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CAPÍTULO 1 – A EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL

1.1 A multiplicidade de olhares sobre a criança

1.1.1 A criança olhada pelas diversas culturas

Depois do que acima se disse, torna-se necessário apresentar um enfoque histórico e cultural que nos permita compreender as mudanças e diferenças. E porque a relação entre a criança e a

sociedade é intrínseca, para a descoberta do lugar que a criança ocupou e ocupa no sistema das relações sociais em cada momento histórico começámos por analisar três grandes momentos da evolução das sociedades ocidentais, nomeadamente sociedades europeias pré-industriais, industriais e pós-industriais. O quadro 1.1 faz uma síntese das caraterísticas de cada etapa de evolução das sociedades.

Quadro 1.1: Comparação das caraterísticas das sociedades pré-industrial, industrial e pós-industrial

Sociedade Pré-industrial Sociedade Industrial Sociedade Pós-industrial

Período Até o século XIX De meados do século XVIII a metade do

século XX

A partir da II Guerra Mundial

Instituições básicas Família, grupos primários Família nuclear Família instável

Principais Recursos Terra, matérias-primas, alto índice de natalidade

Meios de produção, matérias-primas, produtividade

Conhecimento, criatividade, informação, ciência, cultura Setores económicos

dominantes

Criação de animais, extração de minerais, pesca, exploração de florestas, produção para consumo próprio, setor primário

Produção de bens: fabrico, transformação, setor secundário

Economia do conhecimento,

fornecimento de serviços, transporte, comércio, saúde, cultura, nutrição, lazer. Setor terciário

Estrutura profissional Camponeses, pescadores, operários não qualificados, artesões

Operários, engenheiros, empresários, funcionários

Técnicos, cientistas, empresários

Espaços Campo, pequenos centros

urbanos, loja do artesão, manufatura

Indústrias, fábricas, escritórios, cidades Internet, globalização, trabalho a distância,

Desafios Mortalidade infantil, escassez de alimentos, doenças

Crise energética, poluição, desperdício dos recursos, anomia, disparidades sociais, guerra, insegurança no trabalho

Qualidade de vida, saúde pública, guerra, crise ambiental, equidade de géneros

Atores sociais Proprietários de terras, senhores, camponeses, artesões, plebe

Empresários, trabalhadores, sindicatos Técnicos, cientistas, banqueiros, empresários, ONGs, …

Fatores de coesão Solidariedade mecânica, origem comum

Solidariedade mecânica, ideologia de classe, objetivo comum

Solidariedade programada, redes múltiplas de comunicação, aldeia global

Relações com o tempo e o espaço

Orientação para o passado, tradição, resposta imediata, tempos sincronizados com a natureza, sentido do além

Adaptação conjuntural às necessidades, vida baseada no tempo de trabalho

Orientação para o futuro, cenários de previsão de longo prazo, ritmo de trabalho escolhido e individualizado, vida baseada no lazer, real time

Vantagens Ritmos lentos, equilíbrio com a

natureza, autogestão, pouca burocracia, solidariedade primária

Dimensão multinacional, lugar onde se trabalha separado do lugar onde se vive,

Dimensão transnacional, conexões telemáticas e televisivas de todos os lugares

Desvantagens Miséria, servidão, mortalidade infantil, ignorância, fadiga física

Alienação, competitividade, desperdício, anomia, fadiga psicofísica, exploração

Manipulação, direção externa, controle externo, massificação, marginalização, desemprego, fadiga psíquica

a) Sociedades pré-industriais

As sociedades pré-industriais situam-se historicamente até o século XIX, podendo afirmar-se que em algum momento se desenvolveram em paralelo com as sociedades industriais que nasceram no século XVIII.

