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2 PATATIVA DO ASSARÉ: VÔO E (EN)CANTO

2.2 Criação poética: o canto do pássaro

Segundo afirmou em várias ocasiões, o processo de criação dele era mnemônico e nunca interferiu no trabalho agrícola. Ele criava as estrofes, uma a uma, deixava-as retidas na memória e, só depois de pronto o poema, escrevia-o ou ditava-o para que outra pessoa, cujo trabalho era atentamente vigiado pelo poeta, o fixasse no papel.

Muitagentenumsabe como é que eu componho os meus poemas. Não é escrevendo! É [...] faço a primeira estrofe, deixo retida na memória. A segunda, do mesmo jeito; a terceira e assim por diante. Pode ser um poema de trinta estrofes! Quando eu termino, eu estou com todas elas retidas na memória, aí é que passo para o papel. Sempre fiz verso assim! (CARVALHO, 2002, p. 17-18).

No texto “Patativa e a comunidade poética da Serra de Santana”, incluído no livro Cem Patativa (2009), há o testemunho do agricultor e poeta João Lino (1935) que afirma se lembrar dele trabalhando na roça e “resmungando”, concentrado em seus versos.

O organizador da coletânea Balceiro, Geraldo Alencar, sobrinho de Patativa, considerado por ele como seu principal herdeiro (CARVALHO, 2009), parceiro de pelejas poéticas que resultaram no livro Ao pé da mesa (2001) e autor de Suspiros do sertão (1982), Clarão da lua cheia (1985), Reflexo (s.d), Atrativos do amor e da paz (2001) e O homem provisório14 nos declarou que o que mais admirava em Patativa não era tanto a poesia dele, “que era grande”, mas a memória15. Segundo Geraldo, “só quem viu” pode fazer ideia da

capacidade de memorização que ele tinha. O fato de que o Inspiração nordestina (1956) estava todo na mente do poeta antes de ser datilografado por Moacir Mota ajuda a dar essa dimensão para quem não teve o privilégio de “ver”. Sobre o tema, comentou:

14 O texto em versos de O homem provisório foi encomendado ao poeta Geraldo Alencar pelo ator e diretor Cacá Carvalho para o espetáculo teatral homônimo, livremente inspirado no livro Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa (Apêndice A).

Olha, dos seis livros que eu publiquei, se eu começar a recitar agora, Ah! Entra na noite, viu? Agora, eu já estou ficando diferente com aquilo que eu faço agora. Com poucos dias, eu quero esquecer, porque a idade permite, não é? Mas tudo que está para trás, não, não fugiu não. Eu tenho na minha mente (ASSARÉ, 2001, p. 40). Gostava de destacar que suas poesias eram inventadas, isto é, ele não apenas contava em versos acontecimentos reais ou histórias de domínio público como costumam fazer cordelistas e cantadores. Nesse sentido, fazia uma distinção entre “versejador” e “poeta”:

PA – Agora, versejar, Gilmar, é até fácil. Olhe, um carro vira ali e mata dez, doze, quinze pessoas. Viu? O poeta versejador, ele conta tudo aquilo bem direito, não falta um nada, viu? [...] Mas é porque ele viu, num é? É o que eu digo: a diferença do poeta para o versejador é porque o Patativa faz é criar na mente [...] (CARVALHO, 2002, p. 50).

Quando começou a criar versos, motivado pelos cordéis que ouvia, fazia a métrica “de ouvido”. Depois, estudando, aprimorou sua técnica:

[...] fazia métrica de ouvido. Só de ouvido, mas era bonita. Ah! Era! Era bonito mesmo. A base era a rima e a medida. A medida do verso, com a rima, tudo direitinho. Aí, quando eu peguei o livro de versificação de Olavo Bilac e Guimarães Passos, aí eu melhorei muito mais. Eu já tinha de ouvido, porque já nasci com o dom, né?16.

Os poemas dele são compostos preferencialmente em redondilhas e decassílabos, utilizando também versos de catorze sílabas pelo encadeamento de duas redondilhas maiores numa mesma linha ou um verso em redondilha maior solto completando um pensamento (TINHORÃO, 1978). Podemos encontrar na produção poética patativana, entre outras escolhas formais, alguns belos sonetos (Anexo A).

Parte das poesias é escrita em “linguagem matuta” e parte em linguagem culta. Arraes de Alencar na apresentação do livro Inspiração nordestina (1956) assinala que as primeiras constituem uma rica fonte para o estudo do idioma, enquanto as últimas revelam o autodidatismo do poeta.

Alencar (2009) demonstra que a obra de Patativa é mesmo um rico subsídio para o estudo da história e da evolução da língua, tendo em vista que ela é um registro da linguagem popular nordestina. Em razão do isolamento geográfico e cultural das comunidades, essa linguagem guarda resíduos do Português quinhentista, aos quais se misturam as contribuições africanas e indígenas. Além do léxico, prenhe de expressões arcaicas e da criatividade popular, a autora chama a atenção também para diversos processos fonéticos (aféreses, síncopes,

apócopes, etc.) que denunciam a oralidade seminal da poesia patativana, criada para ser declamada e cuja transcrição é uma tentativa de apreender a pronúncia do poeta.

“O Inferno, o Purgatório e o Paraíso” (Anexo A), que tematiza as classes sociais, é um dos exemplos mais famosos da utilização do registro culto da língua. A medida é a mesma de Os Lusíadas de Camões, que ele afirmou em várias ocasiões ter lido todo.

Pela estrada da vida nós seguimos, Cada qual procurando melhorar, Tudo aquilo, que vemos e que ouvimos, Desejamos, na mente, interpretar, Pois nós todos na terra possuímos O sagrado direito de pensar, Neste mundo de Deus, olho e diviso

O Purgatório, o Inferno e o Paraíso [...] (ASSARÉ, 2008, p. 43).

