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Criança em situação de rua e a homogeneização da infância

3 CRIANÇAS EM SITUAÇÃO DE RUA: REALIDADE COMPLEXA,

3.1 Criança em situação de rua e a homogeneização da infância

O conceito de infância é determinado historicamente pela modificação das formas co- mo a sociedade se organiza e essa forma de organização institui distintas classes sociais no interior das quais o papel da criança é diferente. A ideia de infância universal foi disseminada pelas classes dominantes tendo como base o seu padrão de criança, a partir de critérios como idade e dependência dos adultos. Todavia, segundo Kramer (1992, p. 15), ―sendo essa inser- ção social diversa, é impróprio ou inadequado supor a existência de uma população infantil homogênea, ao invés de se perceber diferentes populações infantis em processos desiguais de socialização.‖

Desse modo, é necessário compreender a importância de definir qual era (e é) o con- ceito de infância no interior de diversas classes sociais partindo da ideia de que as crianças (nativas ou imigradas, ricas ou pobres, brancas ou negras) tinham (e têm) modo de vida e in- serção social distintos, o que correspondia (e corresponde) a diferentes graus de valorização da infância pelo adulto, partindo das condições econômicas, sociais e culturais e do papel efe- tivo que exerciam (e exercem) na sua comunidade (KRAMER, 1992, p. 19-20).

Reconhecer as crianças e os adolescentes como sujeitos de suas trajetórias e de seus direitos exige que elas participem das conversas, que sejam ouvidas, que suas opiniões façam parte da prática. Para Didonet (1993, p. 13-14):

Após séculos de evolução do conceito de criança, o discurso está mais voltado para suas carências do que para suas capacidades, mais para a imaturidade da criança do que para o seu potencial, os riscos e perigos que a rodeiam do que as conquistas e as construções por ela realizadas, a ignorância e as dificuldades em resolver os peque- nos problemas cotidianos do que para a genialidade de suas respostas e desafios. Is- so se dá porque os adultos olham a criança de cima para baixo [...] e a julgam a par- tir das soluções e formas que eles já têm estabelecidas. Quer dizer, os adultos vêem a criança como alguém que ela ainda não é, ainda não faz, ainda não alcançou, pela

ótica do futuro. Ao passo que a criança, desconhecendo o ainda-não, insiste no aqui- e-agora, no que ela é capaz, no que está pensando ser capaz.

Kramer (1992, p. 15) compreende que a definição de criança deve ser dada para além do estabelecimento de oposição ao adulto, centralizada no fator idade:

Entende-se, comumente, ―criança‖ por oposição ao adulto: oposição estabelecida pe- la falta de idade ou de ―maturidade‖ e ―de adequada integração social‖. Ao se reali- zar o corte com base no critério idade, procura-se identificar certas regularidades de comportamento que caracterizam a criança como tal. Entretanto, a definição deste limite está longe de ser simples, pois ao fator idade estão associados determinados papéis e desempenhos específicos. E esses papéis e desempenhos (esperados e reais) dependem estreitamente da classe social em que está inserida a criança.

Assim, faz-se necessário diferenciar o lugar social ocupado pela criança não apenas partindo do fator idade, mas considerando sua participação no processo produtivo, o tempo de escolarização, a socialização no interior da família e da comunidade, e as atividades cotidia- nas desenvolvidas pelas crianças (PINHEIRO, 2006, p. 36).

Pinheiro (2006, p. 36-37) indica a imprescindibilidade de pensar a criança e o adoles- cente como categorias socialmente construídas, ultrapassando a limitação do dito ―natural‖ e

da concepção abstrata, que os analisa através da ―natureza infantil‖ e os distancia de suas

condições objetivas de vida:

É preciso ultrapassar o critério idade e examinar a inserção da criança e do adoles- cente na vida social, nos momentos vários da história brasileira. Parece-me que , as- sim o fazendo, ultrapassamos a ―natureza infantil‖, de caráter abstrato, para chegar a uma abordagem da criança e do adolescente em sua concretude: crianças e adoles- centes com percursos sociais diferenciados. É mister esclarecer que ultrapassar as características ditas naturais, ultrapassar a ―natureza infantil‖, não significa deixar de considerar as particularidades, as especificidades da categoria criança e adolescente.

