarcam uma complexificação daquele papel. Tal complexificação caracterizará a sua reflexão sobre o método de apreensão da realidade social, por meio da qual seu diagnóstico de modernidade se tornará cada vez mais concreto. A crítica da economia política, bem como a crítica dialética da dialética hegeliana, aparecem como desdobramentos da sua investigação social. Mediante essas duas críticas, as categorias político-econômicas serão não apenas negadas em sua virtualidade, mas também sistematicamente reconstruídas e atualizadas: a crítica incindirá em suas formas e conteúdos histórico-sociais, de modo a "sincronizá-las" em relação às determinações atuais do modo de produção capitalista. Essa reconstrução, que se apresenta sob a forma de sistema, tende a ser negada na medida em que as determinações do capital e do trabalho, concebidos em suas generalidades e reflexividades, tendem a se transformar. A partir da leitura aqui proposta, a teoria social marxiana aparece, portanto, como um método de reconstrução da realidade ocorrente na trilha do pensamento que é determinado em função do seu objeto, qual seja, no caso dos Grundrisse e O Capital (livros I e II), o capital em geral. Sendo o capital em geral a síntese de múltiplas determinações e sendo tais determinações historicamente determinadas, tal categoria é mutável e deve, assim, ser atualizada a cada novo desenvolvimento histórico e objetivo de suas determinações. Dessa forma, o capital em geral, enquanto abstração determinada e sintética, expressa o resultado de um esforço de recomposição crítica e ideal da totalidade a partir de elementos abstratos e parciais reflexivamente relacionáveis. É ainda, nesse sentido, um guia - tal qual os antolhos de um cavalo que o mantém no caminho a ser trilhado - ao exigir de nosso olhar teórico rigor e disciplina para reconstruir e expor a nova totalidade que se esconde por trás das representações categóricas vigentes. Vista desse ângulo, a teoria social de Marx nos desafia constantemente à análise do novo.

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The study of the nuances of the role of abstraction in the formation of critical thinking of Karl Marx (1818-1883) suggests a bias on the complexity of the theoretical making from the autor. It can be seen that when comparing significant parts of his production of youth and maturity, this role gains new boundaries. Far from signifying a rupture, these new boundaries indicate a complexity of that role. Such complexity will characterize his reflection on the method of apreehending social reality, through which his diagnosis of modernity will become increasingly concrete. The critique of political economy, and the dialectical critique of Hegelian dialectics, appear as outcomes of his social research. Through these two critiques, the categories of political economy will not only be denied in its virtuality, but also systematically rebuilt and updated: the critique will focus on their social-historical forms and contents, in order to "synchronize them" over current determinations of the capitalist mode of production. This reconstruction, which presents itself in the form of system, tends to be denied in that the determinations of the capital and labor, which are designed in their generalities and reflexivities, tend to transform themselves. From the reading proposed here, the Marxian social theory appears, therefore, as a method of reconstruction of reality that occurs on the trial of thought that is determined according to its object, which is, in the case of the Grundrisse and The Capital (volumes I and II), the capital in general. Being the capital in general the synthesis of multiple determinations and being such determinations historically determined, such a category is mutable and must therefore be updated in every new historical and objective development of its determinations. Thus, the capital in general, as determined and synthetic abstraction, expresses the result of a effort of critical and ideal recomposition of the totality based on abstract and partial elements reflexively relatable. It is also in this sense a guide - just like the blinders of a horse that keeps it on the route to be followed - that requires of our theoretical look rigor and discipline to rebuilt and expose the new totality that hides itself behind the existing categorical representations. Seen from this angle, the social theory of Marx challenges us constantly to analyse the new.

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Introdução...12

1- A crítica marxiana de juventude à filosofia especulativa: sobre a questão das abstrações...18

1.1- Crítica à construção especulativa: a subjetivação do predicado...19

1.2- Crítica à construção "positivista", ou o resultado da especulação tornado imediato...25

1.3- O problema da abstração no jovem Marx...39

1.3.1- As etapas da crítica marxiana a Hegel segundo a leitura de Jindřich Zelený...42

1.3.2- Algumas abordagens marxianas do problema da abstração entre 1841 e 1847...51

1.3.2.1- Abstração enquanto "totalidade abstrata"...51

1.3.2.2- Abstração enquanto lógica que predestina o objeto...54

1.3.2.3- Abstração enquanto potencialmente desmistificante e efetivamente mistificante...59

1.3.2.4- Abstração enquanto velamento das relações sociais de produção...69

1.4- Consideração parcial...72

2- Da crítica contra as abstrações à crítica por meio da abstração: formas de assimilação da dialética hegeliana na década de 1850...74

2.1- Dois momentos da crítica marxiana às abstrações político-econômicas: 1847 e 1851...76

2.1.1- Crítica às abstrações político-econômicas através da consideração histórico-econômica das relações sociais de produção...77

2.1.2- Crítica às abstrações político-econômicas através de alguns elementos hegelianos: escritos de 1851...81

2.1.2.1- Marx a Engels, 03 de fevereiro de 1851...83

2.1.2.2- Os cadernos londrinos (1850/53): um fragmento do caderno VIII...91

2.1.2.3- Os cadernos londrinos (1850/53): um fragmento do caderno VII...95

2.2- Razões externas para uma leitura hegeliana dos textos anteriores: evidências de uma "cultura hegeliana" entre os interlocutores de Marx. (Um excurso)...106

2.3- A busca pela totalidade em uma multidão de contingências: os Grundrisse de 1857...112

2.3.1- O caminho da reconstrução...115

2.3.2- O capital em geral como abstração crítica, ou os antolhos da crítica social...130

2.4- Considerações parciais...142

3- Crítica dialética da dialética hegeliana: uma implicação crítica do tratamento marxiano das abstrações...145

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exercício crítico marxiano: o avesso do avesso...146

3.2- O procedimento marxiano de desvirar a dialética hegeliana segundo a leitura de Jorge Grespan...153

3.2.1- Identidade hegeliana versus diferença marxiana...153

3.2.2- Contradição hegeliana versus contradição marxiana...157

3.3- Considerações parciais...167

4- Antolhos que nos cegam, antolhos que nos guiam: algumas considerações finais...169

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Introdução

O texto que será apresentado nas páginas a seguir foi resultado de alguns recuos com relação ao tema do projeto apresentado no processo seletivo do Programa de Pós-Graduação em Sociologia - IFCH/Unicamp de 2014. Esses recuos podem ser entendidos como avanços, na medida em que foram provocados por reflexões que nos levaram a perceber que a pesquisa, tal qual foi proposta no projeto, demandava esclarecimento de outras questões. A proposta inicial era estudar o lugar da categoria de igualdade social dentro da teoria do valor de Marx. Pretendíamos, com isso, aproximar o texto Sobre a questão judaica (1843) ao de O

capital (1867) a fim de apontar possíveis conexões entre o papel do Estado burguês e o papel

do capital enquanto relação social dominante do modo de produção moderno.

