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“Os policiais sabem quem é traficante”

“Os policiais têm suas técnicas para realizarem os flagrantes” “Não se pode desmerecer o trabalho da polícia”

“Os policiais têm mecanismos para conseguir a confissão” “Os policiais sabem onde tem a ‘biqueira’, onde fica a ‘boca’, então quando ele diz que prendeu o sujeito nesse local, difícil acreditar que o cara não está envolvido com o tráfico”

CRENÇA NA CONDUTA DO POLICIAL

“Os policiais não têm motivos ou interesses para saírem por aí prendendo pessoas inocentes que não conhecem”

“A gente tem que partir do ponto de vista que a palavra do policial é legitima”

“Por que, sem qualquer motivação, os policiais imputariam a pessoas que não conhecem, um crime como este? “;

“Por qual razão os policiais estariam querendo te prejudicar?” “Então policiais agrediram os senhores sem que tivessem feito nada?”

“O acusado pode mentir, mas o policial tem o compromisso com a verdade”

CRENÇA DE QUE O ACUSADO VAI MENTIR

“Réu pode mentir”

“Por que manteve silêncio na delegacia? Inocentes nunca se calam”

“Você conhece o policial que te prendeu? Por que ele iria te bater? Você tentou fugir?”

“Onde estão as marcas das agressões”; “Por que policiais teriam o interesse de fazer isso com você se eles não te conheciam?” “Se você não cometeu o crime, por que ficou em silêncio na delegacia? Por que vem negar aqui no momento da audiência? Você deveria ter falado isso na delegacia, e não aqui.

“Apesar de negar em juízo, a pessoa confessou informalmente que estava traficando, o que demonstra a prática do crime” “O acusado pode mentir, mas o policial tem o compromisso com a verdade”

ASSOCIAÇÃO ENTRE CRIMINALIDADE E PERFIL SOCIOECONÔMICO*

“A pessoa não possui residência fixa e não tem trabalho lícito” “Como alguém, em situação de rua, poderia ter em seu poder oito porções de maconha e dinheiro”

“Se a acusada está desempregada, o que explica que ela tenha determinada quantidade em dinheiro? Este para mim é um indício de tráfico”

CRENÇA NO PAPEL DE DEFESA DA SOCIEDADE

“Como promotores a nossa função é tentar defender a coletividade”

“Mostrar para a sociedade que estamos combatendo o crime” “A prisão do acusado é necessária para o restabelecimento da ordem pública e para a credibilidade da justiça”

“Satisfazer o sentimento de justiça da sociedade” “Prisão como medida de defesa social”

“Resposta imediata”

“Mostrar que a justiça criminal está funcionando”

“Soltar o preso é desprestigiar o trabalho policial a prisão do acusado é necessária para o restabelecimento da ordem pública e para a credibilidade da justiça a sociedade espera de mim que eu a defenda de pessoas como você”

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QUADRO 13 – Repertório de crenças que oferecem o suporte à recepção da narrativa policial como verdade

*Neste caso, a crença na narrativa policial é relativa

Essas crenças são combinadas, entrelaçadas, sustentadas umas pelas outras nas estratégias discursivas dos operadores do direito. Elas compõem o que chamamos de “regime de validação”, um tipo de sistema em que os vocabulários são considerados ou não, a depender do repertório de crenças que lhes dá suporte.

Apesar da audiência de custódia não corresponder a uma fase processual, nem representar um momento de busca da verdade, os operadores do direito se manifestam e decidem a partir de uma avaliação dos autos de prisão em flagrante, considerado como um regime de validação. Ao fazer isso, já atribuem significados e interpretam as narrativas dos policiais e das pessoas em audiência. Perceptível o valor atribuído aos depoimentos policiais registrados nos autos em comparação com as narrativas das pessoas nas audiências de custódia. O vocabulário policial de motivos é acolhido e incorporado aos argumentos, sobretudo de promotores e juízes, em suas manifestações e decisões. Como não consideram verdadeiras as narrativas dos acusados, na maioria das vezes, expressões como “violência policial”, “extorsão”, “flagrante forjado” não aparecem nas deliberações de promotores e juízes. Entre a “invasão de domicílio” e a “entrada franqueada”, utilizam este último vocabulário. Entre a “negativa do acusado” em audiência e a “confissão informal”, incorporam esta confissão como “indício” do crime. Por vezes se pode encontrar questionamentos a esse vocabulário em peças da defesa, no entanto, em poucos casos foram acolhidos.