Nestas sociedades a família constituía a instituição básica, e o padrão de organização social era composto por um núcleo familiar extenso, inserido em outras unidades, nomeadamente a tribal (Thompson, 1989). Nestas sociedades, baseadas em culturas recoletoras e agro-pastoris, as principais atividades centravam-se na caça, no pastoreio, no trabalho agrícola, e na transformação mercantil (Masi, 2003), atividades realizadas com base na repartição distinta das tarefas entre sexos e idades, conformando duas esferas distintas de trabalho, esfera masculina e esfera feminina (Rocha et al., 2006). Assim, de entre outras atividades, e no âmbito da corresponsabilidade de tarefas, caraterístico das sociedades pré-industriais, nas sociedades recoletoras além da responsabilidade de sustento das famílias (recoleção de produtos vegetais, exemplos dos bosquímanos e pigmeus), cabia às mulheres a tarefa de vigiar e cuidar das crianças o que proporcionava que estas ficassem durante muito tempo sob proteção dos adultos, permitindo uma socialização complexa, orientada para a manutenção das tradições. Nas sociedades agro-pastoris, ter várias esposas e muitos filhos era sinónimo de produtividade.

Nas sociedades agro-pastoris, a agricultura tinha um valor muito importante e as crianças, naturalmente acompanhadas de suas mães, constituíam uma força de trabalho importante precocemente integrada no trabalho dos adultos. Ressaltar que a integração da criança no mundo da produção não se configurava como exploração de trabalho infantil, tinha um caráter de tarefa espontânea. Os adultos não castigavam as crianças e procuravam garantir que estivessem alegres; “as crianças por sua vez, mostravam-se satisfeitas por terem atuado com os adultos e como adultos” (Elkonin, 1988 apud Pasqualini, 2009:33). A organização social permitia que a família usufruísse momentos de lazer em família, em diferentes situações,

como à volta do fogo, passando-se o testemunho dos saberes da sociedade, como também acontecia nas grandes festas pagãs e religiosas.

Neste tipo de sociedades a criança era utilizada como mão-de-obra precoce pela própria família. Uma sociedade que aceitava o trabalho infantil e o procurava reproduzir continuamente. Por outro lado, as condições difíceis de trabalho, a miséria em que muitas famílias viviam, traduziu-se em altas taxas de mortalidade infantil.

b) Na sociedade industrial

A sociedade industrial corresponde a um período que medeia entre a segunda metade do século XVIII até à primeira metade do século XX. Uma época fecunda no âmbito da ciência e do progresso tecnológico, marcado pelo aparecimento da máquina a vapor, uma tecnologia capaz de gerar uma mudança nos modos de produção. As principais caraterísticas são descritas por Masi (2003) como sendo de padronização das estruturas, a especialização na realização de tarefas com maquinaria, a sincronização dos tempos e dos comportamentos, a emergência de cidades e regiões com altos índices de industrialização, o aumento da dimensão das fábricas e cidades, assim como a centralização de informações e de decisões.

No campo social, uma das grandes inovações foi a separação entre o lugar onde se vive e o local de trabalho, entre sistema familiar e sistema profissional e a substituição da família extensa pela família nuclear.

Se o conhecimento e o domínio da tecnologia possibilitaram às nações um maior controlo no acesso e exploração das matérias-primas, quanto ao que à criança diz respeito, pode-se falar de um período particularmente difícil. A reflexão feita por Postman (2007) sobre o estado de coisas naquela altura, alimenta o nosso conhecimento e ajuda-nos a perceber a fundo a gravidade que a situação atingiu:

A industrialização foi uma inimiga constante e terrível da infância. Com o crescimento da indústria e a necessidade de trabalhadores nas fábricas e nas minas, a natureza especial das crianças foi subordinada à sua utilidade como fonte de mão-de-obra […] um dos efeitos do

capitalismo industrial foi dar apoio aos aspectos penais e disciplinares da escola, que eram vistos como um sistema para dobrar a vontade da criança e condicioná-la ao trabalho rotineiro nas fábricas […]