Essas conexões se dariam em dois aspectos: 1- ambos funcionariam como niveladores sociais parciais, e 2- ambos expressariam e imporiam uma ordem normativa que conferiria à sociedade uma regularidade determinada. Com relação ao primeiro aspecto, enquanto o Estado nivelaria os indivíduos em seus momentos jurídicos, como cidadão ou sujeito de

direito, o capital os nivelaria, mediante o valor, no momento da circulação de mercadorias, na

relação de compra e venda por meio da qual eles aparecem como compradores e vendedores. A conexão entre Estado e capital implicaria na não separação desses aspectos, de modo que fossem complementares um ao outro. Com relação ao segundo aspecto, tanto o Estado como o capital seriam expressões sintéticas de determinações abstratas e simples das vidas jurídica e econômica, a partir da qual a consciência teórica poderia realizar generalizações de fenômenos, enunciando leis, construindo sistemas teóricos, etc. A teorização jurídica e econômica da sociedade seria matéria de uma imposição normativa ao social, produzindo assim uma regularidade artificial - o que seria lido por alguns filósofos e economistas modernos como leis naturais da sociedade. A partir disso, poderíamos problematizar, por exemplo, a capacidade dos agentes econômicos em realizar ações de longo prazo, como planos de investimento, por meio dos quais o processo de acumulação de capital ocorre mais rapidamente, transformando assim, nesse mesmo passo, as formas de manifestação do próprio capital. Seria, também, um esforço em explorar as potencialidades teóricas da teoria marxiana do valor, pelas quais pretendíamos construir, posteriormente, uma análise social do capitalismo contemporâneo.

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momento da pesquisa deveria ser entender o papel da circulação simples na explicação do modo capitalista de produção, já que é lá que as determinações do valor são efetivamente realizadas - o que suscitou, entre outras questões, a dúvida sobre os possíveis limites da teoria do valor na própria teoria marxiana crítica do capitalismo, a qual constituirá um dos problemas de nossa pesquisa no doutorado. Sabíamos, entretanto, mediante a leitura do livro I de O capital, que a circulação simples é apenas um momento - ainda que necessário - do processo de produção do capital e que, portanto, um estudo isolado desse momento seria algo parcial e incompleto. Isso nos levou a buscar compreender o que era "capital" para Marx, e por que ele se apresenta de tantas formas e pontos de vista distintos.

Chegamos assim à necessidade de compreender o chamado capital em geral, uma categoria total e abstrata, sintética das múltiplas determinações essenciais do modo de produção capitalista. Daí surgiram três perguntas: a- por que seria necessária uma categoria tão abstrata para a investigação do concreto; b- como tal categoria poderia surgir da cabeça de um materialista como Marx; e c- como foi construída essa categoria. Essas três questões tinham em comum uma dúvida mais geral: qual é o papel da abstração no pensamento crítico de Marx? Tal seria nosso objeto de investigação, o qual, em função dessas questões, apresentaria três entradas: α- comparação entre o papel da abstração no pensamento do jovem e do velho Marx, a fim de compreender como a sua posição materialista foi capaz de, na maturidade, conceber uma categoria tão abstrata quanto o capital em geral enquanto algo real; β- reflexão sobre o papel da abstração no método que concebeu essa categoria; e γ- implicações críticas dessa categoria, o que aponta para, além da importância do capital em geral na crítica marxiana, a importância do próprio papel da abstração nessa crítica.

Portanto, esta dissertação passou do tema de seu projeto para um ante tema. O intuito é tentar responder qual o sentido de dizer que o capital é uma totalidade, já que, na ideia inicial de investigação, esse sentido era tanto pressuposto quanto mal compreendido por nós. Nossa esperança é que esse texto auxilie a leitora ou o leitor a compreender esse sentido, tanto quanto nos ajudou durante a sua elaboração, muito embora reconheçamos que ele esteja longe de ser um estudo completo e incontestável. Esperamos, antes, a sua contestação. Apresentados o objeto e sua história, vejamos os meios de investigação e sua estrutura.

Procuramos aqui, na medida do possível, nos pautar nos textos de Marx, sejam eles textos publicados sob a forma de artigos de jornais, livros e trabalhos acadêmicos, sejam eles não publicados em vida do autor, como esboços, rascunhos e cartas. Utilizamos amplamente

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as traduções disponíveis desses textos, mas sempre mediante um exercício de cotejamento, a fim de não tomar o sentido da tradução pelo sentido do escrito original. Recorremos a comentadores naqueles momentos em que julgamos não ter acúmulo de leitura o suficiente para tratar de algum aspecto determinado da obra de Marx. Por exemplo, no tópico sobre as etapas da crítica marxiana de juventude a Hegel, nos pautamos no estudo de Zelený ([1968] 1974) sobre o tema; a nossa compreensão sobre a natureza do capital em geral está ancorada nas leituras de Rosdolsky ([1968] 2001), Reichelt ([1970] 2013) e Moseley (1995); e, finalmente, toda a discussão sobre o método e o desvirar da dialética foi baseada nos trabalhos de Fulda (1975; 1978), Müller (1982), Flickinger (1986), Ranieri (1997/1998) e Grespan (2002).

No primeiro capítulo buscamos trabalhar o papel da abstração no jovem Marx. Os textos-base foram fragmentos de Diferença da filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro (1841), Crítica da filosofia do direito de Hegel (1843), Manuscritos econômico-filosóficos (1844), A sagrada família (1845) e Miséria da filosofia (1847). A partir da análise desses textos chegamos a uma apreciação geral negativa das abstrações. Isto é, o processo de abstração aparece como objeto de crítica de Marx, na medida em que ele, de modo geral, leva ao velamento da diversidade interna do objeto concreto. No segundo capítulo buscamos apresentar um movimento pelo qual essa apreciação se complexifica. Além de objeto de crítica, a abstração passa a ser meio de articulação de categorias econômicas - por meio de categorias lógicas hegelianas - e meio de reconstrução de uma totalidade - processo de análise prévia do ascenso ao concreto. Os textos-base são cartas de Marx escritas na década de 1850, extratos dos chamados Cadernos londrinos (1850/53), artigos de jornais publicados nessa década e alguns extratos dos Grundrisse (1857/58). Por fim, no último capítulo antes das considerações finais, tratamos da implicação crítica desse modo de operar com as abstrações que levou Marx ao capital em geral: o desvirar da dialética hegeliana. Aqui os textos de Marx serão utilizados para dar substância às afirmações de Fulda (1975), Müller (1982) e Grespan (2002). Abordaremos, ainda, durante a dissertação, alguns textos de Hegel, na medida em que o argumento demande.

A partir dessa estrutura, esperamos suscitar uma reflexão sobre o papel das abstrações nas pesquisas em ciências sociais e econômicas. Daí utilizarmos a figura dos antolhos no título desta dissertação. Antolhos são aquela viseira que se costuma colocar nos cavalos para que eles vejam tão somente o caminho que será trilhado. Assim eles apresentam um duplo

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sentido em analogia ao uso das abstrações: aparecem tanto como um aparato que impede o olhar teórico de apreender o todo, impedindo assim a sua investigação; como um meio pelo qual, dada a impossibilidade da apreensão imediata do todo, esse olhar teórico se direciona metodicamente àquelas determinações apreensíveis, organiza-as e, assim, reproduz a totalidade no pensamento. Ou seja, no primeiro sentido tomamos o olhar limitado como o todo, e os antolhos nos cegam. No segundo sentido, tomamos o olhar limitado como olhar limitado, e buscamos, por meio de um método, alcançar a totalidade a partir dessa limitação: aqui os antolhos nos guiam.

