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a criação poética como tautologia em António Ramos Rosa

Sofia A. Carvalho1 Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras

O poema só pode ser entendido a partir de si mesmo, porque em si mesmo se origina e o seu fim é ele próprio.

António Ramos Rosa

O carácter heterodoxo e revolucionário da criação poética em António Ramos Rosa assume preponderância hermenêu-tica na prosa ensaíshermenêu-tica do Autor. Assim sendo, esse conjunto ensaístico, ainda que temporalmente amplo e afastado, con-centra aquilo que considero ser em António Ramos Rosa a li-nha crucial do que se possa entender por criação e fenómeno poéticos.

Esta proposta visa problematizar, num primeiro momen-to, o modo de acontecer da criação poética a partir do prin-cípio da tautologia, conforme referenciado na epígrafe. Num

1A autora deste texto é financiada pela Fundação para a Ciência e Tec-nologia, com uma Bolsa de Doutoramento com a referência SFRH/BD/120 804/2016.

segundo momento, pretende-se analisar as linhas de força da sua “tessitura verbal”, tópico que ganhará corpo crítico no confronto entre as figuras do autor, do leitor e do crítico. Por fim, apontarei algumas linhas acerca da poética da “infinita potencialidade da linguagem”2, em conformidade com o de-fendido por Ramos Rosa.

Neste sentido, convém fazer um ponto prévio e clarificar o que se entende por princípio tautológico no contexto es-pecífico e singular da criação poética. A origem etimológica do termo concede uma abordagem que interessa ao desen-volvimento desta reflexão, a saber: do grego tautó, que sig-nifica “o mesmo”, elogos, que significa, entre outras coisas,

“verbo, palavra”, entende-se por tautologia dizer o mesmo em termos diferentes. Ora, António Ramos Rosa aponta, jus-tamente, para a relevância irredutível do sentido tautológico do poema, apontando incisas críticas ao domínio lógico e ra-cional do discurso, embora sem deixar de reconhecer as suas virtudes.

Torna-se, portanto, curioso trabalhar um argumento que visa, neste Autor específico, examinar a criação poética, que na sua estrutura vital se demarca dos princípios lógicos e pro-posicionais do raciocínio, a partir daquilo que é considerado como uma falácia da linguagem. É isto mesmo aquilo que se pretende e o que parece sugerir António Ramos Rosa ao afir-mar emPoesia, Liberdade Livre:

Nenhuma lógica explicará a identidade dos contrários da imagem poética e a independência de cada termo.

Nenhuma lógica poderá explicar a originalidade do es-paço poético, a sua autonomia e a sua verdade. Só a sensibilidade de cada um de nós, leitores, poderá ser a pedra de toque para aferir a sua autenticidade. [. . . ]

2António Ramos ROSA,Poesia, Liberdade Livre[PLL] [1962], Lisboa, Ulmeiro, 1986, p. 93.

Nesse espaço todos os encontros são possíveis e todo o possível se torna real.3

O poema impõe-se por si mesmo, tornando-se o lugar da

“combustão verbal”4, espécie de energia orgânica que se de-sencadeia na linguagem antes de qualquer conceptualização.

Portanto, a suposta redundância tautológica, referida por Pe-dro Mexia, não implica um fechamento da “poesia sobre a poesia, de poema sobre o poema”5, mas um voltar ou contor-cer do poema para si mesmo. A esta contorção está inerente a força concreta, imanente e orgânica do instante lúcido e ri-goroso da criação poética: e foi isto bem captado por Pedro Mexia emCiclo do Cavaloao considerar que a palavra “o ca-valo é tudo. E é tudo, precisamente, porque é o poema, o espaço onde tudo existe ou reverbera”6.

Neste domínio extraordinário da gravidade de cada pala-vra, o poeta cria-se e inventa-se na e pela tessitura verbal do poema, acontecimento cerzido no paradoxo de uma negação

— “A poesia surge assim como negação de um mundo para se propor a si mesma na violência da sua liberdade”7 — que é

3Ibid., p. 24.

4Ibid., p. 22.

