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3 MEIO E CORPO EM AMBIENTES FRONTEIRIÇOS

3.2 Do corpo

3.2.1 Criação de um avatar

Podemos encaminhar esta reflexão a partir da tela do jogo que possibilita a criação do avatar, como nos mostra a figura 4:

Fig. 4: Tela de criação de personagem.

Iniciando a leitura da esquerda para direita, de cima para baixo, veremos que é possível escolher o sexo do avatar; se masculino ou feminino. Esta escolha não implica em alterações no que corresponde aos atributos do personagem, as modificações são meramente estéticas – podendo refletir, posteriormente, nas dinâmicas sociais estabelecidas in game. Abaixo deste box, ainda na figura 4, vemos duas colunas: uma azul e outra vermelha, estas são as raças. A Aliança é composta por Humanos, Anões, Elfos Noturnos, Gnomos, Draeneis, Worgens e Pandarens – inseridos na derradeira atualização do jogo, a expansão Mists of Pandaria. A Horda, por sua vez, está representada pelos Orcs, Mortos-vivos, Taurens, Trolls, Elfos Sangrentos, Goblins e também Pandarens. A dualidade Aliança vs. Horda está ancorada na narrativa do jogo e as raças dispostas em cada uma destas facções estão em guerra, sustentando a ludicidade e o caráter antagônico do mundo de Warcraft.

É válido discorrer um pouco acerca das cores de cada uma das facções, considerando que as mesmas não foram escolhidas ao acaso, mas, indicam uma espécie de ethos de cada um dos pólos rivais. A cor azul, respectiva a Aliança, alude a estabilidade, confiança, sabedoria, inteligência; a cor vermelha, indica energia, guerra, força e poder – algo muito mais afim com os ideais e modos de conduta da Horda. Orcs, Trolls e Mortos-vivos são seres monstruosos e estão ligados a esta última facção; Gnomos, Humanos, Draeneis são raças pertencentes a Aliança. Se considerarmos as feições destas raças e relacionarmos ao significado de suas respectivas cores, veremos que há congruências.

Prosseguindo, à direita do box das facções, há uma caixa de informações contendo a descrição específica da raça selecionada. No caso da imagem em observação, o personagem em construção é um Gnomo. Assim, através deste box, é possível saber as habilidades e vantagens inerentes a raça em questão. Estes pontos estão na cor amarela e organizados em tópicos. Logo abaixo, há um breve relato do contexto da raça escolhida na narrativa do jogo. Este resumo apresenta a história e os motivos pelos quais aquela raça encontra-se em guerra. É algo curto que pode servir como introdução ao plot que o jogador dará continuidade.

No centro da imagem podemos ver um preview do personagem em construção. O box à direita contém informações referentes à classe escolhida. Similarmente às referências de raça, esta caixa apresenta vantagens e potencialidades da classe selecionada, além de um breve relato acerca da origem da mesma. Os atributos de classe, conjugados à raça, podem gerar poderosos personagens. Por exemplo, se a raça gnomo possui bônus em utilização de adagas e espadas curtas, pode ser um indicativo à escolha de uma classe como ladino, que utiliza armas desta natureza. Ainda, se esta raça possui mais pontos de mana – responsável, no jogo, pelo lançamento de magias –, talvez seja mais indicado selecionar alguma classe que utilize estes atributos em seu curso de ações, a exemplo dos magos, bruxos ou sacerdotes.

Ao todo, são onze as possíveis classes de personagem em World of Warcraft. São elas: guerreiro, paladino, caçador, ladino, sacerdote, xamã, mago, bruxo, monge, druida e cavaleiro da morte. É possível selecionar somente uma classe para cada personagem. Nota-se desde já que a criação de um avatar não ocorre somente por afinidade estética, mas há todo um jogo de atributos quantificáveis, diretamente responsáveis pelo êxito deste personagem ao curso de sua “vida”. As combinações mais poderosas de raça e classe estarão propensas ao êxito e cabe ao jogador conhecer o sistema de regras e a função que assume na dinâmica de jogo47.

Como forma de ter uma noção da “demografia” de World of Warcraft, se faz necessário apresentar dados que fornecem uma estatística populacional dos avatares existentes nos servidores da Blizzard. A coleta destes dados é feita pelo site Realm

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Basicamente, são três papeis sociais em WoW: DPS (damage per second), incumbidos de infligir dano nos inimigos; curadores (healers), responsáveis pela cura dos outros jogadores, quando em grupo; e tanque (tank), que funcionam como escudo dos grupos, recebendo e suportando os danos dos inimigos para que os demais jogadores inflinjam o maior dano possível. A discussão que concerne estes papéis está reservada ao capítulo seguinte.

Pop48 e os números apresentados são renovados a cada duas semanas. Segundo a observação feita em 20/12/2013, existem atualmente quase quinze milhões de avatares em WoW (14837417 personagens, exatamente). Destes, cerca de 53% (7.886.962 avatares) são da Aliança, o restante, 46,5% (6.901.975 avatares), pertencem à Horda. 62% dos avatares são do sexo masculino e 38% são personagens femininos. Dentre as raças mais escolhidas, destacam-se os humanos, da Aliança (16,4%), e, na Horda, os elfos sangrentos (13,5%). No tocante às classes, os caçadores possuem leve vantagem sobre as demais (12%), porém há um visível equilíbrio entre estas classes escolhidas pelos jogadores: todas possuem cerca de 9% de avatares.