Por último, gostaríamos de estabelecer algumas convenções. A primeira é acerca da periodização do pensamento de Marx. Partimos daquela sugerida por Vaisman (2000: 18-19), segundo a qual a maturidade do autor, caracterizada como "segunda fase" do seu pensamento, é "inaugurada" pelos Grundrisse de 1857/1858 e precedida por uma fase de transição que corresponde ao período de 1850/1856. O período 1843/1848, cujo marco inicial é a Crítica da

filosofia do direito de Hegel, é considerado a "primeira fase marxiana", na qual transparece a

originalidade do seu pensamento e se percebe nele uma ruptura. Essa ruptura se dá em relação ao período "propriamente juvenil", que corresponde a 1841/1843. Vaisman (2000: 18) considera ainda que "os textos que vão de 1841 [...] até 1847 não formam uma unidade, não podendo nem mesmo serem considerados como bloco preparatório para a obra posterior; [...]".

Adotamos essa periodização, portanto, com duas ressalvas: segundo demonstrará nossa dissertação, por mais que concordemos em não considerar a produção marxiana do período 1841/1847 um "bloco preparatório", uma "unidade", isso não significa imediatamente a ausência de toda e qualquer conexão desses textos entre si e deles com os de maturidade. Como nosso argumento se baseia em uma linha de conexões entre esses textos que não apresentam, entretanto, uma continuidade muito clara, consideraremos, para efeitos didáticos, esse período de 1841/1847 como período de "juventude". De igual modo, apesar de mantermos a consideração do período de 1850/56 como uma "transição", o percebemos aqui como pertencente ao período de maturidade, uma vez que a forma da crítica de Marx sofre, já nessa "transição", uma mudança sensível: a busca pela sistematização da crítica.

Deixamos claro, contudo, que não desconsideramos a crítica da filosofia do direito de Hegel como um marco de ruptura no pensamento marxiano. Apenas destacamos que há, em um texto de 1841, uma possível conexão que possibilita, do ponto de vista da problematização

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aqui desenvolvida, uma continuidade entre os dois períodos - 1841/1843 e 1843/1848. Da mesma forma, os períodos de 1850/56 e 1857 em diante também aparecem unidos sob um ponto de vista problemático desta dissertação, a saber, a diferença entre a forma da crítica a partir de 1850 e aquela vigente até 1847. Assim sendo, essas ressalvas buscam tornar a periodização apresentada mais didática do ponto de vista do objeto deste trabalho.

A segunda diz respeito ao tratamento dispensado às citações. Sempre que se tratar de um escrito em língua estrangeira, apresentaremos no corpo do texto a nossa tradução para o português seguida de uma nota de rodapé, na qual constará o trecho original citado, a fim de que haja a possibilidade de contestação da nossa leitura. Quando citarmos traduções já publicadas, elas serão sempre cotejadas com o texto original. No caso de divergências, substituiremos a(s) palavra(s) ou trecho(s) traduzido(s) por nossa solução, a qual estará marcada pelo uso de colchetes - "[]". Essa(s) substituição(ões) será(ão) sucedida(s) pela(s) palavra(s) ou trecho(s) original(is) correspondente(s), e estará(ão) marcada(s) pelo uso de parênteses - "()". Teremos de ignorar, portanto, quando utilizadas, o uso de colchetes nas traduções, de modo que elas apareçam como texto corrido e que nossas intervenções estejam em evidência.

Caso julgarmos que a solução dada pela tradutora ou tradutor não contemplou plenamente o sentido por nós interpretado de um termo ou de uma oração, mas, ainda assim, não conseguirmos encontrar uma solução que resolva essa assimetria, conservaremos a solução dada, a qual será sucedida pelo termo ou oração original marcado pelo uso dos parênteses. Como existem alguns casos de traduções que se utilizam desse recurso e pode ocorrer que a ideia da tradutora ou tradutor coincida com a nossa, marcaremos os momentos dessa coincidência através da nota de rodapé. Mas, a princípio, as ocorrências desse recurso nas traduções publicadas serão ignoradas por nós.

Em terceiro e último lugar, devido à grande quantidade de notas de rodapé do trabalho, elaboramos um sistema de classificação para elas a fim de que a leitora ou o leitor possam decidir se vale a pena ou não lê-las. Isso porque há muitas notas que, por exemplo, contém apenas os trechos originais dos escritos utilizados, e pode ocorrer que a leitora ou leitor não domine o idioma em questão, de modo que não haja razão para que a nota seja lida. As notas serão classificadas como: notas de tradução (NT), que trazem o escrito original traduzido por nós no corpo do texto ou algum comentário sobre a tradução; 2- notas de imersão (NI), que apresenta um aprofundamento de determinado aspecto apresentado no corpo do texto, o qual

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poderia comprometer a dinâmica da cadeia de argumentos; 3- notas de ramificação (NR), que apresentam assuntos conectados a determinado aspecto do corpo do texto mas que extrapolam o tema do trabalho (achamos importante manter esses insights, para fazer desse trabalho tanto um documento de memória investigativa quanto para apontar as possibilidades suscitadas pelo tema); notas de esclarecimento (NE), que trazem esclarecimentos gerais sobre o texto em si, sendo utilizados, por exemplo, para explicar formas de sistematização do argumento ou apontar conexões futuras de aspectos determinados.

Tendo estabelecido essas considerações introdutórias, expomos, a seguir, a redação de nossa dissertação.

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1- A crítica marxiana de juventude à filosofia especulativa: sobre a questão das abstrações.

Neste primeiro capítulo analisaremos a crítica marxiana de juventude a alguns aspectos da filosofia especulativa hegeliana, a fim de que se problematize a questão da relação entre abstração e realidade. Em primeiro lugar, queremos chamar a atenção para pelo menos dois aspectos do pensamento hegeliano apontados por Marx, os quais nos parecem centrais para o presente exercício: o aspecto "positivista" e especulativo desse pensamento1. Para

encampá-los, discutiremos dois excertos de textos marxianos extraídos de A sagrada família e a Miséria da filosofia, nos quais poderemos acompanhar sua crítica ao processo especulativo de engendramento do concreto2 a partir de categorias abstratas e ao assim chamado "método

absoluto". Depois de um primeiro contato com essa crítica - que se dirige a autores que teorizam a partir da chave hegeliana - buscaremos fundamentá-la a partir do embate crítico de Marx em face do próprio Hegel. Apresentaremos, então, tal qual nos sugere Zelený ([1968] 1974), um breve panorama do itinerário teórico de Marx no período 1841/1847, a fim de 1 NI: Esses aspectos são mencionados em Marx ([1844] 2004: 122, 130). Müller (1982: 26) os toma e os coloca como meios para compreender os seus textos de maturidade: "Daí a importância de reler O Capital também numa perspectiva de continuidade da crítica do jovem Marx a Hegel, particularmente da crítica ao

duplo aspecto mistificador do idealismo: ao aspecto 'positivista', enquanto o dado imediato, o existente,

transfigurado pela especulação, é assumido acriticamente e ratificado em sua positividade pelo sistema, e ao

aspecto especulativo, propriamente idealista, enquanto resolução harmonizante das contradições numa

unidade essencial, que se torna para Marx aparente, ideológica." (MÜLLER, 1982: 26) (grifos nossos) 2 NI: É importante aqui definir o que entendemos por concreto. Segundo Marx ([1857/58] 2011: 54): "O

concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece (erscheint) no pensamento como processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida efetivo e, em consequência, também o ponto de partida da intuição (Anschauung) e da representação (Vorstellung). Na primeira via, a representação plena foi volatilizada em uma determinação abstrata; na segunda, as determinações abstratas levam à reprodução do concreto [na via do pensar] (im Weg des Denkens)" (grifos nossos). Essa citação foi cotejada com Marx ([1857/1858] 1983). Temos aqui um concreto mediato, ou seja, o resultado de um processo de síntese da diversidade presente no mundo efetivo e reproduzido enquanto unidade no pensar. Ele pode ainda ser entendido, enquanto unidade sintética no pensar, como o conteúdo da consciência que, ao assumir formas diversas e determinadas, como p. e. intuições, sentimentos, etc., se mantém o mesmo, de modo que, sob essas tais formas determinadas, esse conteúdo se constitua objeto da consciência (HEGEL, [1830] 1995a: 42). A "matéria-prima", por assim dizer, desse concreto mediato seria o concreto imediato, os dados sensíveis do objeto em si externo à consciência tomado de maneira imediata, através de cuja "decomposição naqueles elementos que são, ao mesmo tempo, abstratos e objetivantes [...] se recompõe no pensamento o concreto

mediado, o resultado do processo" (RANIERI, 1997/1998: 156) (grifos nossos). Na nota 4 de seu artigo,

Ranieri (1997/1998: 155) aponta que tanto em Hegel como em Marx "o concreto só se apresenta como uma unidade sintética", sendo ele "a própria resolução da suprassunção (Aufhebung)". Quanto a isso, afirma Hegel (1995a: 167): "Esse racional [...] embora seja algo pensado - também abstrato -, é ao mesmo tempo algo

concreto, porque não é unidade simples, formal, mas unidade de determinações diferentes. Por isso a

filosofia em geral nada tem a ver, absolutamente, com simples abstrações ou pensamentos formais, mas somente com pensamentos concretos". Portanto, não há identidade necessária e imediata entre "concreto" e "matéria" enquanto dado sensível. O "concreto" conota, portanto, antes e de modo geral, a síntese de determinações diversas mediada pela consciência.

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situarmos aquela crítica no processo mais geral da apreciação marxiana do pensamento de Hegel. Depois, aprofundaremos a discussão que realiza Marx nesse período acerca da relação entre abstração e realidade no pensamento de Hegel. Veremos que aqueles dois aspectos não decorrem exclusivamente de uma má apreensão da filosofia hegeliana por seus intérpretes, mas resultam, antes e sobretudo, das próprias resoluções especulativas que conformam essa filosofia.

1.1- Crítica à construção especulativa: a subjetivação do predicado.

Uma primeira aproximação geral ao problema que queremos trazer nesse ponto pode ser ilustrada pelo fragmento sobre o amor em A sagrada família (MARX; ENGELS [1845] 2003: 31-34)3, onde Marx critica a caracterização dada por Edgar Bauer a esse sentimento. O

amor é, para Bauer, um "deus cruel" que "[...] quer possuir o homem por inteiro e não se mostra satisfeito antes de ter sacrificado não apenas sua alma, mas também seu ser físico". Assim aquele que ama é separado do próprio amor que é amado, de modo que a atividade levada a efeito pelo sujeito apareça fora dele, sendo ela mesma um ente apartado, autônomo, capaz não só de ter uma existência independente do sujeito que a realizara, mas de se apresentar como uma ameaça à própria existência do sujeito. Colocado de outro jeito, o

predicado se transforma no sujeito, de tal modo que todas as determinações da essência

(Wesensbestimmungen) e exteriorizações da essência do humano (Wesensäußerungen des

Menschen) podem se rearranjar em inessência (Unwesen) e alienações da essência

(Wesensentäußerungen). A forma como Edgar trata o amor seria análoga à forma como a Crítica crítica4 trata a crítica: essa última "enquanto predicado e atividade do homem" é

tornada "um sujeito à parte, que diz respeito apenas a si mesmo e é, por isso, Crítica crítica: um 'Molloch' cujo culto é o autossacrifício, o suicídio do homem, ou seja, da capacidade

humana de pensar" (MARX; ENGELS, 2003: 31).

O problema da subjetivação do predicado aparece de forma grave quando colocada do ponto de vista da especulação, dado que os resultados dessa prática terão consequências

positivamente significativas para a Crítica crítica, no sentido de constituir o modo do fazer 3 NE: As citações foram cotejadas com o original alemão (MARX; ENGELS [1845] 1962: 3-223).

4 NI: "Crítica crítica" é a designação dada por Marx e Engels ao grupo de Bruno Bauer que se articulou em torno da Allgemeine Literatur Zeitung e ao tipo de crítica lá produzida. A Allgemeine Literatur Zeitung era mensal e foi editada por Bruno Bauer entre dezembro de 1843 e outubro de 1844 (MARX; ENGELS, 2003: 15).

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crítico do grupo de Bruno Bauer; e consequências negativamente significativas para a crítica marxiana de juventude à economia política, uma vez que o fazer teórico de Marx será, nesse momento, em ampla medida, marcado pela crítica à prática especulativa. Ele trata da forma da especulação filosófica e de suas implicações para o exercício da crítica no momento em que critica a crítica literária que Szeliga - pseudônimo de Franz Friedrich Szeliga von Zychlinski - escreve no caderno de número 7 da Allgemeine Literatur Zeitung acerca do romance Mystères

de Paris, de Eugène Sue. Vemos que ele se ocupará nesse ponto da construção especulativa de modo geral, de forma a transcender à argumentação de Szeliga, a qual pretende transformar o

próprio Eugène Sue em um "Crítico crítico", na medida em que se interpreta o seu romance a partir das próprias categorias da Crítica crítica (MARX; ENGELS, 2003: 69). Não exploraremos essa argumentação na sua amplitude, pois não é nosso objetivo compreender as características de um "Crítico crítico", mas compreender a crítica marxiana à essa tal especulação filosófica.

O argumento de Marx se inicia com uma identidade entre o "mistério da [apresentação] crítica (kritischen Darstellung5) dos 'Mystères de Paris'" e "o mistério da

5 NI: O tradutor parece confundir "representação" (Vorstellung) e "apresentação", "exposição" (Darstellung) quando, na verdade, elas apresentam diferenças conceituais profundas. Apesar de não haver uma definição de "representação" no texto em questão, e levando em consideração o ambiente cultural e filosófico do qual Marx, Engels e seus interlocutores participavam, é possível que a seguinte citação apresente uma pista a fim de determinarmos o sentido de "representação": "O conteúdo que preenche nossa consciência, seja de que espécie for, constitui a determinidade dos sentimentos, intuições, imagens, fins, deveres, etc., e dos pensamentos e conceitos. Sentimento, intuição, imagem etc. são nessa medida as formas de tal conteúdo, que permanece um só e o mesmo [...]. Em qualquer uma dessas formas ou na mistura de várias, o conteúdo é

objeto da consciência. Mas, nessa objetividade, as determinidades dessas formas se juntam ao conteúdo, de

modo que, segundo cada uma dessas formas, um objeto particular parece surgir, e - o que em si é o mesmo - pode parecer um conteúdo diverso.

