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ARGUMENTOS REPERTÓRIO DE CRENÇAS

“Os policiais chegaram agredindo”, “entraram xingando todo mundo”, “me derrubaram no chão e pisaram na minha cabeça”, “tentaram enfiar drogas na minha vagina” (Violência policial) “Falaram que se não arrumássemos o dinheiro, que iam nos prender”, “Chegaram perguntando se a gente tinha ‘ideia pra trocar’, mas nós não tinha dinheiro, daí levaram a gente” (Extorsão policial)

“Eles disseram que a gente ia ter que segurar esse B.O.”, “Eles viram que eu tinha passagem pela polícia e forjaram um tráfico”, “essa droga não é minha, só ví isso na delegacia” (Flagrante forjado)

“Você conhece o policial que te prendeu? “ “ Por que ele iria te bater? “

“Você tentou fugir? “

“Onde estariam as marcas das agressões” “Por que policiais teriam o interesse de fazer isso com você se eles não te conheciam? “

“Por qual motivo policiais fariam isto? “

“Você não estava com a droga? Mas de quem era? Os policiais saem por aí com drogas para

extorquirem as pessoas? O que eles ganham com isso? “

“Por qual motivo os policiais sairiam por aí prendendo pessoas que não conhecem? “

Crença de que o acusado vai mentir

Crença na conduta policial

“Os policiais são funcionários públicos no cumprimento do dever legal”

“Os policiais têm fé pública”

“Os policiais são agentes públicos no exercício de sua função”

“Os policiais atuam na defesa da sociedade”

Crença na função policial

QUADRO 3 – Regime de validação I

A violência policial, a extorsão e o flagrante forjado não fazem parte do vocabulário de motivos aceitos como descrição das abordagens policiais por juízes e promotores. Um dos principais argumentos, presentes em todos os casos, é o de que “os policiais são funcionários públicos no cumprimento do dever legal”, “são agentes públicos no exercício de sua função” e que “atuam na defesa da sociedade”. Há uma crença de que policiais não irão agir com arbitrariedade.

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Como descrito no Capítulo 4, a posse da droga é um dos elementos centrais para a definição do delito. A pouca ou elevada quantidade da substância pode gerar discussões quanto à sua finalidade. Por exemplo, se for considerado que a quantidade encontrada destinava-se para o uso próprio da pessoa, e não para a comercialização da substância, o caso pode ser desclassificado. No entanto, quantidades maiores maximizam as chances do caso ser enquadrado como tráfico. Quem vai dizer se a droga pertencia ou não à pessoa são os policiais que efetuaram a sua prisão. Eles podem dizer que a visualizaram vendendo, e isso será levado em consideração pelo promotor e juiz em suas manifestações. Em um dos casos analisados, o juiz descreve: “policiais viram que diversas pessoas, aparentemente usuárias de drogas, dirigiam-se até o averiguado e realizavam transação de troca”196. Isto indicaria que as drogas pertenciam à pessoa

acusada, e que ela as destinava à venda. A narrativa policial é interpretada por promotores e juízes como “indício” do tráfico.

Nas entrevistas, os promotores e juízes destacaram a dificuldade em definir os casos envolvendo drogas. De acordo com promotor 7, há uma série de dificuldades para a diferenciação e definição do crime, e que a quantidade não é fator determinante. E completa: “o que existe é uma carga de subjetividade grande na definição do crime, depende estritamente do olhar do policial, ele que é determinante para a definição do crime”. “Nós dependemos daquilo que a polícia informa, se eles dizem que a pessoa estava em atitude suspeita, em local conhecido como ponto de venda de drogas, a droga separada e tal, ele sabe quem é o “traficante”, ele tá na área todo dia, a gente tem que acreditar nele”, disse o promotor 7.

