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CAPÍTULO 1: Aguafuertes Cariocas: a viagem e seus antecedentes

1.1 Crônica e cidade moderna: uma relação intrínseca

Definida por Juan Villoro (2012) como “El ornitorrinco de la prosa” por apresentar em sua composição características de diversos gêneros, como o conto, o romance, o teatro, a entrevista, entre outros, a crônica, pode-se dizer, é um gênero híbrido.

Situada nas bordas da literatura e do jornalismo, toma elementos de ambos, estabelecendo-se nesse entrelugar do fatual e do literário. Desse modo, constitui-se como presença da literatura no espaço não literário do jornalismo e essa presença não causa estranhamento devido a um elemento fundamental ao gênero: à pressuposição de realidade que transmite ao leitor, que é garantida, entre outros aspectos, pelo relato em primeira pessoa, pelo olhar atento ao cotidiano e pela facilidade com a qual o gênero realiza um registro de sua época, resultando em uma estreita relação com seu contexto de produção. Susana Rotker em “Crónica, género de fin de siglo” (2005) argumenta que, dentre os gêneros literários, a crônica é a que melhor registra as mudanças sociais devido

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à rapidez de sua elaboração, que transmite o dinamismo e o sentido de urgência exigidos por serem publicações diárias em um jornal. Desse modo, assim como as notícias, que buscavam diariamente informar aos leitores de um jornal os últimos acontecimentos, as crônicas diárias também ocupavam as páginas dos jornais, no entanto, seu objetivo não era informar e sim provocar uma reflexão sobre alguns aspectos da modernidade, dado que, as transformações físicas e sociais resultantes da modernização eram narradas nestes textos, pois, como assinala Rotker: “contar es una forma de sobrevivir en una ciudad que se trasmuta a toda velocidad.” (ROTKER, 2005, p. 168). Por esse motivo, houve um grande desenvolvimento do gênero entre os últimos anos do século XIX e os primeiros trinta anos do século XX.

Outrossim, o desenvolvimento da impressa, possibilitado pelas campanhas de alfabetização em massa e pelo interesse cada vez maior por informação, levou às redações dos jornais vários escritores que buscavam nesse meio uma forma de transformar a escrita em trabalho assalariado. Villoro comenta que, na maioria das vezes, o cronista era um novelista ou contista que, estando em aperto econômico, dedicava-se a escrever para um jornal em troca de um salário ao fim do mês (VILLORO, 2012, p. 577). Segundo o autor, poucos escritores decidiram apostar nas crônicas desde o princípio e fazer do gênero uma forma de escritura contínua, como foi o caso de Roberto Arlt, para quem escrever crônicas era, além de uma profissão, uma forma de continuar escrevendo e publicar seus livros, já que por meio delas, tornou-se conhecido do grande público.

Como já foi esboçado nas páginas anteriores, o cronista era quem recuperava a experiência e a narração em um momento histórico (a modernidade) e um espaço (o jornal) onde a informação era extremamente valorizada, devido às rápidas transformações que incidiam sobre as cidades. Julio Ramos em Desencuentros de la modernidad en América Latina (1989) explica que as cidades que se constituíam no final do século XIX, com suas demolições e reconstruções, era uma representação espacial que refletia também a multiplicidade de seus âmbitos sociais e grupos heterogêneos, como, por exemplo, era o caso de Buenos Aires, que se transformava também pela presença da imigração estrangeira. Nessa época, o jornal representava, de alguma maneira, a fragmentação urbana nas superfícies de suas páginas, pois era possível, como afirma Ramos, “leer el periódico como la representación (en la superficie misma de su forma) de la organización de la ciudad, con sus calles centrales, burocráticas o comerciales, con sus pequeñas plazas

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y parques: lugares de ocio y reencuentro.(RAMOS, 1989, p. 124). É nesse espaço fragmentado, tanto da cidade quanto do jornal, que se estabelece a relação do cronista com a cidade moderna e da crônica com o jornal, pois a crônica cumpre a função de resgatar as formas primeiras da narrativa e de reconstruir a sensação de experiência deixada para trás pelo discurso jornalístico informativo4. E era o cronista, comenta Ramos, quem buscava reconstruir, por meio de suas caminhadas, a organização que a fragmentação da cidade impedia:

El paseo ordena, para el sujeto, el caos de la ciudad, estableciendo articulaciones, junturas, puentes, entre espacios (y acontecimientos) desarticulados. De ahí, que podamos leer la retórica como una puesta en escena del principio de narratividad de la crónica. (RAMOS, 1989, p. 126).