Enquanto as determinidades do sentimento, da intuição, do desejo, da vontade etc., na medida em que delas se sabe, são chamadas em geral representações (Vorstellungen), pode-se dizer de modo geral que a filosofia põe, no lugar das representações, pensamentos, categorias e, mais precisamente, conceitos. As representações, em geral, podem ser vistas como metáforas dos pensamentos e conceitos. Mas, pelo fato de se terem representações, não se conhece ainda sua significação para o pensar, não se conhece ainda seus pensamentos e conceitos. Inversamente, são também duas coisas diversas, ter pensamentos e conceitos, e saber quais são as representações, intuições e sentimentos que lhe correspondem." (HEGEL, 1995a: 41-42) Confirmamos os termos alemães em Hegel ([1830] 2003a).

Se para Hegel a representação "é o estágio intermédio entre a intuição (Anschauung), a apreensão sensorial de objetos externos individuais e o pensamento conceptual" (INWOOD, 1997: 287), a exposição (Darstellung) encontra-se em um estágio onde o pensamento já superou vários momentos rumo ao saber absoluto. Em Fulda (1978: 195-196) temos algumas indicações do que seria a exposição em Hegel e em Marx: se para ambos a exposição da matéria é a demonstração do desenvolvimento do conceito - e, portanto, o conceito é aqui pressuposto, isto é, já foi concebido -, há contudo entre eles diferenças quando se questiona sobre o que promoveria esse desenvolvimento, ou a partir do que se daria o seu movimento. Embora essas diferenças sejam interessantes - e elas serão exploradas em alguns momentos desta dissertação -, o importante por ora é ressaltar que a exposição indica a reprodução ideal do movimento de um objeto, sendo que esse movimento, para poder ser reproduzido em formato ideal (ideeles Gebilde), teve de ser submetido antes a um processo de conhecimento através do qual ele foi conceptualizado. Vale dizer que, em algum momento, esse processo de conhecimento terá de lidar com a questão sobre o que move o objeto, e essa

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construção especulativa, da construção hegeliana" (MARX; ENGELS, 2003: 72). Esse

mistério consiste basicamente na construção ideal de representações gerais a partir de elementos particulares efetivos, dentro das quais tais particularidades efetivas têm sua existência diluída; essa existência é alienada dos elementos efetivos para a representação, de modo que a representação se torne o ente a partir do qual as existências particulares ganham efetividade: assim a ideia engendra a efetividade. Esse argumento, bem como a sua crítica, ficarão mais claros ao acompanharmos o raciocínio de Marx nesse trecho.

Para dar uma forma mais simples à ideia, ele trabalha com o exemplo das frutas (MARX; ENGELS, 2003: 72): quando parte-se das diversas frutas que se apresentam aos sentidos e se forma uma representação geral - "a fruta" - na qual essa diversidade pode ser diluída; quando imagina-se que essa representação abstrata induzida das frutas efetivas existe

fora do sujeito que observa e é aquilo que há de verdadeiro na existência das frutas efetivas,

"[acaba-se] esclarecendo - em termos especulativos - 'a fruta' como a 'substância' da pera, da maçã, da amêndoa, etc.". O essencial dessas frutas apreendidas pelos sentidos está para além de suas propriedades naturais, está no "ser abstraído delas [pelo sujeito] e a elas atribuído, o ser da representação [do sujeito], ou seja, 'a fruta'". Pera, maçã, amêndoa, etc. são assim meros modos de existência da "fruta", de forma que elas passam a valer apenas como frutas

aparentes, tendo sua verdade encerrada na sua substância, na "fruta". Se o "entendimento

(Verstand) finito, baseado nos sentidos" é capaz de distinguir as frutas na sua diversidade, a razão especulativa (spekulative Vernunft) acusa essa diversidade sensível como "algo não essencial e indiferente", como algo aparente, de modo que pela via do entendimento não seja possível alcançar uma "riqueza especial de determinações" que dê concretude à verdade por trás da aparência, ou da diversidade.

Não basta também à especulação fazer da diversidade das frutas efetivas uma única "fruta" abstrata. É preciso que, através da tentativa de "retornar da 'fruta', da substância, para os diferentes tipos de frutas reais e profanas", chegue-se à aparência de um conteúdo efetivo (Schein eines wirklichen Inhaltes) (MARX; ENGELS, 2003: 73). Mas se é fácil engendrar, constituir (zu erzeugen) a representação abstrata "fruta" a partir das frutas efetivamente existentes, é muito mais difícil engendrar, constituir tais frutas a partir de uma representação abstrata. Marx chega a dizer que é "impossível, inclusive, chegar ao contrário da abstração ao se partir de uma abstração, quando não desisto dessa abstração". O filósofo especulativo resposta poderá ser tanto idealista quanto materialista. Pensamos que, com esses elementos apresentados, podemos estabelecer, ainda que de forma preliminar, uma separação entre representação e exposição.

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desiste, assim, da abstração, mas desiste dela de "modo especulativo, místico, ou seja, mantém a aparência de não desistir dela". Mantendo-se o princípio, ainda que de forma aparente, de que a maçã, a pera, a amêndoa, etc. são tão somente sua substância, "a fruta", pergunta-se sobre a razão da aparente variedade acusada pelo entendimento do filósofo, a qual contradiz a sua intuição especulativa da unidade ao retornar da substância para seus elementos "profanos", ou seja, ao tentar processar a diluição da essência das frutas na experiência sensível. A negação dessa unidade seria uma realidade, se para o filósofo especulativo "a fruta" fosse um ente "morto, indiferenciado, inerte"; tal ente é para ele, antes, algo vivente e que se diferencia em si mesmo, algo movente: por isso a unidade não é negada. "As diferentes frutas profanas", explica Marx (MARX; ENGELS, 2003: 73), "são outras tantas manifestações de vida (Lebensäußerungen) da 'fruta una', cristalizações plasmadas 'pela própria fruta'". Ou seja, a substância, "a fruta", não é aqui simplesmente um construto intelectual que organiza a experiência sensível a partir de categorias prévias a essa própria experiência, uma mera abstração a priori, mas é um ente que engendra aqueles elementos efetivos que se apresentam à percepção a partir de sua própria existência, de tal forma que "a fruta" se dá (gibt sich) na maçã uma existência (Dasein) maçãnica, "na pera uma existência pêrica" (MARX; ENGELS, 2003: 73), etc. A variedade não é senão expressão das distintas fases do processo de vida da "fruta". Seria portanto um desperdício de energia intelectual tentar compreender as diversas frutas sem ter em vista a natureza dessa diversidade, qual seja pertencer a um processo mais geral, esse sim detentor de uma verdade que torna racional esse caos de espécies e subespécies de frutas. Aqui vale a citação:

"A fruta" já não é mais, portanto, uma unidade carente de conteúdo, indiferenciada, mas sim uma unidade na condição de "totalidade" das frutas, que acabam formando uma "série organicamente estruturada". Em cada fase dessa série "a fruta" adquire uma existência mais desenvolvida e mais declarada, até que, ao fim, na condição de "síntese" (Zusammenfassung) de todas as frutas é, ao mesmo tempo, a unidade viva que contém, dissolvida em si, cada uma das frutas, ao mesmo tempo em que é capaz de engendrar a cada uma delas [...]. (MARX; ENGELS, 2003: 73-74)

Esse engendrar a existência do efetivo e esse expressar de modo misterioso tal existência é o que interessa à filosofia especulativa. Seria possível perguntar se Marx não incorre nessa especulação em sua obra O capital, notadamente naqueles trechos da seção I do livro I onde o valor parece ocupar o lugar da "fruta" como substância que engendra suas

