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António Ramos Rosa : Escrever o Poema Universal

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Academic year: 2022

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Design gráfico da capa: João Cracel Paginação: Luís da Cunha Pinheiro

Edição: Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Lisboa, Março de 2021

Impressão e acabamento: Europress, Indústria Gráfica

ISBN: 978-989-9012-18-9 (versão impressa); 978-989-9012-19-6 (versão digital)

Depósito Legal: 481249/21

Esta publicação foi financiada por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P. no âmbito do Pro- jecto UIDB/00077/2020.

Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons – Atribuição 4.0 Internacional.

Nota: No presente volume, respeitou-se a opção de cada autor no que concerne à adopção do AO90 ou da antiga ortografia.

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ANTÓNIO RAMOS ROSA Escrever o Poema Universal

Lisboa, CLEPUL

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Prefácio

Ernesto Rodrigues . . . 13 I E com as palavras de vento e de pedra,

invento o vento e as pedras, caminho um

caminho de palavras . . . 19 Do construtor e da construção emO Aprendiz Secreto ou a prosa de diamante em António Ramos Rosa

António Carlos Cortez . . . 21 O conceito de “liberdade livre” na poesia de António Ramos Rosa

Fernando Guimarães . . . 37 A boca trémula do poema: criação poética e risco em António Ramos Rosa

Helena Costa Carvalho. . . 45 Poesia e poética do ensaio em António Ramos Rosa

Jorge Augusto Maximino . . . 59 Acordes do Grande Livro do Mundo — A Poesia de

António Ramos Rosa

Maria João Fernandes . . . 73 António Ramos Rosa: Filosofia e Poesia

Miguel Real . . . 93

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O corpo da palavra

Nuno Júdice . . . 103 No extremo da mão, a mão acesa — o punho — é uma lâmpada:a criação poética como tautologia em António Ramos Rosa

Sofia A. Carvalho . . . 115 II E um canto nascerá da ignorância acesa

em que o silêncio é núbil ou gravidade branca 127

“O não-saber imagina-se” na poesia de António Ramos Rosa, ou o lusco-fusco das imagens

Catherine Dumas . . . 129 A verdade como construção poética: entre o eu-corpo e o eu-linguagem

Maria Helena Jesus . . . 143 A sábia ignorância e o silêncio radioso em António

Ramos Rosa

Maria Teresa Dias Furtado . . . 155 António Ramos Rosa,O que não pode ser dito

Paula Cristina Costa . . . 165 Vazio, branco da página e escrita do silêncio em António Ramos Rosa

Paulo Borges . . . 173 III Sou consonante no lúcido e intenso

diálogo . . . 185 A correspondência de Ramos Rosa com Jorge de Sena

Fernando J. B. Martinho . . . 187 Ramos Rosa — “(projéctil (percussivo (prospectivo”:

outras tradições, outras resistências

Graça Capinha . . . 205

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Poetaapud poeta, sombraapudsol: uma leitura de Al Berto a partir de António Ramos Rosa

Joana Lima. . . 221 Cio da Palavra: Diálogo entre Poéticas

Maria Heloísa Martins Dias . . . 231 O diálogo intertextual como correspondência livre

Rosa Alice Branco . . . 245 Ramos Rosa e Velho da Costa: se no silêncio, a criação de um mundo significativo? — Aprender uma forma de vida

Susana Vieira . . . 259

Desenhos de António Ramos Rosa . . . 270 Email aberto

Ana Paula Coutinho Mendes. . . 275

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Volante Verde(1986)

Escrever é entrar é penetrar na fronte branca e o coração move-se ao ritmo do universo

O Livro da Ignorância(1988)

Eu escrevo para que o universo diga sim no puro [espaço

e esse sim ressoe no meu peito aberto

À Mesa do Vento seguido de As Espirais de Dioniso(1997)

António Ramos Rosa

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Ernesto Rodrigues Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, CLEPUL

Em 13 de Agosto de 1958, escrevia António Ramos Rosa a Jorge de Sena: “Recebeu o meu livrinho? Vi-me obrigado a fazer essa selecção porque as massas não chegavam para o livro completo. Fiz mal? Mesmo assim, fiquei inteiramente depenado. Vamos a ver se se vende.”1

Referia-se a O Grito Claro, com que já concorrera, em 1954 — contraAs Evidênciasenianas —, ao Prémio Almeida Garrett, do Ateneu portuense. Caberia a vitória a um livro

“muito mau, uma daquelas contrafacções de si próprio, que o vate da Estrada da Beira fabrica de há tempos a esta parte”2. Sena batia em Miguel Torga.

O Grito Claro reuniu-nos 60 anos idos, em 17, 18 e 19 de Outubro de 2018, na Biblioteca Nacional de Portugal, no Congresso Internacional António Ramos Rosa: Escrever o Poema Universal, cujas intervenções seguem.

Deve-se este reencontro a Helena Carvalho, membro do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa — CLEPUL e doutoranda sobre o Poeta. O seu entusiasmo foi acolhido pela BNP, na pessoa amiga de Inês Cordeiro, com quem, enquanto

1Jorge de SENA e António Ramos ROSA,Correspondência 1952-1978, ed. Mécia de Sena e Jorge Fazenda Lourenço, colab. Agripina Costa Mar- ques e Inês Espada Vieira, Lisboa, Guimarães Editores, 2012, p. 162.

2Ibid., p. 128.

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director do CLEPUL, assinei um protocolo de colaboração, extensível a outras áreas.

Quando, em 2006, palestrei, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, sobre a última década da nossa lírica, comecei por um friso inquestionável, retratando poetas que almoçavam no Cantinho das Gáveas, pequeno restaurante do Bairro Alto, por iniciativa de Luís Amaro. Estávamos no Verão de 2003, e, à mesa, tínhamos António Ramos Rosa, João Rui de Sousa e Herberto Helder. Não se imagina a viva discussão, quase diria juvenil, de Rosa e Herberto.

Era parte da geração daÁrvore(1951-1953), dirigida por António Ramos Rosa, António Luís Moita, Egito Gonçalves, José Terra, Raul de Carvalho e Luís Amaro, que procurou, em quatro números, conciliar neo-realismo e surrealismo, deve- dora das líricas francesa, espanhola e inglesa dos anos 30, da Resistência e do pós-guerra. É comum citar o seu ponto de partida nas palavras de Ramos Rosa: “A primeira coisa por que devemos lutar é pela confiança nos destinos da poesia, que nós confundimos com o próprio destino do homem.”

Em “Breve página de memórias: como nasceu a ‘Árvore”’3, Luís Amaro conta como conheceu Rosa — que eu também encontraria, nos últimos anos, na casa daquele, em Massamá

—, “poeta inédito, em quem, para lá da simplicidade estreme, não foi fácil surpreender os dotes que o singularizariam. Ado- rava Drummond e Éluard, dava-se com o surrealista Pedro Oom [. . . ], e, adolescente, em Faro, vibrara com os Poemas [de Deus e do Diabo] de Régio e defendera junto dos colegas liceais a pura arte deCanções[de António Botto] não mutila- das ainda pelo autor.” Na formação de um poeta, é caso para dizer que Deus escreve por linhas bem tortas. . .

Enquanto avançam os alicerces da revista, Ramos Rosa,

“funcionário cansado”, abandona o escritório e, de Faro, car-

3Letras & Letras, n.º 56, 2 Out. 1991, p. 15.

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teia-se “principalmente com o Raul, que, ‘em comunicação astral’ (dizia, a gracejar), lhe infundia epistolarmente toda a alma ‘arbórea’ que fez dele, Rosa, o teórico da revista e um dos seus fundamentais esteios como poeta e ensaísta”.

Sucedeu o número único da revistaCassiopeia(1955), em que Ramos Rosa esteve com João Rui de Sousa. E, quando surge a Poesia 61 — cinco plaquetes: de Casimiro de Brito (Canto Adolescente), Fiama Hasse Pais Brandão (Morfismos), Gastão Cruz (A Morte Percutiva), Luiza Neto Jorge (Quarta Dimensão) e Maria Teresa Horta (Tatuagem), publicadas em Faro (1961) —, num contexto em que convém salientar o pa- pel, na capital algarvia, dos cinco fascículos deCadernos do Meio-Dia (1958-1960), da colecção A Palavra (coord. por Casimiro de Brito e contando também entre os seus colabo- radores Fiama e L. N. Jorge), é de realçar o papel catalisador desempenhado por António Ramos Rosa, já então gozando de assinalável prestígio, quer como poeta, quer como crítico, junto dos companheiros mais jovens.