Em relação à criança em situação de rua, Carvalho (2002, p. 26) esclarece que sua e- xistência se distancia das imagens e representações tradicionalmente estabelecidas:

Imaginá-la suscitava uma indagação acerca do significado de criança, pois, geral- mente, quando evocamos este significado encontramos em primeira instância, a i- magem real de seres desprotegidos, cercados de pureza, de inocência. Uma imagem que tem sua representação sócio-cultural fincada na modernidade, quando a criança deixa de ser indiferente ao mundo do adulto e é paulatinamente inserida na família como figura central, demandante de um espaço e de cuidados especiais.

Para Ariès (1981, p. 39-40), a vida não corresponde estritamente a uma etapa biológi- ca, mas a determinadas funções sociais. Assim, as crianças em situação de rua rompem com imagens, significados e comportamentos habitualmente aceitos pela sociedade: ―suas presen-

ças na rua quebram o aspecto de homogeneização, de universalidade e uniformidade do mun- do infantil, apresentando suas diferenças sociais e pessoais.‖ (CARVALHO, 2002, p. 28).

Desse modo, ser criança não é apenas estar situado em determinada faixa etária, mas viver em um mundo com determinadas condições políticas, sociais e culturais. Todavia, per- manece, ainda, pouco explorada a conjugação dos critérios de classe social com outras manei- ras de diferenciação. Desse modo, a interseção entre fatores de subordinação social gera desi- gualdades no acesso à condição hegemônica da infância, definida pela inocência, pela neces- sidade de proteção e pela preparação para a vida de adulto (SCHUCH, 2009, p. 261).

Para Carvalho (2002, p. 31), é no reconhecimento da pluralidade que as crianças de rua manifestam sua particularidade no mundo. Essas trajetórias de vida são marcadas pela liberdade de circular pelas ruas, pela necessidade de prover sua própria subsistência e pela construção de relações. Desse modo, o desafio é entender as crianças em situação de rua a partir de uma compreensão alargada, em que não cabe a uniformidade de uma concepção, mas a descoberta de sujeitos que se comunicam com a vida, com as pessoas, com os símbolos e imagens de seu cotidiano.

As imagens e representações estabelecidas dessas garotas e garotos pelos outros estão estritas ao hegemonicamente estabelecido. Desse modo, a convivência social está marcada pelo estranhamento, pelo medo e pela culpa. Nesse sentido, Carvalho (2002, p. 29):

É comum ouvirmos as pessoas falarem que a rua não é lugar de criança, que criança na rua não é ―normal‖, que o ―normal‖ é a criança estar aos cuidados da família e na escola. A criança na rua, sua própria aparição, suas formas ousadas de demarcar es- paços, sua (in)visibilidade, enfim, provocam confronto com as imagens e a simbolo- gia construída historicamente em torno da infância.

Para Schuch (2009, p. 260), a ideia de criança universal passou a ser foco dos progra- mas, dos projetos e da legislação, o que ocorre em conjunto com a valorização da responsabi- lização familiar pela educação dos filhos e uma ampliação da vigilância judiciária no que diz respeito à socialização da criança. Nesse sentido, a construção da criança como sujeito de direitos, ultrapassa a determinação de uma etapa da vida ou período definido por aspectos biológicos e psicológicos, resulta de processos amplos que envolvem não apenas a determina- ção de direitos formais, mas uma gama de valores sobre a família, a autoridade, a etnia, o gê- nero, a segurança e a harmonia social que são decisivos para o estabelecimento da criança como um sujeito moral.