Nessa analogia, Ramos explica que o cronista é também aquele que, através de suas crônicas, reinsere a narratividade no espaço do discurso fragmentado que é o jornal e, desse modo, garante a autoridade de um sujeito que experimenta a cidade e a relata aos seus leitores. Dessa autoridade de quem experimenta a cidade vem a importância daquele que, por meio de suas andanças, busca entendê-la e, em que pese sua fragmentação, busca uma maneira de lê-la. Destaca-se desse contexto outra característica essencial da crônica:

sua marca subjetiva. Se um cronista realiza a função de ler a cidade, logo sua leitura estará atravessada por sua percepção de realidade. Como afirma Rotker, a crônica “es más bien como un cuento donde todos los datos dependen de la realidad inmediata, puesta en escena por un autor que nada inventa más que el modo de contar” (ROTKER, 2005, p.

166).

Villoro (2012), na mesma linha de pensamento que Ramos (1989) e Rotker (2005) ressalta a subjetividade do cronista como característica fundamental do discurso da crônica. Essa subjetividade, para Villoro, é garantida pelo ar de testemunho impresso em cada crônica, que, escrita em primeira pessoa e assinada com o nome de autor, traz ao leitor a credibilidade de alguém que apenas relata o que viu. No entanto, esse escritor ressalta que a crônica não tem como função um retrato fiel da realidade, até mesmo

4 Para construir sua argumentação, Ramos alude a Benjamin quando explica a função da crônica na cidade moderna. Em seu famoso ensaio “O Narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov” (1994) Benjamin diz que a arte da narrativa está desaparecendo na modernidade e que a informação é um dos fatores que contribuem para esse desaparecimento, assim como para o empobrecimento da própria experiência.

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porque, devido ao seu caráter subjetivo, é na verdade a forma como o cronista percebe a realidade, de modo que tem a prerrogativa de narrar o que não aconteceu, de preencher com a ficção os espaços que a realidade deixa em branco. Exemplo dessa prerrogativa pode-se reconhecer na crônica “Castos entretenimentos” publicada em 25 de abril de 1930, na qual Arlt comenta a amizade de um trio que ele imagina ser um casal e um amigo:

Los tres

Da gusto mirarlos. Juro que me da gusto y gozo inmenso ver qué bien se llevan los tres: el esposo, la esposa y el amigo de ambos. Da gusto y edifica el corazón ver tanta humana harmonía.

[…] Y gozo casta y recatadamente. No sé porqué. Quizá porque mi bondad encuentra bello el espectáculo de la ternura humana.

Posiblemente porque, como soy hombre puro, aspiro a los espectáculos que levantan el corazón con un panorama celestial. Y por el diablo que toda mi pureza encuentra en la mesa de los tres un campo propicio para madurar santos pensamientos. Y gozo casta y recatadamente. (ARLT, 2013, p. 91-92).

Arlt escreve uma crônica na qual sugere que entre a mulher e o amigo do casal há algo mais que uma bela amizade. Toda a primeira parte do texto é dedicada a construir, de maneira irônica, a certeza de que há um romance entre a mulher e o amigo. E essa certeza é construída somente pela observação que Arlt faz dos três nos momentos em que estão comendo juntos, sem que haja uma comprovação da situação que o cronista sugere. Para a construção de sua crônica, Arlt mescla o que vê enquanto observa o trio e o que imagina que acontece quando ninguém os observa, não importando para a narração se são reais ou não as suas suposições.

Passeando pela paisagem urbana e misturando-se a ela, Arlt construiu uma sólida carreira como cronista de cidade moderna, captando momentos do cotidiano urbano de Buenos Aires e, com a oportunidade que a viagem lhe trouxera, do Rio de Janeiro. Para o cronista, a nova configuração das cidades, com espaços públicos ocupados, suas modificações e contradições trazidas pela modernidade, era a fonte da qual dia após dia ele retirava suas histórias.

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