A partir dos anos 70, comecei a admirar, a par do tradu- tor que precisava de se alimentar, e alimentar a família, a ex- tensão ensaística de Ramos Rosa e, na poesia, a sua “relação com o universo” em verso longo, entre laivos neo-realistas e o epigramático, “entre a sombra e a terra”, sombra ou a inca- pacidade de a poesia falar do máximo real, e terra, na variante deserto, significando o anseio de secura e claridade, nos limi- tes da solidão humana.

Em filigrana, todavia, foram-se criando solidarieda- des textuais, que recomendo aos exegetas: assim, em Sophia, e creio que em Eugénio de Andrade, há “nós de silêncio”, como, em Ramos Rosa, encontramos “O puro nó/ do silên- cio”4. Rosa retoma significativa estrutura de Sophia, emNo Tempo Dividido(1954): “caminho um caminho”. David Mou-

4Não Posso Adiar o Coração, Lisboa, Plátano, 1974, p. 143.

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rão-Ferreira, em Terraço Aberto. Crónicas e Ensaios (Lis- boa, Círculo de Leitores, 1992), fará homenagem subliminar ao Ramos Rosa do poema “Terraço aberto”, em Voz Inicial (1961). Aprofundar esses encontros daria imagem cuidada das leituras que nós fazemos e dos ares do tempo.

A pouco e pouco, Ramos Rosa vira conceito, uma exten- são ensaística contaminando títulos sucessivos, que dificil- mente abarcamos, saibamos embora que passava meses sem poemar. Tem consciência dessa extensão:

Alguns dizem que eu escrevo de mais como se tivesse escrito alguma coisa, concluindo:

Dispersei-me na areia sem me apagar e fui sempre uma sombra obstinada.5

Este escrever teorético atinge o auge em As Palavras (2001). Sobressalta-nos, por isso, em artista-caleidoscópio, já um exercício de definição de pátria (Pátria Soberana se- guido de Nova Ficção, 1999): “Chamo pátria de profundas veias/ a essa relação viva entre os homens se ela houvesse”

(p. 9), já a relação entre construtor e construção em fragmen- tos de contida prosa (O Aprendiz Secreto, 2001), ou a des- crição de quadros sensuais em colecção de cordel (Nascente Submersa, 2002).

Esta dispersão, que é uma disponibilidade assumida de que “Escrever é sempre outra versão/ de um texto que nunca se chegou a compor”6, no assunto e nos meios veiculares — referirei a presteza com que, naquele almoço, Ramos Rosa nos presenteou com desenhos de traços lampejantes —, tor- na-o a incarnação da poesia, ou “A arte e a literatura como

5Deambulações Oblíquas, Lisboa, Quetzal Editores, 2001, p. 35.

6Versões/Inversões, Santarém, O Mirante, 1997, p. 19.

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criação ou produção do real”, título no suplemento Literatura e Arte d’A Capital (13 Jul. 1973). Ou seja, como resumindo polémica inacabada: “Uma concepção verdadeiramente to- tal do fenómeno artístico e literário tem de o considerar em si mesmo, na sua capacidade de auto-significação, na sua re- lativa independência e dialéctica inserção na sociedade em relação à qual ele é, de facto, determinante, não no sentido imediato de transformação das estruturas sociais, mas como consciência superior do que num dado momento o homem pode fazer da vida, e realmente faz nesse ‘fazer-se’ específico da arte, o que, já de si, é uma transformação social, na medida em que a significação artística refaz e reactualiza a consciên- cia social, adaptando-a a uma nova visão, preparando-a para uma nova realidade.”

Atento aos outros, debruçou-se sobre também Algarvio com prática crítica e cronística desde há muito na Imprensa, e preocupado, desde a estreia em 1972, com um título afim dos de Rosa: A Noção do Poema. Nuno Júdice abriu exemplar- mente o congresso. No seu caso, a teoria reconstrói a poética ocidental, apoiada na dramatização do eu romântico-simbo- lista em verso longo quais “navegações verbais” (A Condes- cendência do Ser, 1988), e refigurando temas familiares ao leitor culto (o tempus fugit, o desterro, etc.). Fá-lo, porém, algo neutra e desprendidamente (ou isso parece), como se a violência devesse calhar a quem lê. Sendo, metodologica- mente, ruptura discursiva, o poema constitui-se “(im)possibi- lidade”, e, se esse é o “‘tema’ fundamental da poesia de Nuno Júdice”, segundo A. Ramos Rosa, tal busca, por outros cami- nhos, não deixa de se impor ao mesmo Rosa.

O alinhamento em livro organiza melhor estas questões, optando-se, em cada apartado, pela ordem do primeiro no- me. Ilustres ausentes em Lisboa deram também o seu con- tributo, e relevo Fernando Guimarães, a quem eu já pedira verbete sobre Rosa para oDicionário de Literatura. Actua-

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lização (vol. 3, Porto, Figueirinhas, 2003). As bibliografias constantes das teses de Ana Paula Coutinho, Paula Cristina Costa e Jorge Augusto Maximino virão completadas pela de Helena Carvalho, e assim teremos, associado a este volume, o quadro mais completo da presença de António Ramos Rosa na galáxia lírica, ensaística e tradutológica.

Este livro não poderia comportar os depoimentos de ami- gos em dia de aniversário do poeta, 17 de Outubro, e dos que estiveram na mesa-redonda de 18: João Rui de Sousa, Ca- simiro de Brito, Gastão Cruz, Jaime Rocha, Fernando J. B.

Martinho, Pedro Mexia. Mas lembre-se o documentário de Diana Andringa,António Ramos Rosa: Estou Vivo e Escrevo Sol (1997), enquanto o lançamento de Obra Poética I (Assí- rio & Alvim, 2018), com apresentação de António Guerreiro, anuncia a reunião de quem dispersamente se deu, nessa ati- tude de eterno recomeço que exige a poesia.

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E com as palavras de vento e de pedra, invento o vento e as pedras, caminho um caminho de

palavras.

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diamante em António Ramos Rosa

António Carlos Cortez Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, CLEPUL

Uma das consequências da afirmação de Rimbaud “Il faut être absolument moderne” tem que ver com a procura de uma forma extremada de comunicação poética, a demanda de um novo conceito de poema em prosa nos limites da sua própria destruição. Nas suasIlluminations, exceptuando as compo- sições “Marine” e “Mouvement”, os restantes textos de Rim- baud são em prosa e assumem, por um lado, um visionarismo de carácter místico, decorrente da lógica fragmentária, e, por outro, conferem à imagem poder irradiador próprio de com- posições que seriam como momentos iluminados, ou de ilu- minação.