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próprias formas enquanto momentos distintos do seu processo de vida. Parece-nos, contudo, que quando Marx afirma o trabalho como a substância do valor, ainda nesta seção I, ele se livra dessa "acusação", de modo que essa especulação ganhe um novo sentido. Mas esse assunto está reservado para adiante. Agora nos interessa a crítica que o jovem Marx faz à filosofia especulativa e que aparece de maneira explícita na seguinte consideração: se as diversas frutas que encontramos aparecem, no mundo especulativo, como "momentos vitais 'da fruta'", de um ente intelectivo abstrato, elas mesmas são também entes intelectivos abstratos. As frutas efetivas são tornadas encarnações "'da fruta', do sujeito absoluto", criações intelectuais. O resultado do retorno da representação geral, da abstração, ao material a partir do qual se a tinha concebido, redunda, assim, na transformação de elementos determinados segundo propriedades naturais em elementos determinados de modo sobrenatural: aqui as frutas se tornaram "puras abstrações", determinadas a partir de uma "conexão mística" entre si e definidas em função de sua característica especulativa, "através da qual ela [a fruta particular] assume um lugar determinado no processo vital 'da fruta absoluta'", de modo que "a fruta" se realize em cada unidade "frutífera" efetiva (MARX; ENGELS, 2003: 74).

Há, assim, por parte do filósofo especulativo, um processo criativo, na medida em que ele cria essas frutas a partir do seu intelecto abstrato. Esse seu intelecto aparece para ele, entretanto, como um sujeito absoluto exterior, independente dele, "a fruta". Vale dizer que esse ato de criação se dá não só com "a fruta", posto que seja só um exemplo, mas com toda existência que ele tente expressar pela via especulativa. Tal ato ocorre através da substituição das propriedades naturais dos elementos efetivos - propriedades essas "conhecidas universalmente e apresentadas à intuição [efetiva]" - pelas propriedades especulativas, ou melhor, através da "[atribuição dos] nomes das coisas [efetivas] àquilo que apenas o intelecto abstrato pode criar, ou seja, às fórmulas abstratas do intelecto (...)" (MARX; ENGELS, 2003: 75). A atividade própria das propriedades naturais das frutas efetivas é como que usurpada por essas fórmulas abstratas do intelecto, a partir do que essa atividade aparece como "autoatividade do sujeito absoluto, 'da fruta'".

Afirma ainda Marx (MARX; ENGELS, 2003: 75): "A essa operação dá-se o nome, na terminologia especulativa, de conceber a substância na condição de sujeito, como processo

interior, como pessoa absoluta, concepção que forma o caráter essencial do método hegeliano". É para esse aspecto do trato especulativo, do qual Szeliga lança mão ao

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"mistério" em sujeito independente, conversão essa que caracterizaria, segundo Marx (MARX; ENGELS, 2003: 75), a sua "altura verdadeiramente especulativa", a "altura

hegeliana". Apesar da crítica marxiana se ocupar aqui com a crítica szeligiana, Marx chama

atenção a um aspecto do modus operandi hegeliano que nos é particularmente interessante, do ponto de vista dos objetivos desta dissertação:

[...] Hegel sabe [expor] (darzustellen) o processo pelo qual o filósofo passa de um objeto a outro através da intuição [sensível] (sinnlichen Anschauung) e da representação, com maestria sofística, como se fosse o processo do mesmo [ente] intelectivo imaginado (des imaginierten Verstandeswesens), do sujeito absoluto. Mas depois disso Hegel costuma oferecer, dentro da exposição especulativa, uma exposição real, através da qual é possível captar a própria coisa. E esse desenvolvimento real dentro do desenvolvimento especulativo induz o leitor, equivocadamente, a tomar o desenvolvimento especulativo como se fosse real e o desenvolvimento real como se fosse o especulativo. (MARX; ENGELS, 2003: 75)

A filosofia hegeliana, além de construir esse sujeito absoluto e por tratar de um conteúdo efetivo na sua especulação, acaba por criar um efeito ilusório, através do qual a realidade, a efetividade aparece como especulação, e a especulação como realidade, como efetividade. O que chama a atenção aqui, contudo, é que Marx percebe a presença dessa realidade, desse conteúdo efetivo, no pensamento especulativo hegeliano6. Isso não ocorre,

contudo, com a exposição de Szeliga. Não se trata, portanto, de classificar Hegel como um ilusionista teórico e lançá-lo ao ostracismo como se não tivesse nada a oferecer à teoria social. Se trata, antes, como nosso autor realizará mais tarde, de desvirar (umstülpen)7 a dialética que

fora mistificada por Hegel, "a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico" (MARX, [1873] 2013a: 91).

6 NI: Tratarão desse aspecto da obra hegeliana, bem como da crítica de Marx à sua forma especulativa e estranhada, Schmied-Kowarzik (1981) e Arthur (2000) entre outros.

7 NI: O verbo umstülpen é traduzido nas obras de Marx correntemente como "inverter", tradução essa considerada insuficiente por Müller (1982), pois, com isso, parece que se trata simplesmente de "uma operação mágica trivial, como se bastasse pôr, novamente, a dialética hegeliana de pé, restabelecendo os direitos do realismo da consciência natural face ao idealismo de especulação, para que a pérola saísse sozinha da ostra. Não basta inverter, uma segunda vez, aquilo que a especulação já inverteu [...]. É preciso. além de invertê-la, virá-la do avesso, [...] mostrando que as contradições presentes nos fenômenos não são a

aparência de uma unidade essencial, mas a essência verdadeira de uma 'objetividade alienada' (e não da

'objetividade enquanto tal'), e que sua resolução especulativa na unidade do conceito é que representa o lado

aparente, mistificador, de uma realidade contraditória. Virando ao avesso a realidade invertida, alienada pelo

capital [...], a contradição, que estava do lado de fora, transforma-se no seu verdadeiro interior, na pérola racional desta realidade, e o que estava por dentro, a unidade resolutiva e integradora das contradições, revela-se como seu exterior aparente, o seu envoltório não só místico, mas mistificador" (grifos nossos). Isso será tratado no terceiro capítulo, mas achamos importante já deixar marcada essa compreensão sobre o verbo

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De qualquer forma, nosso objetivo com esse trecho foi apontar a crítica que o jovem Marx endereçara à filosofia especulativa, notadamente àquela que se apresenta à altura hegeliana, ou seja, àquela onde a representação geral, a abstração, enquanto sujeito independente, "se encarna nas situações de pessoas reais, e cujas manifestações de vida são condessas, marquesas, grisetes, porteiros, notários, charlatães e intrigas amorosas, bailes, portas de madeira, etc." (MARX; ENGELS, 2003: 75).

1.2- Crítica à construção "positivista", ou o resultado da especulação tornado imediato.