5Pedro MEXIA, “O cavalo é sem porquê”, inPoesia do Século XX, com António Ramos Rosa ao Fundo, org. Ana Paula Coutinho, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2005, p. 55.

6Ibid., p. 57.

7 António Ramos ROSA,PLL,op. cit., p. 28. É este mesmo tópico abordado por Ramos Rosa que, segundo Gastão Cruz, é quem o funda e o teoriza na própria poesia (cf. Gastão CRUZ, “António Ramos Rosa: a legitimidade das palavras”, inPoesia do Século XX, com António Ramos Rosa ao Fundo,op. cit., p. 26). A este propósito, veja-se as análises de Ramos Rosa à poesia de Pedro Tamen, afirmando que aí se encontra “um desajustamento nodal que, repercutindo na linguagem, a violenta e cria assim um movimento de recusa, de não-aceitação, de revolta” (PLL,op.

cit., p. 125), bem como à poesia órfica de Herberto Helder que, à maneira de um Blake ou de um Rilke, parte do “ponto de extrema violência em que se anulam os contrários e onde a eternidade se revela no instante. Toda a

acto de afirmação plena de um mundo que eclode no confi-namento aberto e nu da palavra.

Eis o nervo do argumento — tautologia e criação poética são domínios intimamente compatíveis e que se contaminam não apenas na medida em que o poema se refere a si mesmo, mas também enquanto experiência única em que a palavra se manifesta e se ergue contra o nada: “Neste sentido não existe poesia pura: o acto de criação é simultaneamente um acto de encarnação [. . . ]”8.

Segundo Ramos Rosa, o poema não prescinde da lingua-gem nem da “revelação da condição humana fundamental”9. Revelação essa que se condensa na contradição máxima e mais viva de seroutro, espécie de eco heteronímico ou pesso-ano. É justamente deste excesso ou, se se quiser, desta força de ambiguidade e indeterminação do movimento da cons-ciência radicado na carência ou vazio fundamentais, que o poema e o poeta se revelam na sua densidade poética, esse

“‘ponto supremo”’10que se furta à razão lógica e ao universo do discurso conceptual, nestes termos:

O verdadeiro artista não destrói o uso do pensamento racional, mas transforma-o totalmente através do sen-tido poético. [. . . ] O sensen-tido poético está substancial-mente ligado à forma imanente na organização das pa-lavras, na estrutura poética como um todo.11

Como visto, esta transformação não invalida a construção de uma estrutura coerente, ainda que complexa, visto o poe-ma ser encarado por Ramos Rosa como upoe-ma “entidade

religi-experiência particular do poeta se transcende num acto absoluto porque o poema se tornou no lugar onde a existência e o espírito, a matéria e a alma se encontram e se fundem.” (Ibid., p. 136).

8Ibid., p. 30.

9Ibid., p. 32.

10Ibid., p. 36.

11Ibid., p. 37.

osa” ou, melhor, a “unidade de todas as contradições”12. To-davia, o movimento tautológico do poema não permite que a contradição seja superada, restando a unidade original co-mo um telosvirtual ou potencial. O sentido poético e a es-trutura matérica do poema granjeiam, segundo o Autor, “um grau de pureza e densidade específicas” fazendo com que “a uma poética do unívoco, que corresponde a um mundo es-tático”, suceda “uma poética de polivalência e ambiguidade, onde tudo é movimento”13.

Nesta medida o princípio tautológico conquista um inu-sitado e surpreendente sentido: o poema contém uma coe-rência interna, uma individualidade, uma autonomia, que é construída em e por si mesma no momento agónico da uni-dade superabundante da palavra. Ao remeter para si mesmo, o poema cria literalmente um mundo e é, por isso, que “Um poema é, assim, um princípio de vida”14. Esta coerência in-terna revê-se na “estrutura complexa e una” que é a sua den-sidade, densidade que não surge como sinonímia de obscu-ridade, antes como “prova física da existência poemática”15. Por outras palavras, o poema é matéria, embora o carácter tautológico da criação poética o constitua como criação au-tónoma e absoluta. O poema deixa de apontar para uma ex-terioridade e a única realidade é a própria linguagem, senão leia-se: “O verbo é o senhor absoluto: as forças condutoras do poema são impulsões da linguagem; as palavras já não obe-decem às relações gramaticais, mas condensam em si as múl-tiplas virtualidades significativas.”16

Consequentemente, a densidade matérica do poema não admite, por um lado, nenhum tipo de aprisionamento

ver-12Ibid., p. 97.