A imagem, como processo central de uma escrita onde se procura o desregramento de todos os sentidos, é o que Paul Verlaine, em 1884, destaca, emLes Poètes Maudits, ao con- siderar a novidade da prosa de Rimbaud. A força da novidade dos seus “soberbos fragmentos” estava na descoberta daquilo que para o autor deRomances sans Parolesseria a “prosa di- amantina” dasIlluminations, cuja aventura tinha começado comUne Saison en Enfer. Tentando com esse adjectivo, “di- amantina”, unir a natureza poética à força e dureza deslum- brantes da sua obra, como refere María Victoria Torremo-

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cha1, Verlaine descobre no jovem poeta uma nova força elo- cutória, um modo de dizer o real que, radicalmente, concilia no acto da escrita quer o poder de nomeação que o poema, como um organismo novo — um animal vivo — arrasta con- sigo, quer o poder alquímico assente numa fórmula nova, e que o próprio Rimbaud sintetiza ao referir-se à sua condi- ção de poeta como um monstro. Entenda-se: um novo tipo de poesia que produziria conhecimento, ou uma determinada forma de acesso ao conhecimento do real, e que na célebre

“carta do vidente” traduzir-se-ia na aparição dovoyant. Estamos, de facto, peranteuma escrita outra2onde a lin- guagem se torna “assimptótica; corre[ndo] paralelamente à voz interior quando esta se aproxima da infinitude do espíri- to”3, como viu Henry Miller emO Tempo dos Assassinos: Um Estudo sobre Rimbaud. A criação suprema de uma ficção em cuja linguagem se figura um novo “eu” — o “eu”-outro, vi- dente —, se reenvia para uma pessoa concreta chamada Rim- baud, faz dessa pesssoa uma voz-escrita, uma figura de ex- cepção que aprofunda um ideal de vida na própria dramati- zação que a sua obra põe em cena. António Ramos Rosa foi sensível à iluminação do poeta das Ardenas ao ponto de, num ensaio dePoesia, Liberdade Livre, intitulado “De Vitor Hugo a Saint-John Perse”4, observar que a revolução operada pelo poeta de “Le bateau ivre”, no quadro da evolução da poe- sia oitocentista francesa, vem na sequência daquilo que para Hugo teria sido a visão superior da poesia, sintetizada na ex- pressão “a alma é uma pupila”. Definindo através dessa ima- gem a concepção poética do mundo em que a inauguração

1Cf. María Victoria Utrera TORREMOCHA,Teoría del Poema en Prosa, Sevilha, Universidad de Sevilha, 1999, p. 156.

2Sublinhado meu.

3Henry MILLER,O Tempo dos Assassinos: Um Estudo sobre Rimbaud, trad. José Miranda Justo, Lisboa, Antígona, 2016, p. 65.

4 António Ramos ROSA, Poesia, Liberdade Livre[1962], Lisboa, Ul- meiro, 1986, p. 147.

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dum espaço de liberdade é inseparável da criação e esta da observação dos dados do real segundo uma perspectiva nova em que os múltiplos planos da consciência são cada vez mais amplos, para Ramos Rosa, como já para Hugo e suprema- mente para Rimbaud, o processo evolutivo que vai do cantor da Notre-Dame de Paris a Perse tem de passar obrigatoria- mente por Rimbaud, porquanto é nele que se assiste ao grau de pulverização máxima do mundo empírico num esforço por o recriar em formas sintéticas.

Com efeito, os poemas em prosa — lugares da ilumina- ção, isto é, artefactos de linguagem onde a razão lógica ou o racionalismo das convenções (poéticas ou outras) se desfaz

— podem ler-se como instantes fotográficos em que a nova visão da realidade, moldada pela intuição da imagem poética, propicia o espanto perante a própria linguagem que destrói e reconstrói, forma e deforma a acção da escrita. Os poemas, esses “exercícios diários de sobrevivência”5, e que correspon- dem à produção de Ramos Rosa nos anos de 1990 e no decé- nio seguinte, são ainda a procura de uma radicalidade, isto é, de um ir à raiz da poesia para nela encontrar um sujeito que escreve porque vive e vive porque escreve. Um sujeito que, segundo Silvina Rodrigues Lopes, ao construir a sua lingua- gem se debate com o emparedamento a que essa própria lin- guagem, ainda que nascida da imaginação poética, cria. Um sujeito que vive e escreve entre “a sensação de regresso ao sem nome, o informe, que muitas vezes designa como água, associando-o ao silêncio, venha ele das palavras, da mudez, do grito ou de uma relação imediata com a matéria” e o desejo de uma poesia “enquanto movimento para fora da loucura através dela própria, isto é, como désoeuvrement”6. Como

5 Maria Filipe Ramos ROSA, “Advertência”, in António Ramos ROSA, Poesia Presente: Antologia, org. Maria Filipe Ramos Rosa, pref. José To- lentino Mendonça, Lisboa, Assírio & Alvim, p. 7.

6Silvina Rodrigues LOPES, “Da perplexidade inamovível e das imagens

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se pela poesia fosse possível encontrar a saída para o mundo fechado do real quotidiano em que se vive, Ramos Rosa não deixa de querer libertar-se também desse outro mundo, o da poesia em si mesma, que muitas vezes enclausura o poeta no exacto instante em que, escrevendo, as imagens se criam.

Num poema de 1989, “Quem escreve”, deAcordes, o eco de Rimbaud a partir dessa ideia de um desregramento dos sentidos para procurar aliberdade livredentro do acto cria- dor, se não é absolutamente claro (e eu creio que será sufici- entemente óbvia a ressonância do poeta francês nesse poema em particular), é vestígio que temos de tomar como prova:

QUEM ESCREVE

Quem escreve quer morrer, quer renascer num ébrio barco de calma confiança.

Quem escreve quer dormir em ombros matinais e na boca das coisas ser lágrima animal

ou um sorriso das árvores. Quem escreve quer ser terra sobre terra, solidão

adorada, resplandecente, odor de morte e o rumor do sol, a sede da serpente,

o sopro sobre o muro, as pedras sem caminho, o negro meio-dia sobre os olhos.7

Aquela tendência, diz Ramos Rosa, para “o originário e primitivo”, que tão bem define o Romantismo, aprofunda- -se em Rimbaud. Romantismo como “solidão adorada”, co- mo “odor de morte”, descoberta das forças plenipotenciárias da alma do mundo, o poeta que procurou “o ‘lugar e a fórmula’

que tornassem possível reverter o homem ao seu ‘estado pri- mitivo de filho do sol”’8, esse poeta é de novo figurado no ideal de construção poética em Ramos Rosa. Nesse caminho

que se desprendem”,Colóquio/Letras, n.º 196, Set. 2017, pp. 9-14, p. 9.

7António Ramos ROSA,Poesia Presente: Antologia,op. cit., p. 184.

8Id.,Poesia, Liberdade Livre,op. cit., p. 147.

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de redescoberta das forças anímicas do homem, onde Mal- larmé ocupa também um lugar especial, tenhamos em conta que influi no próprio modo de Ramos Rosa olhar a poesia essa mallarmeana restituição à linguagem da força mítica do verbo criador. Ao aproximar-se “do tempo anterior à queda na consciência infeliz e segregadora” que caracteriza a Mo- dernidade, é do mesmo risco a luta que Rimbaud e Mallarmé, de modos diversos, é certo, empreendem. Essa luta é aceite por Ramos Rosa muito cedo quando defende o conceito de uma “poesia moderna” — que o seria tanto mais quanto mais longe fosse o combate pela restauração do mito, forma plena da transcendência vinda das imagens inaugurais.

Assim é que na relação de reciprocidade entre linguagem e realidade o homem verdadeiramente poeta descobrir-se-ia autêntico criador quando, pela escrita alucinada, viver e mor- rer se faziam faces da mesma moeda — um viver e morrer na “língua plena”, como escreverá mais tarde Herberto Hel- der. Um viver na poesia querendo alcançar essa “vraie vie absente”, esse lugar obscuro — o poema — onde a distância entre homem e mundo se diluiria pela certeza, ou melhor, pela revelação de que a poesia, como linguagem de signifi- cantes, presentifica as coisas desse mundo (os referentes) na própria ausência com que os designa. Poesia radical e da ra- dicalidade porque perante a distância entre palavra e coisa referida o que a poesia inaugura é o espaço de reaprendiza- gem da eterna linguagem das imagens onde ao dizer o real ele é dito pela ausência e pela pureza dum verbo renascido9.

Num poema de O Aprendiz Secreto uma arte poética dá contorno a essa vida e a essa morte livres da ganga com que o homem quotidiano se gasta:

9A este respeito, e para melhor compreender o que Ramos Rosa pre- tende com a noção de uma poesia radical, veja-se o ensaio de abertura de A Parede Azul: Estudos sobre Poesia e Artes Plásticas, Lisboa, Editorial Caminho, 1991, pp. 13-14.