Dado esse problema relativo ao fazer filosófico idealista que diz respeito à autonomização de um predicado subjetivado através de um processo especulativo que, como apontou Marx, acaba por tornar os entes naturalmente determinados em algo determinado de forma "sobrenatural", podemos observar o prolongamento dessa problemática à questão das

categorias econômicas na sua crítica ao Système des contradictions économiques ou Philosophie de la Misère, de Pierre-Joseph Proudhon. O livro Miséria da filosofia8, onde se dá

essa crítica, foi escrito no inverno europeu de 1846-1847, "quando Marx", segundo Engels ([1884] 2009: 195, [1884] 1977: 558), "[chegou] (gekommen war) definitivamente [a]os princípios fundamentais de suas novas concepções (Anschauungsweise) históricas e econômicas9". Desse apontamento geral deriva a importância da obra, tanto para o exercício

de compreensão do pensamento crítico de Marx, como para a afirmação da continuidade e da validade da problemática apontada anteriormente que, como veremos, exercerá um papel fundamental não só na sua crítica a Proudhon, mas também no desenvolvimento da sua crítica à economia política. Vale dizer que tal significância persiste, apesar de possíveis polêmicas que possam ser suscitadas em torno dessa obra de Marx10. Nosso interesse se detém, de modo

8 NE: Dados os objetivos desta dissertação, não nos interessa avaliar se a resposta de Marx a Proudhon é realmente justa. Entretanto, existem algumas notas de rodapé interessantíssimas na edição brasileira (MARX, [1847] 2009) por nós aqui utilizada, onde são apresentadas anotações feitas por Proudhon no seu exemplar de

Miséria da filosofia que nos instiga a retornar ao Filosofia da miséria a fim de fazer essa avaliação, já que em

diversos momentos ele acusa Marx de escrever calúnias e mentiras a seu respeito, bem como nega alguns momentos da interpretação marxiana.

9 NI: Marx ([1859] 1985: 131) é da mesma opinião em sua maturidade: "Os pontos decisivos de nossa opinião [de Marx e Engels] foram indicados cientificamente pela primeira vez, ainda que apenas de uma forma polêmica, em meu escrito Miséria da filosofia [...] publicado em 1847 e dirigido contra Proudhon".

10 NR: Como sabemos, a edição alemã foi lançada em 1885 (a primeira edição foi francesa e lançada em 1847), seguidas de edições em 1892 e 1895, cuja tradução foi assinada por Eduard Bernstein e Karl Kautsky e, de alguma forma, apreciada por Engels (visto que ele escreve os prefácios dessas edições). Portanto, a primeira edição alemã apareceu dois anos após a morte de Marx, de modo que ele não pôde dar o aval da tradução, como foi feito com a edição francesa do livro I de O Capital. Dado o contexto do processo de formação da Segunda Internacional, e sendo traduzido por quem foi, levanta-se não só um problema para a compreensão

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geral, no §1. O método do capítulo 2- A metafísica da economia política, onde Marx fará 7 observações críticas acerca do método utilizado por Proudhon para construir seu "sistema de contradições"; e, de modo particular, nos ateremos aos elementos que essa crítica suscitará do ponto de vista do problema da relação entre abstração e realidade no contexto de um fazer teórico fortemente influenciado pela filosofia especulativa.

Já na primeira observação é possível perceber a identidade temática entre o trecho de

A sagrada família tratado anteriormente e aquilo que será aqui criticado. Mas se antes o foco

estava na construção especulativa de representações gerais a partir de uma intuição que se origina no sensível, as quais adquiriam autonomia ou autoatividade no processo especulativo, aqui o foco se colocará no próprio movimento do resultado desse processo, o qual será discutido através de uma apresentação do movimento da dialética hegeliana enquanto "método absoluto". Ou seja, o resultado do processo especulativo que se movimenta em função da sua própria legalidade lógica - lógica essa expressiva da substância desse resultado - aparece como dado imediato ao intelecto, sem uma problematização da sua gênese que remeta esse intelecto para fora do próprio resultado em si - isto é, para o seu processo de desenvolvimento que culmina na forma desse resultado - e a ele retorne para explicitar suas mediações, suas conexões internas. Daí o seu teor "positivista": explica um dado imediato sem o submeter ao questionamento crítico da sua forma de ser, mas tão somente a partir da

sua posição em um determinado sistema teórico prévio e exterior a esse dado. A questão que

se coloca aqui é: como esses resultados, ou categorias econômicas, expressam, a partir do seu movimento dialético, a existência das relações sociais efetivas? Segundo Marx, na tentativa teórica da obra a partir das edições alemãs, mas uma possibilidade investigativa do ponto de vista de uma história das ideias. O que nos interessa nesta dissertação, pois, em primeira instância, é o problema teórico. E esse se dá, ao nosso ver, por exemplo, quando existem duas palavras para "relação" na edição alemã (Verhältnis e Beziehung) enquanto no francês, apenas uma (rapport); e dois adjetivos para "relação" na edição alemã (sozial e gesellschaftlich), quando na edição francesa só há um adjetivo (sociaux). Ou ainda quando, como apontado em nota à página 130 da edição alemã publicada na Marx-Engels Werke (MARX, [1885] 1977), a expressão productivité materielle utilizada por Marx em 1847 é traduzida nas edições alemãs de 1885, 1892 e 1895 por Produktionsweise, ou "modo de produção". As causas, ou a causa, dessas diferenciações ou opções feitas por Bernstein e Kautsky podem, ou pode, apresentar uma polêmica que, intuímos, tenha relação com uma leitura que um grupo específico da Segunda Internacional tenha feito da obra de Marx a partir de uma compreensão teórica prévia da realidade social. Além dessa polêmica, Menezes (1966: 30) nos apresenta outra: Edgar Bauer, Max Stirner e Moses Hess, na condição de refugiados alemães na França da década de 1840, teriam antecipado a crítica que Marx endereçara a Proudhon, por considerarem ele "o mais genuíno representante do socialismo francês". E afirma: "[...] escrevendo seu libelo, Marx, sempre tão cioso na citação das fontes de suas análises, silenciou as críticas coetâneas, assumindo, aos olhos embasbacados de marxistas alheios às fontes ideológicas, o papel de semideus, esmagando sozinho todas as erronias do autodidata [Proudhon]." (grifo nosso). Acrescentamos que Marx não só "silenciou as críticas coetâneas", como também as criticou. Veja-se, por exemplo, em A sagrada família (MARX; ENGELS, 2003: 34-67), na qual se critica a crítica de Edgar Bauer a Proudhon, acusando o jovem hegeliano de "construir" um Proudhon a ser criticado através de sua "tradução caracterizadora".

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de aplicar a dialética à economia política a fim de responder à essa questão, Proudhon "conseguiu reduzi-la às mais mesquinhas proporções" (MARX, 2009: 124-125)11.

Mas, antes de entrar nessa questão, é preciso deixar claro que a intenção de Proudhon, segundo Marx, não é fazer "uma história segundo a ordem temporal, mas segundo a sucessão de ideias" (MARX, 2009: 120). Isso porque a manifestação das categorias econômicas não estaria subordinada à sua temporalidade, ou seja, elas se manifestariam em diversas temporalidades sem respeitar uma sucessão histórico-genética. As teorias econômicas teriam, antes, "a sua sucessão lógica e a sua série no entendimento" (MARX, 2009: 120) (grifos do original francês), ordem essa que Proudhon teria se orgulhado de ter descoberto. Para ele, as categorias econômicas já estão formadas: elas foram utilizadas pelos economistas para exprimir as relações de produção burguesa e aparecem, nesse exercício, "como categorias

fixas, imutáveis, eternas" (MARX, 2009: 120) (grifo nosso). Importaria a Proudhon "nos

explicar o ato de formação, a geração dessas categorias, princípios, leis, ideias, pensamentos" (MARX, 2009: 120) (grifo nosso), ou seja, dessas categorias imutáveis e eternas. A crítica de Marx vai no sentido de apontar que a imutabilidade dessas categorias deriva do fato delas estarem conectadas às relações burguesas de produção, sendo que tais relações apareceriam para Proudhon como dadas e não como algo historicamente construído. Nem os economistas, nem Proudhon teriam questionado, portanto, o processo histórico de produção dessas relações. Diante disso ajuíza Marx (2009: 121):

[...] a partir do momento em que não se persegue o movimento histórico das relações de produção, de que as categorias são apenas a expressão teórica, a partir do momento em que se quer ver nessas categorias somente ideias, pensamentos espontâneos, independentes das relações reais, a partir de então se é forçado a considerar o movimento da razão pura como a origem

desses pensamentos. (grifos nossos)

Ao ser "forçado a considerar o movimento da razão pura como origem desses pensamentos12", a origem das categorias econômicas é colocada dentro dos parâmetros da

especulação filosófica, do movimento da razão pura. Como se daria, então, essa origem, ou 11 NE: A citações desse texto foram cotejadas com o original francês (MARX, [1847] 1972) e com a edição

alemã (MARX, 1977: 63-182).