13Ibid., p. 38.

14Ibid.

15Ibid., p. 40.

16Ibid., p. 45.

bal, incitando antes a uma “irradiação” ou “magnetismo” se-mântico, como defendido por Fernando Pinto do Amaral17e, por outro, recusa uma leitura prévia e lógica do poema, como firma o Autor:

A obscuridade não é resolúvel logicamente, porque en-tão estaria lá como um truque e o poema cifrar-se-ia num enigma. A obscuridade permanece, a atestar uma densidade real, uma presença ou até um obstáculo.18

Pois bem: o leitor e o crítico confrontam-se com um novo desafio e um novo conceito estético, cujas exigências e atri-butos diferem de um para o outro. Ao primeiro, cabe uma colaboração profunda com o criador; ao segundo, concerne interrogar — interrogar o texto, a própria crítica, o crítico e o processo crítico — e não ceder à tentação de uma aborda-gem que se reduza à ordenação da obscuridade de qualquer texto poético19, donde o surgimento de dois tipos de crítica:

a científica e a criadora, sendo a primeira perigosamente re-dutora.

De facto, também no domínio da recepção da obra o prin-cípio tautológico apresenta predomínio, porquanto “Um poe-ma só pode ter realmente upoe-ma significação única: a de todo ele, em si e por si, em cada um dos seus vocábulos e fone-mas”20. No fundo, a força do princípio tautológico, tal como defendido por António M. Feijó, nasce do tópico da polé-mica. Nesta linha hermenêutica, a tautologia adquire intensi-dade crítica quando se percebe qual o veio controverso que a

17Fernando Pinto do AMARAL, “Melancolia e plenitude na poesia de António Ramos Rosa”, inPoesia do Século XX, com António Ramos Rosa ao Fundo,op. cit., p. 48.

18António Ramos ROSA,PLL,op. cit., p. 93.

19Id.,A Poesia Moderna e a Interrogação do Real I [PMIR I], Lisboa, Arcádia, 1979, p. 40.

20Id.,PLL,op. cit., p. 48.

move. Em Ramos Rosa, um desses veios é, sem dúvida, a ex-periência de o verbo prescindir da falácia patética da biogra-fia ou da continuidade psicológica entre o poeta e o poema, marca de afastamento da influência do neo-realismo.

Esta ruptura epistémica e estética eleva a personalidade poética à vitalidade coerente e unitiva de cada poema, senão veja-se: “O poema não nasce, por conseguinte, de um de-sejo íntimo de comunicação, mas da ‘pressão do poema’ no sentido da sua organização e constituição.”21 Esta “pressão do poema” funda uma nova realidade, expandindo e contra-riando o mundo existente. O poema torna-se realidade am-pliada através da força inaugural que lhe é inerente, assim:

“através do poema, o poeta encontra o modo pessoal e livre de se integrar num novo real — transformação do real exte-rior em real inteexte-rior”22. Ao resgatar essa força ou “pressão do poema”, que consiste no movimento consciente do poeta exercido sobre o próprio poema e a sua matéria, a linguagem irrompe com um poder selectivo e orientador, senão leia-se:

[a linguagem] é uma capacidade infinita de ressonância e de significação incessante, uma possibilidade cons-tante e renovada de restituição imaginária de um sen-tido e de uma precipitação no mistério vivo que o poeta não pode deixar de tentar e de experimentar não como realidade ilusória mas como verdade da ilusão, impos-sibilidade assumida num acto total onde ressoa todo o mistério inexpresso do ser.23

Assim se entende que a encarnação que o poema provoca parte de uma profunda adesão do homem às coisas revela-das24 e não de um mero mecanismo ou automatismo verbal, o outro veio polémico e fecundo do princípio da tautologia,

21Ibid., pp. 52-53.

22Ibid., p. 55.

23Ibid., p. 189.