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O construtor sabe que não é possível determinar nem descobrir o que nos sustenta, o que nos ilumina, o que nos orienta. Mas tudo o que ele constrói é o fruto dessa ignorância que o projecta para a frente, para um va- zio fértil em que as formas flexíveis e mutáveis serão as metáforas de um espaço puro e inicial em consonância com as coordenadas dos sentidos e as latentes orien- tações do ser. Assim, o construtor trabalha na maté- ria implícita do corpo, sem o conhecer, e ergue à sua frente as formas que ele inventa para ir ao encontro do que o constitui e lhe é sempre anterior no seu silêncio de estrela vegetal. A construção é como que um anel que reúne o princípio e o fim, a origem e o alvo, o gér- men e o espaço vivo da circulação nupcial. E por isso a obra será surpreendentemente viva e de um fascinante equilíbrio entre vertentes contrárias, entre o deserto e o oásis, entre uma caverna calcinada e a jubilação co- piosa de uma torrente interminável.10

De viver livre se trata, de morrer para esta vida vã, eis o projecto, inscrito também no pacto de leitura que se estabe- lece entre a palavra ramos-rosiana e a recepção dessa palavra:

a obra é tanto mais surpreendente quanto mais o leitor esteja imerso nas imagens diamantinas que o construtor edifica a partir de uma ignorante sageza. De uma poesia verdadeira- mente moderna, pois o leitor é chamado não tanto a com- preender na íntegra o que se diz, mas a tornar-se presente a essa condição humana que no poema se procura resgatar.

A poesia, diz Ramos Rosa, mais do que ser um poema que transmite ideias ou valores, é o acto no qual as crenças e as atitudes, as ideias, têm de se organizar de outra maneira para que a poesia possa ser outra coisa. Se quisermos a poesia é no poeta deO Aprendiz Secretoa afirmação do real ou a res- tituição do real, já que o poema “não é para António Ramos

10António Ramos ROSA,O Aprendiz Secreto, Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições, 2001, p. 44.

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Rosa nem realidade paradisíaca, nem o seu análogo imagé- tico ou alegórico, mas simples lugar da luta por uma unidade

— uma unificação sobretudo — jamais dada ou alcançada e no entanto presente pelo palpável e fulgurante excesso que o contacto com o real estabelece em nós”, como bem viu Edu- ardo Lourenço11. Por isso é que se impõe como evidência de um lugar onde a unificação pode acontecer ou a falha pode brilhar, o poema como gesto que se ergue contra os dogma- tismos, um diamante verbal que faz esplender o princípio do incerto que rege a poesia e a vida:

Às afirmações dogmáticas, à imposição dos conceitos, o construtor opõe a simplicidade primeira de uma ener- gia que nunca é figurada mas cintila e estremece nas for- mas subtis da construção. Nas paredes que ergue o lon- gínquo reflecte-se e palpita como uma pálpebra mari- nha. A proximidade de um rio e de uma pequena ilha no meio dele acompanha-o como uma presença cúmplice preciosa. O visitante que nunca virá, mesmo quando a casa estiver construída, é a presença da ausência que pulsa e a abertura do invisível.12

Quando o poema é essa coisa outra, antidogmática, mo- rada onde o longínquo reflecte (ére-flectir, isto é, um fazer cair o corpo que escreve e cria o diamante no espaço branco da folha que recebe esse corpo), aí o transcende a história, mas é ainda história, “pois que, em última análise, a história não é mera sucessão de factos, mas criação de momentos úni- cos, um recomeçar constante”13. Por isso o poema é, a cada livro, esse mesmo recomeço da construção e do construtor que só no acto de erguer um mundo de linguagem pode par- ticipar, igualmente, dessa História que a poesia transcende. O

11Eduardo LOURENÇO, “Poética e poesia de Ramos Rosa ou o excesso do real”, in António Ramos ROSA,Não Posso Adiar o Coração, Lisboa, Plátano Editora, 1974, p. 15.

12António Ramos ROSA,O Aprendiz Secreto,op. cit., p. 21.

13Id.,Poesia, Liberdade Livre,op. cit., p. 31.

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poema é, então, esse anel em cujo “espaço vivo” o princípio e o fim são unos, em que a circulação da linguagem reorienta quem escreve à aliança primeira, essa nupcial congregação entre as “vertentes contrárias” — deserto e oásis — da vida humana, sempre tão aquém daquilo para que nasceu, sem- pre tão além do que a reduz a ser mera matéria desvitalizada.

Eis também porque o poeta é no gesto da escrita o aprendiz eterno, ciente de que o poético é um “processo constante” de superação dinâmica daquilo mesmo que o tolhe e bestializa.

Uma definição inescapável da poesia firma os pressupostos teóricos por que se move a poética de Ramos Rosa:

A poesia não prescinde da linguagem, pois que é funda- mentalmente um acto expressivo. [. . . ] Por mais espe- cífico que seja o acto poético, não nos devemos esque- cer que ele é revelação da condição humana fundamen- tal. “Condição humana fundamental” é expressão que não implica de modo algum o estatismo duma natureza

“eterna”. A condição humana é a da contradição má- xima e, que por isso mesmo, é a mais dinâmica. O ad- jectivo “fundamental” indica que se trata de atingi-la no ponto em que a contradição é mais viva, isto é, naquele nível em que o homem descobre a sua insignificância ao mesmo tempo que o desejo de ser outro, a vontade de modificar totalmente a sua vida. Este desejo de trans- formação radical, demetamorfose, é inerente tanto ao homem autêntico ou “humano” como ao poeta. [. . . ] o homem “autêntico” começa pela consciência da sua inautenticidade ou, se quisermos, da sua ambiguidade e indeterminação; ou se quisermos ainda, de um vazio exterior. Daí lhe vem o desejo de superação, a vontade de se determinar comooutro. [. . . ] O homem “humano”

ou autêntico não se quer, porém, ver outro, quer sê-lo, o que implica um combate, uma tensão permanente.

Encontramos assim, tanto no poeta como no homem

“humano” um movimento para a frente, umir para, ra- dicados na consciência duma carência fundamental. A

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metamorfose nooutro, no entanto, só se completa pela imaginação poética, isto é, no poema.14

Reconquistar a face perdida do próprio homem, libertá-lo das regras da cidade, inaugurar, através de uma visão pro- funda do Ser, um lugar onde a imaginação tem livre curso para ser um modo de respirar, isso mesmo dá a Ramos Rosa a chave com que possa a sua obra evoluir no quadro geral da nossa poesia pós-surrealista.

De facto, negar a sociedade mercantil e utilitária, indus- trial e mecânica, resgatar o poeta do exílio a que foi conde- nado, reconhecer que a poesia e a arte são as únicas vias pelas quais o homem pode superar as contradições e as tensões que o aprisionam a modos desprezíveis de existir, esse é o hori- zonte a que a escrita de Ramos Rosa, como nenhuma outra em Portugal, aspira. Do surrealismo Ramos Rosa colheu essa imaginação revolta das imagens, com o surrealismo aprendeu o poder subversivo das palavras em sentido mágico de exis- tência, mas ao libertar-se dessa que vem a ser uma nova or- todoxia estética, o poeta dePátria Soberanaconquista essa autonomia em relação ao real que advém da ruptura com toda a espécie de causalidade. Isso mesmo vê Gastão Cruz quando considera que os poemas de Ramos Rosa se organizam, não raro, em torno de uma imagem obsessiva, de uma ideia cen- tral, com isso fazendo irromper uma escrita ancorada na pes- quisa e na concentração em torno do signo linguístico, o qual não é só a abstracta forma onde significado e significante pre- -existem às coisas, mas a coisa mesma, o objecto totalizante de uma pátria livre — a da poesia15.

No ensaio capital sobre a poesia francesa moderna que podemos encontrar emPoesia, Liberdade Livre, Rosa con-

14Ibid., pp. 32-33.

15Cf. Gastão CRUZ, “Pátria Soberana: ‘O sentido da unidade”’, inA Vida da Poesia: Textos Críticos Reunidos, Lisboa, Assírio & Alvim, 2009, pp. 187-189.