Ao discorrer sobre o romance oral, Batista (2012) observa que existem “níveis de linguagem” que vão desde o vulgar, até uma variedade erudita ou semierudita, dependendo da escolaridade do informante e afirma que a cultura do povo não perde a sua identidade/ especificidade por ser registrada segundo a norma culta.

Indagado sobre o assunto, o poeta afirma que não é o grau de dificuldade que determina a escolha de um registro ou do outro, mas é uma questão estética: “[...] a questão é o pensamento, é a criatividade, viu? Não é a facilidade. Pra mim, tanto faz” (CARVALHO, 2002, p. 46). Para ele, nos poemas caboclos, quem fala em primeira pessoa é sempre um matuto. É um analfabeto que manifesta, na própria linguagem, sua visão de mundo.

Embora a preocupação central seja retratar a realidade do sertão, podemos encontrar marcasdo Romantismo literário em algumas poesias: a valorização da natureza, a religiosidade cristã, o apego às raízes populares, a valorização do passado, a preocupação social e até a idealização da amada, como constatamos nos poemas dedicados à esposa, a exemplo de “Quem é esta mulher?” (Anexo A) e da carta escrita para ela em 1974, quando estava hospitalizado. A explicação está, certamente, nas leituras que fez. Como atesta Carvalho (2009, p. 39), ele foi “leitor voraz” dos poetas românticos brasileiros, sobretudo Castro Alves, o preferido. Mas conhecia também poetas brasileiros de outros períodos, Camões e alguns outros de Portugal. A poesia matuta teria sido influenciada por Catulo da Paixão Cearense e Zé da Luz. Segundo declaração de familiares, o poeta pernambucano Dedé Monteiro era muito apreciado por Patativa (Apêndice A).

No campo da prosa, além das escrituras sagradas – “as pregações de Jesus” (CARVALHO, 2002), temos conhecimento de que leu Graciliano Ramos e Machado de Assis

(ASSARÉ, 2001). Além dos de Felisberto de Carvalho, com os quais foi alfabetizado, costumava se referir a dois outros livros escolares que ganhou e lhe foram muito úteis: o já citado “Tratado de versificação” de Olavo Bilac e Guimaraens Passos e outro intitulado “Português Prático”.

As influências da literatura canônica não retiram da poética de Patativa – ao contrário, reforçam – a essência oral. Composta mentalmente, prescindindo de qualquer suporte material, para depois ser declamada para uma plateia, a poesia dele é musicalidade pura, puro ritmo: cantoria sem viola. O assunto e o ritmo formam uma “unidade inextricável” em Patativa do Assaré, a ponto de ele utilizar uma palavra pela outra em “O padre Henrique e o dragão da maldade”, como observaram Lemaire (2009) e Mendes (2009): “Meu caro leitor desculpe/esta falta que cometo,/me desviando do assunto/da história que lhe remeto; na estrofe seguinte, temos: Se me desviei do ritmo,/não queira se aborrecer,/é porque as outras coisas/eu queria lhe dizer [...]”.

Em uma análise de cordéis de Patativa à luz dos Estudos Orais, Mendes (2009) afirma que o ritmo é a condição mais importante para a realização da poesia oral ou em transição para a escrita. Conseguido graças à ordenação dos elementos linguísticos dentro do verso metrificado, o ritmo organiza esteticamente o poema e determina o comportamento do declamador (gestos, expressões faciais). A poesia que não é declamada acaba perdendo muitos elementos ligados ao ato teatral, à performance do poeta, mas permanecem no texto traços da sua construção rítmica: as fórmulas, grupos de palavras (compreendidas como “sons”) que se repetem no decorrer dos poemas. O uso das fórmulas aliado a uma organização narrativa do tema favorece a memorização.

Lemaire (2009, p. 13) reconhece na entrevista que gerou o livro Patativa poeta pássaro do Assaré “uma autêntica filosofia da vida e da poesia de Patativa”. Naquela oportunidade, o entrevistado se refere à poesia como um “dom divino”, deixa claro que ela se baseia em conhecimentos adquiridos pela observação da realidade e pela experiência: o conteúdo da poesia é sempre a “vida real” (expressão utilizada reiteradas vezes por ele), a vida do povo do Nordeste. A missão do poeta é dizer a verdade sobre a vida de sua comunidade, uma verdade social, não individual. No desejo de ser o porta-voz de todos, o “poeta social” canta verdades que sejam reconhecidas, admitidas por toda a comunidade. Para Patativa, de acordo com essa pesquisadora, “verdade é o que o público do poeta social, a comunidade do mundo nordestino, reconhece, admite e acredita; é tudo quanto Patativa é capaz de transmitir sem desagradar a esse público” (p. 20).

mundo do imaginário, o oposto da realidade – surgiu no século XVIII. Entretanto, inicialmente esse termo possuía uma acepção diferente e muito concreta: significava modelar a argila para criar uma forma. A partir do conceito de poesia e da missão do poeta expostos por Patativa na entrevista, ela deduz que aquilo que ele escreve é ficção no sentido inicial do termo: ele cria, inventa uma história, mas sempre com o intuito de falar o que ele chama de verdade sobre a realidade em que estava inserido. Admitindo que a filosofia que perpassa a poesia de Patativa, segundo a qual a missão do poeta é dizer a verdade sobre a vida de sua comunidade, reflete-se nos demais aspectos da vida e da produção dele, propusemo-nos analisar como ele representa a realidade caririense – sua terra, sua vida, sua gente – nas cartas que escrevia. Apresentamos, a seguir, algumas considerações sobre o gênero epistolar e uma descrição do corpus.