(Postman, 1999:67 apud Neto, 2007:23) Neste período, as crianças, em particular as oriundas das famílias pobres, eram vistas como mão-de-obra barata, igualada a combustível para mover a máquina e as suas mãos hábeis a objetos para acelerar o parque industrial. Foi uma época em que as preocupações com o desenvolvimento físico, cognitivo, emocional, social e moral da criança foram negados ou muito esquecidas. A anomia, a fadiga psicofísica e a exploração, males caraterísticos daquela época, tiraram a infância de muitas crianças.

c) Na sociedade pós-industrial ou sociedade da informação

A sociedade pós-industrial, também designada a partir de determinado momento por sociedade de informação, “aldeia global”, “aldeia planetária”, “telecomunidades” teve início logo depois da II Guerra Mundial. É caraterizada essencialmente por interações sociais que atravessam todas as fronteiras geográficas, étnicas, de classe, nacionalidade, de religião, e de ideologias, constituindo um conjunto de redes de comunicação que interligam toda a humanidade (Anderson, 1986).

De acordo com (Masi, 2003), neste período, pode existir uma perspetiva positiva ou negativa. A visão otimista é fornecida por autores como Toffler (1970), no seu livro Choque do Futuro, e assenta na ideia da possibilidade de no futuro a sociedade vir a mudar e a atribuir uma maior importância à melhoria qualitativa das condições de vida que ao desenvolvimento económico numa dimensão meramente quantitativa. O evoluir da tecnologia irá permitir que o trabalho deixe de ser tão árduo, tornando-se mais leve e por essa razão a fadiga física vai reduzir, a escolaridade e o nível do saber difundido entre os cidadãos será mais alto, o progresso será objeto de uma maior fruição e as possibilidades de escolha serão maiores. Por sua vez, a visão pessimista é-nos dada por autores como Christopher Lasch, referenciado por Masi (2003), para

quem a situação é preocupante, entre outros aspetos devido a um desemprego estrutural11, ao agudizar das limitações de ordem social que obstaculizam o desenvolvimento económico, o uso das novas tecnologias que criam um maior fosso entre ricos e pobres, só para citar, um conjunto de riscos que evoluem rapidamente e transformam o futuro numa incógnita (Masi, 2003). Muitas são as incógnitas, a exemplo de como irão mudar as interações mercê do surgimento das novas tecnologias? Como controlar os agentes e as correspondentes ações, isto é, conseguir determinar quais são as consequências das suas ações? Quando deixará o terceiro mundo de ser dependente? Que faremos com a nova forma de analfabetismo que surge com o avanço das tecnologias? Que conteúdos ensinar às crianças para que elas sejam devidamente preparadas para enfrentar o mundo em mutação acelerada? Poderá a sociedade fazer leis justas que não só garantam a privacidade dos cidadãos, como defender as crianças de novos perigos?

Potencialmente existe a possibilidade de se poder proporcionar uma nova era de bem-estar devido aos avanços científicos e tecnológicos, com destaque para o âmbito da Medicina e Biotecnologia, todavia a estas contrapõe-se uma desorganização social, explicada como sendo a “perda de controlo por parte das instituições sobre os indivíduos ou grupos, impossibilitadas de impor as normas de conduta social e provocando situações de anomia” (Pité, 2004:43).

Nestas sociedades, as crianças pobres continuam sendo exploradas, marginalizadas e empurradas para o mundo do trabalho informal, o qual maior oportunidade de trabalho oferece principalmente a grupos com baixo índice de literacia informática. As crianças das camadas mais abastadas em termos económicos sofrem outro tipo de exploração pouco percetível, mas igualmente negativo e o risco de caírem nas malhas de redes criminosas que se servem da internet para os mais variados objetivos.

11 Este termo deve ser entendido como uma “Situação gerada em que o desemprego atinge períodos longos em

que a oferta de emprego é menor do que a procura e a economia não apresenta capacidade de resolução duradoura” (Pité, 2004:41).

1.1.2 Evolução histórica dos olhares: evolução histórica do modo como as sociedades têm