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voca, além de Rimbaud, Shelley, Blake, Hölderlin, Coleridge, Baudelaire, Novalis. Em todos identifica o poeta de Estou Vivo e Escrevo Sola mesma concepção da poesia como “ins- tigação positiva e renovadora”16: em Blake a poesia é “a ver- dadeira palavra original e anterior a todos os evangelhos ofi- ciais”; a Blake, precursor do surrealismo, se deve a criação de um poder transfigurador da palavra conducente à “inocência do primeiro homem”, e Novalis, ao idealizar uma comuni- dade poética, anuncia a libertação do Homem pela anulação das relações degradantes: “La poésie doit être faite par tous”

é uma sentença de repercussões muito claras na obra ramos- -rosiana. Provando-o está o espírito que anima o Ramos Rosa ensaísta, aquele que não hesita em defender que só uma poe- sia criadora de novos reais faz sentido para o homem-escravo da sociedade técnica. O poeta é, pois, o construtor de uma superação dos limites ao dotar a linguagem de uma magia que deriva da eliminação das fronteiras entre o “eu” e o “tu”.

Como Machado, também Ramos Rosa procura justificar oca- minho de palavrasque o leva ao “tu essencial”.

Nessa perspectiva, podemos falar de uma dialéctica uni- ficadora e progressiva em que, como Apollinaire, o poeta é o cultor de um objecto onde vigora a “razão ardente”, a vigí- lia e o sonho, a memória e a sede de futuro, o poema como espaço feérico onde a realidade se destrói para ressurgir in- tegrada num Homem mais consciente de si. Esse acto criador poético como “processo de fragmentação do real” é o que Ra- mos Rosa lê também em Pierre Reverdy; um acto inseparável da dignidade que o poeta reclama para todos os seus seme- lhantes. O poeta moderno é o responsável pela resolução das antinomias que a tradição cristã veio a criar e por isso toda a escrita do poema acarreta o sentido trágico de se mergulhar na consciência de que houve, algures, uma perda, ou melhor, uma morte do espírito que só no trabalho imaginante da pala-

16António Ramos ROSA,Poesia, Liberdade Livre,op. cit., p. 148.

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vra se pode, aos poucos, reavivar. Dirá emPoesia, Liberdade Livre:

Se tentarmos estudar o problema da significação numa poesia menos clássica, não será possível encontrar-lhe essa evidência de “um discurso racionalizado” [. . . ]. A partir de Rimbaud a poesia passa a ser “um sopro que abre brechas nos muros”. Assim se entra num mundo onde o real foi destruído, onde a única realidade é a própria linguagem. O único conceito positivo que é possível extrair da poética de Rimbaud é o da liberdade plena da imaginação, a demiurgia absoluta. O conteúdo de um poema já não depende do assunto ou argumento que o estruturava, mas confunde-se com todos os aci- dentes sonoros e semânticos que se integram na sua verdadeira substância.17

O Aprendiz Secretoé, assim, um dos momentos mais evi- dentes dessa procura incessante em Ramos Rosa daquele “re- gresso ao estado primitivo de filho do sol”; procura — já no século XXI —, de uma “pátria soberana”, de uma substân- cia com que seja possível habitar ainda o mundo — habitá-lo poeticamente.

Livro de poemas em prosa, blocos organizados em função de uma ideia obsessiva — a do construtor que edifica uma nova linguagem e teoriza sobre ela —, também aí se encontra o outroque está do outro lado da aventura ramos-rosiana da palavra. Se dos seus primeiros livros até, porventura,Volante Verde, de 1986, há como que uma luta sem tréguas do poeta contra a própria palavra que destrói e reconstrói o real que o circunda; se as palavras, como escreveu Eduardo Lourenço, não foram jamais para Ramos Rosa “aquelas ‘moradas de cris- tal’ onde a música das coisas vem pousar como uma pomba”, mas “um pouco como aquele dedal de matéria negra de den- sidade infinita que os físicos atribuem aos ‘buracos negros’

17Ibid., p. 45.

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onde a luz do universo se afunda”18, certo é que, a partir desse livro de 1986, há como que um apaziguamento do confronto entre o poeta e esse “buraco negro” da linguagem. Essa é a virtualidade criadora que Ramos Rosa tinha percepcionado em inúmeros poetas de sua eleição e que, como temos vindo a ver, participam dessa consciência de que a linguagem é o lugar oculto do real, território onde o som e o sentido não es- tão em parte alguma a não ser na densidade mesma com que se nos mostram numa escrita que nos ilumina de sua luz negra e nos oferece a realidade reificada.

O Aprendiz Secretoé porém um livro de continuidade da- quela luta com as palavras, mas trata-se de uma luta de si- nal contrário. A linguagem esplende, mas serena, numa es- pécie de obtenção budista dapax in excelsis. A ânsia de to- talidade que o poeta exige para o Homem continua, mas os textos são sentenças, meditações, ensaios breves sobre uma construção imaginada para um porvir inadivinhável. Ou é já um livro onde à luz negra de outros momentos da sua obra (Quando o Inexorável é um desses mais altos momentos de debate) uma outra luz, mais clara e pacífica, se descobre. O fascínio que esse livro exerce deve-se à sobriedade do dese- nho que tais textos apresentam, a essa espécie decontinuum de uma mancha gráfica densamente negra, como voz lúcida vinda do poeta que sabe agora que a ingenuidade, a integri- dade, a unificação do poeta consigo mesmo só pode resultar da absoluta concentração e silêncio. Lemos as palavras na página, sem quebra de versos, perfazendo quadrados negros, quase rectângulos de palavras em exame, em enxame, numa poesia que se aproxima do ensaio, que se pensa como exame, ponderação, reflexão mesma sobre o que é escrever tomado pelo vigor de imagens em circulação: uma “linguagem de res- tituição” em que se sabe que “A obra é um movimento sem

18Eduardo LOURENÇO, “Palavra com poeta dentro”,Relâmpago, n.º 5, Lisboa, Out. 1999, p. 7.

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conclusão, uma meditação activa em que o gesto construtivo antecede o pensamento e se liberta da cadeia temporal”19.

Aí de novo se coloca o problema da significação moderna na poesia, assunto a que Ramos Rosa dedicou muita da sua atenção, projecto que não abandonou jamais. Fiel àquela de- liberação assente num outro livro — “caminho o meu cami- nho de palavras”, “procuro uma linguagem de restituição” — emO Aprendiz Secretoactualizam-se as potencialidades cri- adoras do próprio verbo, o movimento de liberdade das ima- gens que colaboravam com aquela herança rimbaudiana da prosa de diamante, da prosa poética radical em que a palavra em si mesma considerada já não podia estar na significação dada, pois não só o criador, mas o observador/o leitor, eles mesmos eram chamados para dentro do espaço poético, eles mesmos tinham de construir a significação do objecto.

Como num outro momento dePoesia, Liberdade Livrese afirmava, “A poesia [moderna] deixou de ser apenas meio de expressão de um conteúdo preexistente ao acto criador, para se tornar experiência original, no sentido duplo, mas uno, de experiência que se radica na origem do ser e de experiên- cia que inaugura objectivamente uma nova realidade”20. A importância dada à imagem no processo de uma nova signi- ficação poética é, diz, de natureza transcendente, o poema deve ser o espaço da “sublimação absoluta”. Neste contexto, Ramos Rosa relembra as palavras de Gaston Bachelard na in- trodução deLa Poétique de l’Espace:

“Quando tivermos de nos referir à relação de uma ima- gem com poética nova com um arquétipo adormecido no fundo do inconsciente, ser-nos-á preciso fazer com- preender que esta relação não é, propriamente falando, causal. A imagem poética não se submete a uma impul- são. Não é o eco de um passado. É antes o inverso:

19António Ramos ROSA,O Aprendiz Secreto,op. cit., p. 56.

20Id.,Poesia, Liberdade Livre,op. cit., p. 49.

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pela fulguração de uma imagem, o passado longínquo ressoa em ecos e quase não se vê a que profundidade estes ecos vão repercutir e extinguir-se. Na sua novi- dade, na sua actividade, a imagem poética tem um ser próprio, um dinamismo próprio.”21

Ao ler-se O Aprendiz Secretoa imagem poética, nascida de uma fenomenologia da imaginação, alguma coisa tem que ver (como teve sempre) com aquela ideia de que ao construir um poema há como que uma ressonância, uma vibração do real que, vindo do exterior, nos invade, ou se lança contra nós, exigindo-nos, com a sua pressão, a libertação da ideia.