Dada a vasta quantidade de personagens, e considerando a quantidade de assinantes deste serviço (quase oito milhões, conforme contagem da Blizzard), podemos conjecturar que é comum aos jogadores de WoW possuírem mais de um char – character, personagem. No entanto, costumeiramente, há aquele avatar que recebe mais investimentos por parte do jogador: o principal, o main. Os demais servem a finalidades diversas e são chamados de alts, personagens alternativos. Geralmente, o jogador tem ciência das potencialidades de seus avatares. Tal conhecimento se deve à própria natureza quantificada dos atributos inerentes a um personagem.

Acerca disso, são cinco, os principais atributos – também chamados de stats – de um avatar: força, agilidade, vigor, intelecto e espírito. O sistema de distribuição de pontos em cada um destes atributos é muito devedor dos RPGs de tabuleiro. Recomenda-se, neste sentido, que o jogador tenha ciência das potencialidades e fragilidades inerentes à combinação que elege como seu representante, de modo a explorar os benefícios de sua raça/classe e dirimir as deficiências das mesmas.

Após este primeiro passo, o jogador é levado à tela de personalização do avatar. A figura 5 ilustra tal processo:

Fig. 5: Tela de personalização do avatar.

Neste momento da criação, é possível detalhar esteticamente o personagem. A escolha da cor da pele, da feição, do estilo e cor de cabelo e dos pelos faciais são meramente ilustrativas, sem afetações no atributos. Sherry Turkle, em seu Life on the Screen, de 1995, afirma que “os games são laboratórios para a construção identitária49” (p. 184). Neste sentido, pensamos que esta etapa reflete uma característica notável dos tempos hodiernos, a saber, a gestão de múltiplas “vidas” em suportes digitais. Segundo Turkle (1995), “mais pessoas experimentam a identidade como um conjunto de papeis que podem ser misturados e combinados50” (p. 180). Parece óbvio e, de alguma maneira, repetitivo. Goffman (2009) destina a quase totalidade de seu A representação do eu na vida cotidiana ao pensamento acerca do indivíduo enquanto ator social, que se expressa muito em função das impressões que obtem do “público” – interatores – nas situações sociais que participa. Podemos, nesta linha, afirmar que assumimos distintos personagens quando a situação assim requer. Permanecemos, ainda assim, o mesmo ente.

Na mesma linha, Ducheneaut et al. (2009) apresentam um estudo acerca da personalização de avatares em World of Warcraft e em outros dois “mundos virtuais”. Os resultados da pesquisa reforçam o pensamento de Turkle, acima referido. A partir da aplicação de questionários, os pesquisadores perceberam fortes indícios que

49 “The games are laboratories for the construction of identity”. Tradução nossa. 50

“Many more people experience identity as a set of roles that can be mixed and matched”. Tradução nossa.

demonstram a influência do gênero, faixa etária e constituição física dos jogadores no processo de autoidentificação com seus avatares. Resumidamente, notaram que jogadores mais novos tendem a criar avatares de similar faixa etária, enquanto, por outro lado, usuários mais velhos estão mais propensos a criar avatares que se distanciam de suas idades reais (DUCHENEAUT et al., 2009). Além disso, outra variável influente no processo de autoidentificação com o avatar é o peso do jogador. Os pesquisadores observaram que jogadores em sobrepeso estão mais propensos a criar uma versão idealizada de si. Em suma, “os resultados parecem indicar que quanto mais o avatar permite a projeção de uma versão „melhorada‟ de si, mais importante este avatar se torna ao usuário51” (DUCHENEAUT et al., 2009, p. 6).

Enfim, a “montagem” de diversos presets feita pelo usuário resultará em sua ulterior representação no ambiente simulado. Ao concluir a etapa de criação de personagem, o jogador necessita clicar no botão “Entrar no Mundo” para que a sequência de aventuras tenha início. É neste momento que a abertura do “círculo mágico” (HUIZINGA, 2001; SALEN; ZIMMERMAN, 2003) se torna, de fato, mais evidente. O player é inicialmente levado ao cumprimento de algumas quests iniciais, nas redondezas do local primeiro do avatar. Acerca disto, é válido evocar a síntese feita por Jane McGonigal (2011, p. 53):

O trabalho primário em World of Warcraft é o auto-aperfeiçoamento [...]. Você tem um avatar e sua tarefa é melhorar aquele avatar, tornando-o mais forte e rico em diversas maneiras possíveis: mais experiência, mais habilidades, armaduras mais fortes, mais talento e maior reputação52.

Enfim, a sequência inicial de quests, acreditamos, visam introduzir o jogador aos comandos do game, apresentando-lhe algumas dicas para os primeiros passos de sua jornada. Pensamos que a diminuição da distância que separa o jogador de seu avatar tem início na fase inicial do jogo, através do cumprimento de missões simples, fáceis e de rápida recompensa. Veremos, a seguir, que o domínio técnico é um importante elemento influente à sensação de “imersão”. Neste sentido, faz-se agora necessário investir esforços na tentativa de compreender mais a fundo os conceitos de imersão e experiência em “mundos virtuais”, retomando a discussão do tópico 3.1.2.

51

“These results seem to indicate that the more an avatar allows a user to project an „enhanced‟ version of themselves, the more important the avatar becomes to the user”. Tradução nossa.

52 “Your primary job in World of Warcraft is self-improvement […]. You have an avatar, and your job is to make that avatar better, stronger, and richer in as many different ways as possible: more experience, more abilities, stronger armor, more skills, more talent, and a bigger reputation”. Tradução nossa.