24Cf.id.,PMIR I,op. cit., p. 16.

desta feita dirigida a alguns processos criativos caros ao surre-alismo e a esses exemplares “eufónicos, erectos da persona-lidade e da expressão”25, como fixa uma passagem de Antó-nio Ramos Rosa relembrada por Ana Paula Coutinho Mendes.

Com efeito, a única exigência a que o poema é permeável, e sob a qual se constitui, é a “própria complexidade do real que não comporta essa traição esquemática e mortal”26.

Torna-se, por conseguinte, incontestável que aquilo que um poema “diz é o que o texto produz materialmente”27. Esta posição crítica coloca o leitor numa linha hermenêutica privi-legiada face ao crítico, visto este último ter de se reposicionar e regressar ao contacto de uma primeira leitura inicial. Toda-via, o papel do crítico é crucial, pois além de requerer sen-sibilidade e intuição, terá de apresentar duas capacidades: a primeira, consistirá no acto de prolongar a adesão ingénua da leitura; a segunda, constituirá a capacidade analítica que des-trince no corpo do texto os elementos e as estruturas que de-terminam a repercussão da leitura primeira28. Contudo, estes princípios fenomenológicos da crítica literária não apresen-tam nenhum grau de fixidez, porquanto “A crítica deve esta-belecer esse círculo hermenêutico que reduz a obra a um sis-tema ou um conjunto de estruturas mas a reconduz por fim à sua irredutível presença que lhe confere a sua existência única de objecto estético.”29 O movimento propulsor é, então, o acto da produção do texto, que traz consigo a possibilidade de manifestação de um mundo ou da libertação desse mundo do vazio, esse fundo informulado:

25Ana Paula Coutinho MENDES, “Da ficção suprema de António Ramos Rosa: prosas de um poeta em diálogo”,Letras Com(n)vida, n.º 4, 2.º sem., Lisboa, CLEPUL/Gradiva, 2011, p. 191.

26António Ramos ROSA,PMIR I,op. cit., p. 19.

27Ibid., p. 35.

28Cf.ibid., p. 38.

29Ibid., p. 42.

O poema não reduplica o real, não o fixa, não o ex-prime, pois que o põe em questão e sobretudo porque parte desse vazio inicial que torna possível à consciên-cia a abertura ao mundo. Eis porque não se pode consi-derar a linguagem poética simbólica nem realista. [. . . ] Assim o objecto do poema é o próprio poema, mas ele nunca se realiza por completo e por isso o objecto in-tegral que o poema visa ultrapassa a possibilidade de expressão, é-lhe transcendente.30

A proposta tautológica de Ramos Rosa estender-se-á, consequentemente, não só ao acto da criação, mas também ao acto de leitura e de interpretação crítica. Nesta medida, a leitura literal poderá fomentar uma explosão de sentido e significado a partir do tal vazio criador, contrariamente à lei-tura simbólica que se afasta da matéria do texto. Só a partir da força literal, nua, indomesticável, anónima e radical da pa-lavra textual — espécie de grito, que é a força do movimento tautológico da criação poética — poderão o criador, o leitor e o crítico dizer o “tão pouco, esse extremo da simplicidade impossível, a iminência da comunicação”31. A simplicidade do gesto poético ou da imagem poética provoca uma fecun-didade conceptual que se encontra condensada em múltiplos sedimentos e por isso é que António Ramos Rosa esclarece o sentido do verso que dá título a esta reflexão:

[. . . ] o poema poderá dizer, além do mais, o que liga a mão à lâmpada, ou o espaço ínfimo que os separa, o ca-minho que ambos percorrem, em que se identificam, se perdem, e de novo reaparecem lâmpada, mão, as mes-mas palavras, outras, no caminho inseguro.32

Na verdade, a condição real do poema é ser advento do poeta. O instante vertiginoso da criação torna-se

constitu-30Ibid., p. 36.

31Ibid., p. 56.