Ramos Rosa, numa entrevista reproduzida na revista Re- lâmpago, no seu quinto número, de Outubro de 1999, ao res- ponder a uma pergunta de Amparo Osório e de Gonzalo Mar- ques Cristo, dirá: “[. . . ] eu não procuro ensinar. Se a minha poesia é uma respiração, cada poema que escrevo não en- sina, não explica, não demonstra.” Acrescenta ainda, nessa resposta, que a sua obra, como a de tantos outros autores (re- fere Juarroz e René Char, Rimbaud e Octavio Paz),

é tanto cósmica como erótica e por isso mesmo ele- mental, natural. Embora eu não tenha nenhum pro- jecto definido, verifico que na minha poesia todo o pro- gresso é um retorno, a viagem para uma “terra incóg- nita”, essencialmente para umpaís nue desconhecido, se porventura caminho para o horizonte à minha frente, o meu percurso ou o do poema é circular e por isso a minha “viagem” é também a procura de uma anterio- ridade primordial inerente a toda a poesia, ou seja, a nostalgia do seu próprio movimento na sua actualiza- ção imediata.22

21Ibid., pp. 49-50.

22Id., “Entrevista — António Ramos Rosa”, entrevista por Amparo Osó- rio e Gonzalo Márquez Cristo, Relâmpago, n.º 5, Lisboa, Out. 1999, pp. 23-29, p. 24.

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Isso mesmoO Aprendiz Secretoanuncia: essa terra incóg- nita. O primeiro texto estabelece as leis por que se vai reger o livro: “Não é altura de afirmar nada. Tudo deve perma- necer oculto na sua pura inanidade (e unanimidade) inabor- dável.”23 Este respeito absoluto pela hora silenciosa em que as imagens irrompem é a condição de possibilidade futura de uma germinação verbal inesperada em que os nexos lógicos, a sintaxe e especialmente a semântica inauguram uma nova visão. A palavra de poesia torna-se nesse momento “a única mediação de um enigma que se confunde com a própria res- piração do construtor”24, e nessa prossecução da germinação futura o poeta quer, o homem sonha e a obra nasce porque numa prosa diamantina — de concisão expressiva de ilumina- ção súbita das potencialidades do signo. Prosa de diamante a de Ramos Rosa na exacta medida em que o poema se dá a ver como pedra perfeita, constante, objecto limpo das ex- crescências da linguagem corrompida do meio social em que o poeta nasce e contra o qual se revolta.Adamas— diamante a prosa deste livro onde o aprendiz secreto da poesia mais uma vez regressa à durabilidade de uma unidade essencial.

23Id.,O Aprendiz Secreto,op. cit., p. 9.

24Ibid.

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Fernando Guimarães Universidade Católica Portuguesa, CEFi

Os poetas que publicam os seus primeiros livros nos anos 50 encontravam-se perante o que seria o refluxo de duas grandes correntes expressivas. Uma era a que vinha do Mo- dernismo tal como se afirmou de uma maneira tão decisiva com a geração doOrpheu; a outra vinha de duas movimenta- ções literárias mais próximas, a da geração presencista, o que podia conduzir aqueles poetas dos anos 50 a um mero epigo- nismo, e a da geração neorrealista que, por sua vez, se mos- trou demasiado influenciada ideologicamente. Eram estes os riscos que importava ultrapassar. De que maneira? Sobretudo pela atenção que se principiou a prestar à própria dimensão verbal da poesia.

Três intervenções de natureza crítica — com derivas para o domínio da estética ou, melhor, da poética — foram de- senvolvidas nesses anos 50 por três poetas: David Mourão- -Ferreira, António Ramos Rosa e Vítor Matos e Sá. David Mourão-Ferreira, logo no primeiro número da revistaTávola Redonda, que sai em 1950, aponta a prevalência do lirismo no discurso poético, o que foi visto como uma opção que vinha pôr reservas às derivas ideológicas do Neorrealismo. Por sua vez, António Ramos Rosa, cujos pontos de vista transpare- cem no texto não assinado de apresentação da revistaÁrvore,

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saída em 1951, e em vários artigos que depois nela publicou, empenha-se na defesa de uma essencial liberdade expressiva inovadora que acompanharia o ato de criação poética, sem prejuízo de que nele se fizesse sentir uma finalidade de natu- reza social que corresponderia a uma visão mais amplamente humanista. Finalmente e um pouco mais tarde, em 1956, Ví- tor Matos e Sá publica, inserido num dos seus livros de poesia, O Silêncio e o Tempo, um ensaio em que se dá o devido re- levo à linguagem simbólica que, como refere, “escapa a toda a construção conceptual e objectiva”, retomando também uma perspetiva humanista a partir de valores e não, como aconte- cia nos poetas neorrealistas, de uma ideologia. Assim, aquela linguagem simbólica era “sinónimo de uma exigência de va- lorização humana”.

A linguagem — através de um triângulo cujos vértices se- riam o significado das palavras (isto é, a semântica), a sua or- denação ou distorção (isto é, a sintaxe) e a sua projeção ex- pressiva (isto é, a retórica) — revestiu-se da maior importân- cia para um conjunto de poetas desses anos 50. Tal dina- mismo verbal irá marcar a sua obra como é o caso, entre ou- tros, de um António Ramos Rosa, de um Pedro Tamen, de um José Terra, de um Vítor Matos e Sá, de um Fernando Eche- varría, de um Herberto Helder. . .

Esta incidência na dimensão verbal do poético não a veio enredar num formalismo; podemos mesmo dizer que ela con- vive com aquelas preocupações de natureza humanística a- pontadas por Ramos Rosa, Vítor Matos e Sá ou, ainda, por Manuel Antunes, que escreve para as primeiras páginas do número inicial da revista Graal, em 1956, um breve ensaio que no próprio título “Para uma estética personalista” revela a sua tentativa de ir ao encontro de um “novo humanismo”.

Aliás, não podemos esquecer que nos anos 50 teve ampla di- vulgação entre nós uma movimentação filosófica que forte in- fluência exerceu sobre a literatura, o Existencialismo. Uma

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das figuras marcantes dessa corrente no seu duplo aspeto fi- losófico e literário foi, como se sabe, Jean-Paul Sartre, que publicará um livro intitulado significativamenteO Existenci- alismo é um Humanismo, o qual Vergílio Ferreira — que tam- bém colaborara naÁrvore — traduziu, acompanhando-o de um extenso prefácio datado de 1961.

A exigência de uma valorização humana não iria necessa- riamente colidir, no caso da poesia, com a invenção imagi- nosa, o papel simbólico das palavras. Mas, no plano teórico, podiam surgir, como aliás surgiram, certas ambiguidades, in- decisões, perplexidades.

Elas não deixam de se fazer sentir no caso de Ramos Rosa se tivermos presente a sua intervenção crítica nas páginas da Árvore. Aí, sente-se a preocupação de se encontrar um equi- líbrio entre linguagem, imaginação e valores humanistas, so- bretudo se nestes se entrevir uma opção de natureza ideoló- gica que, na passagem dos anos 30 para os 40, começava a ganhar corpo com o aparecimento da geração neorrealista.

Ramos Rosa estava atento a esta situação que não podia deixar de pesar sobre a escrita da poesia, sobretudo devido a emergentes ambiguidades que ocorreram quando se procu- rou conciliar o que nessa poesia seria a forma e o conteúdo

— conteúdo e forma que os neorrealistas se empenhavam em considerar como indissociáveis — ou, por outras palavras, encontrar uma espécie de termo médio entre o agir e o ima- ginar.

No referido texto inicial saído na Árvore, considera-se que, quanto à poesia, “o seu fim é essencialmente social”, de modo que, “desenvolvendo todas as leis da imaginação, [. . . ] o poeta age”. Mas logo se acrescenta que “não pode haver razões de ordem social que limitem a altitude ou a profundi- dade dum universo poético, que se oponham à liberdade de pesquisa e a apropriação de um conteúdo cuja complexidade exige novas formas, o ir até ao fim das potencialidades cria-

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doras e expressivas”. Nota-se aqui uma certa oscilação entre a ação social — que, nos anos 50, se inclinava para uma ver- tente política que partindo de Marx chegava a Jdanov, a qual, como se sabe, era seguida com maior ou menor empenha- mento pelos neorrealistas — e a valorização de uma especi- ficidade literária.