12 NI: Proudhon parece concordar com esse diagnóstico de Marx. Na nota 117 (MARX, 2009: 121) lemos o seguinte: "No seu exemplar [de Miséria da filosofia], Proudhon anotou: 'Certamente que se é forçado, porque, na sociedade, tudo é, não importa o que se diga, contemporâneo; como, na natureza, todos os átomos são eternos'. Rubel [editor das Oeuvres/Économie de Marx] considera essa 'observação bem obscura', e aventa a hipótese de que ela tenha qualquer relação com as reflexões epistemológicas que, sobre o atomismo, estão no 'prólogo' da obra de Proudhon".

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seja, como esse tal movimento procederia, segundo Proudhon, para engendrar pensamentos, ou categorias econômicas? Ao responder essa pergunta, Marx aponta o papel desempenhado pelo pensamento de Hegel na economia política de Proudhon. Ele esclarece: por ser essa

razão pura uma abstração, um sujeito que prescinde de outros elementos através dos quais se

dê a sua existência, sendo tal existência, assim, um resultado da sua própria autoatividade, é preciso pensar que ela não tem fora de si "nem terreno sobre o qual possa pôr-se, nem objeto ao qual possa opôr-se, [nem sujeito com o qual possa compor-se13]" (grifos nossos), de modo

que põe, opõe e compõe a si mesma, o que equivale à "fórmula sacramental: afirmação, negação e negação da negação14" (MARX, 2009: 121) de si e por si. Confere-se, pois, à razão

pura, por assim dizer, uma agência para consigo mesma por meio da qual ela se auto-engendra. Não há portanto um agente material, um indivíduo que age ou ao qual reage: "Em lugar do indivíduo comum, com a sua maneira comum de falar e pensar, o que temos é essa maneira comum inteiramente pura, sem o indivíduo" (MARX, 2009: 121-122).

Quando se trata da abstração de algo, ou seja, quando se trata de um processo pelo qual se abandona (laisser tomber) aqueles traços individuais, materiais e constitutivos que definem as distinções de um ente com relação a outro, lidamos com algo que, no limite e ao fim de tal processo, conserva de si tão somente categorias lógicas expressivas de alguma dimensão de sua existência concreta. Essas categorias lógicas podem ser entendidas, especulativamente, como portadoras da substância dos objetos ou como sujeitos abstratos. Essa substância corresponde àquele elemento essencial que dá realidade e identidade às formas diversificadas que se apresentam na efetividade. Tal exercício de abstração é realizado pelos metafísicos como se fosse um exercício de análise. A consequência desse tipo de exercício é que daí decorre a possibilidade de "que tudo o que existe [...] possa ser reduzido, à força de abstração, a uma categoria lógica; que, desse modo, todo o mundo real possa submergir no mundo das abstrações, no mundo das categorias lógicas [...]" (MARX, 2009: 122). Portanto, a consequência é justamente a possibilidade da especulação converter a diversidade concreta do "mundo real" em uma rede de conexões "místicas" ou lógicas derivada da autoatividade de uma entidade metafísica.

Como as coisas existentes não aparecem ao observador como uma coleção de elementos inertes e ordenados - ou um rol de substâncias revestidas de categorias lógicas -, 13 NT: Tradução nossa de: "[...], ni sujet avec lequel elle puisse composer, [...]" (MARX, 1972: 115). Não há

essa frase em Marx (2009).

14 NE: A tríade afirmação, negação, negação da negação é também formulada como posição, oposição,

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mas antes "tudo o que existe, [...] existe e vive graças a um movimento qualquer" (MARX, 2009: 122), então é possível também abstrair os traços distintivos dos movimentos específicos, tornando-se assim possível chegar "à fórmula puramente lógica do movimento" (MARX, 2009: 123). Assim como a substância de todas as coisas se encerraria nas categorias lógicas, "imagina-se encontrar na fórmula lógica do movimento o método absoluto, que tanto explica todas as coisas como implica, ainda, o movimento delas" (MARX, 2009: 123). Reduzindo os objetos e seus movimentos respectivamente às categorias lógicas e seu método, a metafísica aplicada se apropriaria da efetividade.

Apontada essa conexão entre movimento e método15 através do qual a metafísica

apreende e reproduz o efetivo, retorna-se ao problema colocado acima acerca do procedimento da razão pura para o engendramento das categorias econômicas. O método absoluto é apontado por Marx como abstração do movimento, ou seja, como "a fórmula puramente lógica do movimento ou movimento da razão pura" (grifo nosso) que, como vimos acima, consiste em, por si mesmo, "afirmar-se, negar-se, negar sua negação" (MARX, 2009: 123). A realização desses momentos, à qual estaria submetido o curso da existência da categoria, se daria, pois, pela própria razão no seu movimento. Quanto à explicação sobre como se dá a afirmação, posição ou tese dessa razão, Marx não aponta ainda qualquer elemento posto por Proudhon, o que indica que esse primeiro momento é dado, concentrando-se assim nos desdobramentos que concentrando-se dão a partir dessa afirmação, posição ou teconcentrando-se, os quais são constitutivos desse processo de apresentação de novos pensamentos ou categorias ao real.

Esse processo se dá como segue: após a razão se pôr enquanto tese - e ressaltamos que esse momento ainda não é problematizado -, essa tese, que é um pensamento, algo oposto a si mesmo, desdobra-se, tornando-se dois pensamentos contraditórios, os quais, estando em luta um com o outro, são encerrados na antítese, constituindo o movimento dialético. Nessa luta, nessa interação entre contrários, nessa interação contraditória entre sim e não, há um ponto onde o movimento cessa. Esse ponto, onde os contrários entram em equilíbrio, é alcançado após o sim tornar-se não, o não tornar-se sim, o sim tornar-se ao mesmo tempo sim e não e o não tornar-se ao mesmo tempo não e sim. Nesse momento, os dois pensamentos se fundem em um novo, qual seja a síntese. A síntese se submete ao mesmo processo: põe-se como tese, desdobra-se em dois pensamentos contraditórios, os quais se fundem dialeticamente em nova 15 NE: Veremos adiante que essa conexão - aqui criticada por expressar a autoatividade da razão pura e sua primazia diante do efetivo - é retomada por Marx para pensar a exposição crítica das categorias econômicas em sua maturidade.

Referências

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