O repertório de crenças cria um tipo de campo de imunidade da narrativa policial, e que pode ser estendida aos próprios policiais. Como descrito na tese, juízes e promotores, no Estado Democrático de Direito, dispõem de meios para questionar os policiais, já que apresentam como uma de suas prerrogativas o controle externo da atividade policial e a proteção de garantias de direitos. As análises demonstraram que raramente os operadores assumem esse papel. Tratam-se de acomodações das crenças dos operadores do direito, sobretudo promotores e juízes, com relação às narrativas dos policiais, que se estende ao próprio policial. Ao invés de observarem os principíos constitucionais como presunção da inocência, princípio do contraditório e da ampla defesa, bem como o devido processo legal, promotores e juízes tendem a acreditar nas narrativas policiais, sem questionar possíveis situações de ilegalidade ou abusos. A

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audiência de custódia seria exatamente o momento para avaliarem se as circunstâncias da prisão foram “legais” ou “ilegais”, se houve abusos por parte da polícia, e se a manutenção da prisão era necessária. Contudo, o que se vê é a ratificação sistemática daquilo que foi produzido pela polícia.

Conforme descrito no Capítulo 4, os fatos narrados pelos policiais nos flagrantes partem de uma construção policial, de uma seleção prévia, enredada por um saber específico que relata, com base num determinado vocabulário de motivos, uma certa versão dos fatos. A atuação policial também pode apresentar outros interesses, como a questão da produtividade policial, ou também como resultado da atividade desse agente na gestão diferenciada dos ilegalismos, o que significa dizer que são responsáveis pela seletividade daquilo que será reportado à justiça criminal. Ao serem recepcionadas pelos operadores do direito, sobretudo por promotores e juizes, as narrativas policiais não são questionadas, pois, circulam num campo de pertinência que as tornam imunes.

É com base na crença que os operadores legitimam o poder policial, o saber policial e a credibilidade na polícia, e recepcionam as narrativas policiais como uma verdade policial. É este campo de imunidade que oferece as condições para que os enunciados sobre os flagrantes sejam recepcionados pelos operadores do direito como uma verdade.

A crença é apresentada pelos operadores do direito como necessária para o próprio funcionamento do sistema:

Vou ser sincero com vocês, a gente trabalha com autos muito precários. [...] O que chega aqui pra mim são flagrantes de pequenos traficantes, na maioria das vezes feitos pela Polícia Militar. [...] O que temos é o depoimento dos policiais, e é com isso que trabalhamos. [...] Se eu fosse ser realmente rigoroso, não daria para prender ninguém, tudo é muito precário. Então é assim, ou eu acredito no policial ou eu não acredito , caso contrário a coisa não funciona (PROMOTOR 1).

O promotor coloca a necessidade da crença na polícia. Por um lado, porque sem ela não há meios para o funcionamento do próprio sistema, “não se prende ninguém”, e por outro lado, a precariedade presente na estrutura policial conduz a uma certa “tolerância” a determinadas inconsistências nos autos. Para que a “magia” funcione, todos precisam acreditar nela.

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O vocabulário policial de motivos já são previamente acolhidos como verdade, e não passa por uma avaliação, mas por uma validação. Esse vocabulário não pode ser questionado sob o risco de colocar o funcionamento do sistema em perigo. A crença cria um campo de imunidade da narrativa policial e sustenta os argumentos que tornam possível que as narrativas policiais sejam recepcioinadas como verdade. O campo de imunidade permite que os juízes incorporem o vocabulário de motivos policiais em suas manifestações, que lhes possibilitará exercerem o seu poder de prender e punir.

Se o juízes tentam exercer o seu papel de garantir direitos e atuar de acordo com os princípios constitucionais, podem sofrer duras represálias dos órgãos da justiça criminal. O campo de imunidade, quando colocado em risco, desencadeia rearranjos no sistema. O caso descrito abaixo ilustra essa questão.

Quando as narrativas policiais são questionadas

A recepção das narrativas policiais como verdade é algo frequente, sendo raro o seu questionamento. Porém, quando essa narrativa é questionada por algum operador do direito, em especial magistrados, podemos verificar algumas reações desse campo, o que revela ainda mais a imunidade da narrativa policial no campo jurídico. Isso pôde ser constatado no caso descrito abaixo.

Um juiz que atuava no Fórum Criminal da Barra Funda realizava plantões nas varas criminais. Suas decisões colocavam em questionamento as narrativas policiais. Era comum, por exemplo, esse juiz invalidar a “confissão informal”, o que contrariava o entendimento do promotor público que a acolhia como “indício” do crime.

Constou da representação do Parquet que o averiguado teria confessado o crime. Não consta, porém, qualquer termo de sua oitiva informal – oitiva, aliás, de duvidosa constitucionalidade, posto que se tem dado sem a presença de um defensor e sem que necessariamente seja advertido ao averiguado que tem o direito de permanecer em silêncio. Já no auto de flagrante, constou que o averiguado exerceu seu direito ao silêncio.256

O juiz não reconheceu a “confissão informal” como vocabulário válido, refutando-o como sendo de “duvidosa constitucionalidade”. Problematizou o

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procedimento do flagrante, de colheita de depoimento, que não contou com a presença de um defensor. Também desconsiderou o vocabulário de “entrada franqueada”, e disse:

Em primeiro lugar, tem-se que a invasão da residência do averiguado torna nula toda a prova colhida. Nada obstante tratar- se de um crime permanente a posse de entorpecente ou mesmo de arma, não se mostra legítima a invasão do domicílio em casos como tais porque a interpretação que mais parece se adequar ao espírito da norma do art. 5º, XI, da Constituição Federal é aquela que indica apenas ser lícito adentrar-se à casa alheia quando esteja ocorrendo um flagrante de tal natureza que haja a mesma urgência em conter a conduta criminosa como nos casos das também excepcionais previsões de desastre ou prestação de socorro. Ou seja, em caso de estar ocorrendo agressões no interior do imóvel, ou mesmo no caso de estar sendo mantida uma vítima de sequestro em suas dependências. Não, de outro lado, no caso de haver suspeitas (ainda que fundadas) de que haja entorpecentes e arma no local. Ora, em tal situação, em nada restaria prejudicada a segurança pública se fosse resguardado o local pela polícia, se o caso, enquanto se pleiteasse a obtenção de um mandado judicial.257

O magistrado refuta o vocabulário “entrada franqueada” e considera tal procedimento “invasão da residência”, ou seja, acolhe outro vocabulário como válido. A ação é interpretada como ilegal. Descreve uma situação em que a abordagem policial poderia ter sido realizada sem que houvesse danos às garantias constitucionais. E, em sua decisão, coloca em questão a própria crença na narrativa policial como verdade:

A par disso, a admissão de uma acusação baseada exclusivamente em testemunhos policiais viola as garantias do contraditório e da ampla defesa, inerentes ao nosso Estado Democrático de Direito – a par de vir embasada em uma concepção fantasiosa, para dizer o mínimo, acerca da atividade policial em tempos de guerra às drogas. E isso, também, sequer focando na possibilidade de que haja certos incentivos, mesmo que inconscientes, para que a versão policial seja sempre muito “coerente”, bastando lembrar as cobranças por produtividade (leia-se, por prisões efetivadas, com, inclusive, a premiação respectiva ao policial).258

O juiz colocou em dúvida a narrativa policial, e refutou a prática judiciária de se basear “exclusivamente” em testemunhos policiais, agentes cuja atividade está voltada

257 Idem. Grifos nossos. 258 Idem. Grifos nossos.

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para “a guerra às drogas”. Insere em sua reflexão a possibilidade dos policiais realizarem as prisões por tráfico de drogas em razão de estímulos políticos e pressão social, algo desconsiderado pelos demais operadores. Em geral, juízes tendem a problematizar o interesse “pessoal” dos policiais em realizarem prisões de pessoas que não conhecem, sem considerar a existência de outros estímulos, como premiações por prisões realizada e pressão por produtividade, algo tratado no Capítulo 4.

As decisões deste juiz passaram a ser questionadas, sobretudo por promotores de justiça, que decidiram “representá-lo” junto à Corregedoria do Tribunal de Justiça, órgão correcional dos magistrados. A representação tinha como motivação central o fato do juiz “prender pouco e soltar muito”, sobretudo os casos de tráfico de drogas. Após tal ação, o juiz foi afastado do Fórum Criminal Central e deixou de ser designado para atuar nas varas criminais daquele Fórum, sendo colocado para atuar em uma vara da área cível.259

O caso deste juiz suscitou uma série de questionamentos, sobretudo com relação à independência dos juízes. Revelou também uma pressão no interior do campo jurídico para tornar as prisões a regra, e não a exceção. E colocou em evidência o campo de imunidade da narrativa policial.

Ao entrevistar esse juiz na presente pesquisa, perguntamos os motivos pelos quais ele não acatava as narrativas policiais como faziam os demais operadores. Ele respondeu:

No começo da minha carreira eu entendia a narrativa policial como algo central, porque você vai vendo jurisprudência no sentido de dizer que os policiais têm fé pública, que são funcionários públicos, e a própria doutrina valida muito isso [...]. Colocando na balança eu ia na corrente de acreditar na palavra do policial. Mas isso sempre me incomodou muito. Ainda mais quando a gente vai conhecendo a realidade, da lógica de guerra às drogas, é uma lógica muito polarizada. É natural que um dos lados, ao construir a sua versão da realidade faça uma narrativa que faça sentido, que dê legitimidade a sua ação. O policial é um agente da segurança pública, e existe uma lógica de guerra, ele vai apresentar uma narrativa voltada para garantir a prisão do acusado. Por isso eu passei a adotar uma jurisprudência, uma doutrina, que por mais minoritária que fosse, me subsidiava para decidir não apenas com base na palavra do policial, mas buscando outros elementos. Ou seja, a palavra do policial não é algo absoluto, é apenas um dos elementos que deve ser observado a partir de outras provas. Quando eu comecei a atuar contra a

259 "Juiz paulista vai ao Supremo pedindo para atuar em varas criminais", Consultor Jurídico - Conjur, 22

de fevereiro de 2015. http://www.conjur.com.br/2015-fev-22/juiz-paulista-supremo-pedindo-atuar-varas- criminais. Acessado em 9 de junho de 2015.

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