Os textos de natureza ensaística que Ramos Rosa vai in- cluir na mesma revista, vivendo num espaço que é o desta oscilação, representam sem dúvida os passos de uma ten- tativa inicial para a resolver. Vejamos. . . Ainda no primeiro número da mesma revista assina uma apresentação das suas traduções do poeta René Char. Podemos dizer que aí tudo se desenvolve em torno de uma interpretação humanista da poesia. “O mundohumanizou-se”, dir-nos-á. Consequente- mente, “a poesia não é um domínio encantado e fechado, à margem do real” ou — recorrendo a uma expressão usada por um outro poeta que também traduzirá depois, no 3.º número, Paul Éluard — da “verdade prática”. E, mais adiante, há uma alusão à “missão social [. . . ] do poema”, mas tendo em devida conta que ela vai ao encontro da “frágil e real personalidade humana”, como se aqui chegasse uma ressonância, ainda que muito vaga, do pensamento existencialista.

Paralelamente, far-se-á sentir uma outra movimentação, a do Surrealismo, que irá exercer uma forte influência en- tre nós, estabelecendo-se uma espécie de arco marcado por uma atitude de vanguarda que já o Modernismo da geração doOrpheuassumira e que, seguindo outras direções, poetas como Mário Cesariny — outro colaborador daÁrvore— irão procurar na poesia francesa e nos manifestos tão influentes e expeditivos de André Breton. Ramos Rosa não irá seguir, na sua poesia, tais modelos, mas estará muito atento à defesa que os surrealistas faziam, sob uma forma que se diria mesmo revolucionária, da imaginação. Daí o seu interesse por poetas como Éluard e Henri Michaux — que também traduzirá nesse

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3.º número —, poetas estes cujas relações com o Surrealismo se tornariam até certo ponto desviantes. Referindo-se a Mi- chaux, Ramos Rosa vê nele um “aventureiro de espaços ima- ginários”, ressalvando, todavia, a circunstância de neste poeta a imaginação não ser uma “evasão à realidade circundante”

tão marcada pelas “nossas angústias e sofrimentos actuais”.

Considerando em particular a imaginação, Ramos Rosa cada vez mais se aproximava do que seria o seu suporte em poesia, a linguagem. Há deste modo uma “libertação imaginá- ria”. Com ela principia a definir-se o modo como a noção de liberdade se torna na poesia tão importante. No último número da Árvore, o qual é publicado em 1953, en- contra-se um texto de sua autoria intitulado “A poesia é um diálogo com o universo”. Nele valoriza-se expressamente o que no discurso poético se deve “à imaginação ou à fantasia, numa palavra, ao especificamente poético”. E o poema “Li- berté” de Éluard servirá para exemplo dessa “liberdade total”

em que o poético, que não é posto em causa, vai ao encon- tro do “homem social”. No mesmo artigo, encontra-se uma referência a um ponto de vista de um poeta que se aproxi- mou também do Surrealismo, Tristan Tzara, a qual vem vin- car ainda mais uma tensão entre a linguagem do imaginário e o que poderá ser uma ideologia. Ramos Rosa cita uma afir- mação de Tzara na qual essas duas forças, que são apresenta- das como complementares, se tornam bem explícitas: “a poe- sia não tem que exprimir uma realidade. Ela exprime-se a si mesma. Mas para ser válida deve incluir-se numa realidade mais larga, a do mundo dos vivos”, isto é, como Ramos Rosa acrescenta, a do “homem concreto”.

Complementaridade ou ambiguidade? O que se torna cer- to é que a relação entre uma conceção humanista, onde o social se manifesta, e a disponibilidade imaginativa, que con- duziria ao que é específico da linguagem poética, continua a oscilar no pensamento do autor deO Grito Claro, livro esse

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que, saindo mais tarde, em 1958, recolherá alguns poemas que se encontram nos primeiros números daÁrvore, os quais poderiam permitir uma leitura ideológica.

Num texto mais tardio, que saiu em 1962 e se encontra reproduzido no seu livroA Poesia Moderna e a Interrogação do Real I (que sai em 1979), Ramos Rosa parece ter encon- trado, a partir de todas estas tensões já referidas, um ponto de equilíbrio que é também uma superação no que nelas poderia haver de dilemático. E resumirá nestas palavras o seu ponto de vista:

A dignidade da palavra implica a sua liberdade, mas tal liberdade verdadeiramente livre tem de ir ao fundo de si mesma, para além da própria palavra, até essa linha de sombra onde o real se renova e a palavra recomeça como verdadeiro fundamento do real poético. [. . . ] A encarnação que o poema realiza implica esta profunda e livre adesão do homem às coisas reveladas, uma re- valorização da vida, uma restituição do que no espírito é capaz de se abrir plenamente ao real, sem qualquer sobreposição ideológica [. . . ].1

E isto implicaria, por sua vez, “uma arte e uma verdadeira ciência da linguagem, que tende, afinal, a restituir aquele mo- mento pré-reflexivo sem o qual a poesia não logra estabelecer qualquer contacto real com o mundo”2.

Ramos Rosa fala aqui numa “liberdade verdadeiramente livre”. Nesse mesmo ano de 1962 publica o seu primeiro livro de ensaios intitulado Poesia, Liberdade Livre. Porquê este título? Porquê esta espécie de redundância em que uma pa- lavra se persegue a si mesma? Temos visto até agora como Ramos Rosa se interessou particularmente pela poesia e pelo

1António Ramos ROSA,A Poesia Moderna e a Interrogação do Real I, Lisboa, Arcádia, 1979, p. 16.

2Ibid.

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ensaísmo sobre literatura de procedência francesa. Ora “li- berté libre” é uma expressão consagrada de Rimbaud que a- parece como epígrafe no livro em questão. E será por este ca- minho que melhor compreenderemos o modo como se rela- ciona na criação poética o que é “pré-reflexivo” ou irracional, a que os surrealistas davam especial ênfase, com uma “liber- tação imaginativa”, que uma poesia da modernidade acabou por consagrar.

Ora será neste ponto, que é uma verdadeira encruzilhada literária, que mais uma vez se vai sentir o interesse de Ramos Rosa pela poesia francesa. Regressemos de novo a Rimbaud.

Na segunda metade do séculoXIXverifica-se a partir de Paris uma verdadeira revolução da linguagem poética. Serão Bau- delaire, Mallarmé, Lautréamont e, como é óbvio, Rimbaud os poetas que vão abrir caminho para uma modernidade. “Il faut être absolument moderne”, dirá o autor de Illuminati- ons. Esta revolução encontrará no Surrealismo uma deriva que Breton irá consagrar no seuManifesto do Surrealismode 1924, onde se propõe “a ausência de todo o controle exercido pela razão”. Agora é menos a linguagem poética considerada em si mesma que se magnifica, mas, sim, uma imaginação que aposta na irracionalidade.

Ramos Rosa, no seu livro Poesia, Liberdade Livre, ad- mite que a “realidade é a própria linguagem” na medida que o “poema fala de si mesmo”. Sem excluir uma posição huma- nista que, como vimos, o Existencialismo privilegiava, o que estava em jogo era uma revolução, mas ela inclinava-se agora decisivamente para a da própria linguagem. O que se im- punha era, segundo Rimbaud, “trouver une langue”. Como?