O promotor 3 também destaca a centralidade da narrativa policial para a comprovação dos casos de tráfico de drogas. Ressalta sobretudo o papel da Polícia Militar, que é quem realiza o maior número de flagrantes desse tipo de ocorrência:

90% dos casos são flagrantes elaborados pela Polícia Militar, então o que chega já foi produzido pela polícia. E o flagrante é mais fácil, a prova é mais fácil. Porque a materialidade do fato está dada com a comprovação da droga, que é pega com determinado averiguado. Isto já é o suficiente para a elaboração da denúncia. O problema é que no caso do tráfico há esta peculiaridade, você praticamente ouve os policiais, então vem a questão: você confia plenamente nos policiais? Você não confia

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nos policiais? Nos tribunais você encontra posições antagônicas, mas o que tem predominado é a acreditar na versão dos policiais, ainda mais tendo em vista a dificuldade de se ter testemunhas civis do caso, é muito difícil haver outras testemunhas além dos policiais (PROMOTOR 6).

Para o promotor, ou se “confia plenamente” na palavra dos policiais, ou não se confia, mas ressalta que a posição predominante é a de acreditar na versão dos policiais. Não se questiona se ela é coerente ou não, se os fatos descritos podem ser comprovados de alguma forma ou não. A acolhida da narrativa policial pelos promotores e juízes passa pela crença: ou se acredita ou não se acredita. A falta de outras testemunhas também reforça o argumento de que é necessário contar com os testemunhos policiais para se avaliar os casos. O que está presente na fala deste promotor, e que aparece em outras entrevistas, é a crença no saber policial197. Os argumentos apresentados por juízes e

promotores expressam seu reconhecimento no saber policial, suas técnicas, habilidades, conhecimento e estratégias para a realização dos flagrantes.

Como destacado no Capítulo 4, o saber policial aparece como relevante, sobretudo nos casos envolvendo drogas. O “tirocínio” policial para identificar situações e pessoas suspeitas, habilidade de perceber os sinais do comércio de drogas, as observações do trabalho diário, as técnicas e estratégias para entrar em residências, para conseguir as confissões, tudo isso aparece como argumento válido para recepcionar as narrativas policiais como verdadeiras.

Contudo, os defensores públicos entrevistados problematizam essa crença. Dizem que é a polícia quem vai distinguir e definir qual é o crime, mas ressalta que isto gera uma grande insegurança para o direito.

O que acontece às vezes, a polícia chega num local e acha droga. Daí ela vai buscar quem está perto pra assumir o B.O., mas ela vai pegar quem tem antecendente criminal, que às vezes nem é dono da droga. Então deve ter muita gente presa como traficante mas que não é (DEFENSOR 1).

Para o defensor 3, os juízes e promotores não questionam a definição dada pelo policial do flagrante: “em geral eles [promotores e juízes] não analisam se a pessoa é

197 Conforme descito no Capítulo 4, esse saber é constituído de um “modo de olhar” policial não é neutro,

nem tão pouco descontextualizado. O saber policial reproduz e reforça as desigualdades presentes na sociedade, fortemente marcada pela assimetria de poder e pelos tratamentos desiguais direcionados a certos segmentos sociais.

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usuária ou traficante, porque a palavra do policial é colocada como muito relevante”. Cria-se uma certa “imunidade” ao que é dito pelos policiais, tornando-se algo inquestionável.

Os defensores públicos entrevistados ressaltaram que muitos flagrantes poderiam ser questionados, mas que raramente isso acontece. De acordo com o defensor 6:

A prova hoje está toda na mão da polícia. No tráfico é difícil ter testemunha civil. A questão de se considerar a prova policial forte acaba resultando numa tolerância muito grande ao que vem da polícia. Já peguei caso de policial falar uma coisa completamente diferente do outro com relação à droga, e isso ser contornado com o argumento de que as contradições nos depoimentos policiais são irrelevantes porque eles acompanham muitas ocorrências de casos iguais. Então, o que a gente percebe é que existe uma tolerância muito grande com relação aos depoimentos dos policiais, mesmo quando eles se contradizem. E se há ilegalidades na ação, como o juiz vai ver isso dando tanto espaço pra polícia? É difícil, especialmente quando falamos de casos envolvendo drogas (DEFENSOR 6).

O defensor público questiona a validade atribuída à narrativa policial, recebida sem críticas quanto à coerência dos fatos descritos pelos agentes que efetuaram a prisão em flagrante. Ressalta que os juízes toleram contradições e que tal credibilidade pode levar o judiciário a aceitar possíveis situações de arbitrariedades e abusos por parte dos policiais.

O que acontece quando as narrativas policiais são contrariadas pela versão das pessoas presas? Como reagem os operadores do direito?