32Ibid., p. 56.

tivo do real e coincidente com o aparecimento da linguagem que, num movimento de regresso a si e à materialidade do texto, revela o espaço paradoxal e ambíguo da criação e da imagem poética. É assim que a palavra se autonomiza e cria um mundo que coloca em causa, interroga e abala: “A poe-sia moderna não tem outra finalidade senão a constituição da própria palavra. Escrever um poema passou a ser um acto de invenção absoluto, um nascimento.”33

Trabalhar a materialidade da escrita é, em si, um acto ima-nente e revolucionário que não supõe um divórcio entre o real e o real criado. Embora reconhecendo a natureza obs-cura e ambivalente da tessitura poética, Ramos Rosa não prescinde da inteligibilidade e da produção de um real no in-terior da linguagem. Resultado de uma imaginação radical, o poema não é no entanto um enigma a ser decifrado de forma esquemática:

Ele é evidente na sua obscuridade ou na sua claridade ofuscante. O poema é uma manifestação da origem ou, por outras palavras, da Vida absoluta, e por isso mesmo é um mistério real. O leitor, tal como o poeta, é um cego que não tem outra luz além daquela que o poema projecta sobre si.34

O mistério do poema actualiza-se e actualiza a palavra, ac-tualizando o Poeta que converte a palavra e a organiza numa coerência não constrangedora do momento inicial, e também assim se poderá defender que o verdadeiro poeta não pre-cede ninguém. Esse mesmo mistério assenta num aparente paradoxo, assim formulado pelo Autor: “[. . . ] o mistério poé-tico é a instauração da palavra que revela, na sua evidência, o sentido ou não sentido do poema. [. . . ] O mistério não

33Ibid., p. 85.

34Id.,A Parede Azul: Estudos sobre Poesia e Artes Plásticas, Lisboa, Editorial Caminho, 1991, p. 14.

está para além do corpo verbal porque é a própria evidên-cia de um dizer fulgurante.”35 Portanto, na lógica superabun-dante e agónica do poema o olho lírico do poeta extravasa, fazendo com que a alma acompanhe a mão. Ao resgatar a força do gesto poético através da sua materialidade, o poe-ta une-se à materialidade do universo e recusa a reprodução de um real que lhe precede, optando por explorar, interro-gar e abandonar-se ao desconhecido através da linguagem.

A linguagem torna-se meio e instrumento através do qual se cria uma nova realidade assente na adopção do princípio da não-identidade, cujos atributos são a obscuridade evidente e a densidade simples.

Por conseguinte, a criação poética em António Ramos Ro-sa cria uma espessura que inaugura significantes e conteúdos, visão talvez distinta da de Nuno Júdice ao defender que a

“construção do poema é uma procura de resolução” de um

“oxímoro”36, ainda que aí se reconheça a valorização de uma poética não logocêntrica. Aquela espessura ou excesso per-mite a condensação de um universo cerzido pela palavra.

Deste modo, o sistema poético de Ramos Rosa legitima a fi-gura do poeta como aquele que não reproduz ou exprime o real, tal como a de um leitor-crítico que não traduz em “co-mentário” as figuras ou imagens, sepultando-as e fixando-as.

Em suma, em António Ramos Rosa a lógica proposicio-nal é substituída pela lógica poética que é a palavra viva: do vazio sem fundo irrompe uma mão que não descreve, mas escreve e inscreve um novo real ampliado pela criação da pa-lavra. Desta forma, a instigação derradeira da poesia é tri-pla: coloca o criador perante o abismo de uma invenção que amplia o real, questionando-o e reinventando-o pela palavra;

reposiciona o leitor ante o texto, pois o acto de leitura não

35Ibid., p. 22.

36Nuno JÚDICE, “A construção do poema de António Ramos Rosa”, in Poesia do Século XX, com António Ramos Rosa ao Fundo,op. cit., p. 38.

é tido como uma redução do excesso de sentido, mas antes um movimento abismal das significações forjadas para além de qualquer sistema lógico, e, por fim, reconduz o crítico a um plano de descoberta do momento inaugural da linguagem poética na sua ambiguidade essencial e superabundante.

E se a mão acesa é punho, é porque é mão fechada, espé-cie de grito violento de liberdade; e se a mão acesa é também lâmpada, é porque a alma acompanha a mão e se dispersa por todas as palavras, esse instante matérico e erótico em que nasce do poema, o poeta.

E um canto nascerá da ignorância

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