Através de todo um imaginário que assenta naquela ilimitada possibilidade da linguagem de ir ao encontro de múltiplos sentidos, de uma polifonia. Daí uma opção de escrita poé- tica seguida por Ramos Rosa em que às associações livres de um Surrealismo, por onde Éluard, Tzara e Michaux andaram

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perto, se prefere a expansão semântica, isto é, a preterição do explícito a favor do implícito: “E com as palavras de vento e de pedras, invento o vento e as pedras, caminho um caminho de palavras.”3

Este é o contexto que talvez permita melhor entrever o significado da expressão “liberdade livre”, contexto esse que passa por um encontro que a modernidade consagra e que fica entre a linguagem e a imaginação. A poesia será a dupla manifestação de ambas ou, por outras palavras, a imagem du- pla da liberdade. Assim é-nos dado ler, nos múltiplos livros que Ramos Rosa escreveu ao longo do tempo, aqueles múlti- plos sentidos em que imagens e metáforas se cruzam entre si, sendo aí que cada “página respira”, já próxima daquelas vozes em que, afinal, também o silêncio existe:

O que nos diz a imagem? Diz-nos o que é e não o diz.

Porque não é uma palavra. Antes um silêncio, uma ausência, um vazio.

O seu sentido é uma promessa do sentido4

3Id.,Antologia Poética, sel., pref. e bibliog. Ana Paula Coutinho Men- des, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001, p. 67.

4Id.,Le Domaine Enchanté, Porto, O Oiro do Dia, 1980, s.p.

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Helena Costa Carvalho1 Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, CLEPUL

Os que arriscam mais são os poetas, mas poetas cujo canto vira o nosso desamparo para o aberto.

M. Heidegger

Como estar sendo ser estando junto à boca unida e firme e trémula

do poema?

António Ramos Rosa

No conhecido ensaio “Para quê poetas?”2, Heidegger, mo- tivado pela questão lançada por Hölderlin na elegia “Pão e vi- nho”, “para que servem poetas em tempo de indigência?”3, e

1 Este trabalho foi desenvolvido no âmbito de uma bolsa de doutora- mento (BD) financiada pela FCT — Fundação para a Ciência e Tecnologia, com a referência SFRH/BD/115754/2016.

2Trata-se de uma conferência proferida em 1946, por ocasião do vigé- simo aniversário da morte de Rainer Maria Rilke, e publicada emCaminhos de Floresta(1950).

3Friedrich HÖLDERLIN,Elegias, trad. e pref. Maria Teresa Dias Fur- tado, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000, p. 75.

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inspirado pela leitura da poesia de Rilke, assevera: “Os que ar- riscam mais são os poetas, mas poetas cujo canto vira o nosso desamparo para o aberto”4. Esta relação entre poesia e risco, ali claramente gizada pelo filósofo alemão, surge como um tópico relevante quer na filosofia do fenómeno poético que se faz no século XX, e que tem em Heidegger um dos seus maiores vultos, quer na chamada “poesia moderna”, na me- dida em que esta parece responder à advertência do mesmo filósofo segundo a qual era chegado o tempo de o poema se constituir como “um ensaio de meditação poética”5.

Comungando desse pressuposto da poesia moderna e ten- do em Heidegger o pensador que mais marcou o seu percurso poético6, António Ramos Rosa realizou — num trânsito con- tínuo entre a poesia e o ensaio — umameditação profunda sobre o risco implícito na escrita do poema. É, pois, sobre tal meditação que nos deteremos, procurando, num primeiro momento, sinalizar a presença de tal tópico em algunspensa- dores do séculoXX cujas vozes parecem ecoar na escrita de Ramos Rosa e, num segundo momento, aclarar a natureza e a complexidade que a relação poema-risco adquire na obra do poeta português.

4 Martin HEIDEGGER, “Para quê poetas?”, in Caminhos de Floresta, coord. científica e da trad. Irene Borges-Duarte, trad. Bernhard Sylla e Vítor Moura, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, pp. 309-367, p. 365.

5Ibid., p. 318.

6 “[. . . ] foi, sem dúvida, Heidegger o [pensador] que mais profunda- mente marcou o meu percurso poético.” António Ramos ROSA, “António Ramos Rosa: ‘A arte não tem mensagem”’, entrevista por Miguel Queirós, O Primeiro de Janeiro, supl.Das Artes e das Letras, n.º 31, 1 Fev. 1989, p. 4.

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1.Meditação poéticae risco, ou um coro de vozes em espelho

A associação da poesia ao risco ou ao perigo, ou a ideia de que a poesia é coisa perigosa, é antiga, remontando pelo menos a Platão, que, no livro x deA República, defende, em nome da primazia dologose dos valores da verdade e da jus- tiça, a expulsão dos poetas da cidade, arremessando assim o discurso poético para os arrabaldes da república ideal. No entanto, nas mesmas linhas, Platão faz notar a reciprocidade desta aversão entre os dois discursos, mostrando que a filoso- fia também já tinha sido alvo de muitas acusações vindas dos poetas7. Sendo sobejamente conhecida a matéria de acusa- ção que move o filósofo contra os poetas, interessa-nos aten- tar nas razões que poderão explicar a condenação que estes últimos fazem da filosofia. Seguiremos, neste ponto, a pro- posta de María Zambrano, na medida em que nos permite destrinçar dois fios que se mesclam quando falamos de poe- sia como risco e seguir por aquele que nos levará até Ramos Rosa. Ora, no dedo que os poetas antigos apontavam aos filó- sofos vê María Zambrano a manifestação de uma (auto)cons- ciência de algo intrínseco ao dizer poético que remete, não

7PLATÃO,República, X, 607b: “— Aqui está o que tínhamos a dizer, ao lembrarmos de novo a poesia, por, justificadamente, excluirmos da cidade uma arte desta espécie. Era a razão que a isso nos impelia. Acrescentemos ainda, para ela não nos acusar de uma tal ou qual dureza e rusticidade, que é antigo o diferindo entre a filosofia e a poesia. Realmente, lá temos ‘a cadela a ganir ao dono’ e a ‘que ladra’ e o ‘homem superior a proferir pala- vras vãs’, e o ‘bando de cabeças magistrais’ e os ‘que pensam subtilmente’, como afinal ‘vivem na penúria’ e mil outras provas da antiguidade do an- tagonismo entre elas.” Como afirma Maria Helena da Rocha Pereira, em nota de rodapé referente à citação apresentada, “Todas as expressões entre aspas devem provir de citações de poetas, provavelmente da lírica [. . . ].”

(PLATÃO,República, introd., trad. e notas de Maria Helena da Rocha Pe- reira, 6.ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1990, p. 475.)

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tanto para uma perspectiva exógena do risco, mas para o risco que o próprio poeta enfrenta, e sabe enfrentar, no seu ofício cantante:

El poeta no podía ver con buenos ojos el descubrimien- to del ser, porque el poeta sabe que hay descubrimien- tos que arrastran, que existen cosas a las que no queda más remedio que ser leal hasta la muerte, una vez que hemos descubierto. Y así, el ser trae consigo la forzo- sidad de una decisión en la propia vida. Reconocida la primacía del ser y afirmado que el ser es unidad, ya no le quedaba al hombre sino desprenderse violentamente

— violentando y violentándose — de todo lo que no es ella.8

Segundo Zambrano, é esta a grande diferença entre o filó- sofo e o poeta: enquanto o primeiro “quiere poseer la palabra, convertirse en su dueño”, o segundo “es su esclavo; se consa- gra y se consume en ella”; assim, em contraponto com a ética

“sosegada, segura” do filósofo, a “ética poética no es otra que la del martirio”, pois “Todo poeta es mártir de la poesía; le en- trega su vida, toda su vida, sin reservarse ningún ser, para sí, y asiste cada vez con mayor lucidez a esta entrega”9. Encon- tramos aqui o fio que nos importa seguir, interessando-nos sobretudo duas ideias: primeiro, a de que, antes de consti- tuir um perigo para o que está fora, a poesia é, em si mesma, no seu fazer-se, uma actividade de risco, em que a palavra e o poeta se jogam radicalmente, sempre rasando — quando não adentrando — a febre e o delírio; depois, a ideia de que o poeta se revela cada vez mais lúcido em relação às exigên- cias do seu labor e à sua relação com a palavra. A associação desta figura do poeta lúcido à do poeta moderno, que já en- trevemos, é-nos confirmada pelo exemplo de lucidez poética

8María ZAMBRANO,Filosof ía y Poesía, 4.ª ed., México, Fondo de Cul- tura Económica, 1996, pp. 39-40.

9Ibid., p. 43.

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