Nota-se que é comum as pessoas alegarem “flagrante forjado”, mas suas declarações não são consideradas verdadeiras, sobretudo pelos juízes e promotores. Em um dos casos analisados, o juiz disse: “As alegações da averiguada XX quanto ao fato de o flagrante ter sido forjado são unilaterais e desprovidas de provas, alegações que demandam dilação probatória e impossível de ser aferida nesta audiência, que é superficial”198. Os fatos registrados nos autos de prisão em flagrante foram narrados pelos

policiais que efetuaram a prisão. A versão da pessoa é recebida com desconfiança pelo juiz, que a considera “desprovida de prova”. A manifestação do juiz revela seu posicionamento em acreditar na narrativa policial e de considerá-la verdadeira, como se

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ela fosse a “prova” de que a acusada estava na posse da droga para o tráfico. Os juízes e promotores pressumem a veracidade da narrativa policial, que somente poderá ser colocada em questão quando houver discussão do “mérito” do crime:

Os depoimentos colhidos, auto de exibição e circunstâncias da prisão, conferem indícios suficientes de autoria e prova da materialidade delitiva. Eventual divergência ou veracidade dos depoimentos dos policiais militares é matéria de mérito a qual deverá ser objeto de apreciação no momento próprio.199

Neste caso, a seleção realizada pelo magistrado daquilo considerado relevante para converter a prisão da pessoa presa causa um paradoxo. Ele diz que há indícios suficientes de autoria e materialidade, cuja narrativa policial é o único lastro de incriminação, pois é o único ponto que associa a droga à pessoa, bem como a finalidade do tráfico. No entanto, diz que não é possível averiguar eventual “divergência ou veracidade dos depoimentos dos policiais militares”, porque isto é objeto de “apreciação de mérito”. Temos um paradoxo: para manter a pessoa presa, a narrativa é considerada verdadeira, ao mesmo tempo em que o próprio juiz diz que tal narrativa ainda precisa ser analisada em sua “veracidade”.

A narrativa policial da “droga dispensada” é outro vocabulário policial considerado nas manifestações de promotores e juízes.

Note-se que policiais militares, após denúncia anônima, avistaram o averiguado na via pública, que ao perceber sua aproximação dispensou uma sacola plástica, contendo 25 porções de cocaína, preparadas para o consumo individual. Diante dessas circunstâncias, infere-se, em princípio e sem adentrar no mérito, que não houve equívoco na prisão em flagrante, sendo esta foi legal, inexistindo qualquer motivo que justifique o relaxamento. Anote-se que as circunstâncias que cercaram a abordagem evidenciam, num primeiro momento, a finalidade da traficância200.

A finalidade da posse para o tráfico é fundamentada tão somente na narrativa policial, que segundo ele “evidencia a finalidade da traficância”. Se de fato a pessoa acusada dispensou ou não a sacola com drogas, isso não é possível saber. Vimos no Capítulo 4 que o policial militar entrevistado (PM 6) disse que muitas vezes afirmava que

199 Processo nº 0046357-63.2015.8.26.0050.

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a pessoa havia dispensado a droga para evitar que sua a propriedade fosse questionada pelo juiz.

Os defensores públicos e advogados tentam duas estratégias: a primeira é afirmar que o pessoa acusada não é “traficante”, mas sim “usuária”; a segunda é desconstruir a narrativa policial e colocar em dúvida a propriedade da droga, mas dificilmente conseguem convercer o juiz, sobretudo quando a quantidade de drogas encontrada é considerada elevada. Um dos argumentos utilizados especialmente por defensores públicos é o de que a palavra dos policiais deveria ser recebida com reservas, pois eles teriam interesse em “legitimar suas prisões”. A depender do juiz, tal argumento pode ou não ser acatado. Houve poucos casos em que alguns juízes consideravam tal argumento válido e decidiam soltar a pessoa por considerarem a narrativa policial duvidosa. Na maioria deles, os juízes tendiam a dizer que os policiais eram “funcionários públicos no execício de suas funções, que não apresentam nenhum interesse em prender inocentes”.

O vocabulário policial sobre a posse de drogas é considerado pertinente e aceita como por promotores e juízes. Tem-se, assim, o seguinte panorâma:

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